3. Erevan
O caminho é tranquilo, mas longo. São vários dias de caminhada, e Erevan planejou bem sua rota para poder parar e descansar várias vezes até chegar no local do ritual.
O local ficava ao Sudeste de onde Erevan estava. Seguindo a estrada em linha reta, o caminho seria menor, mas aquela região era cheia de cidades, de um reino habitado demais. O jeito seria desviar e seguir pela fronteira entre os reinos, assim evitaria quase todas as cidades, e poderia seguir a maior parte do caminho através de florestas.
Além disso, seguindo para o sul antes de virar para leste, havia uma pequena cidade bem na travessa do rio, em que Erevaldo dizia ter visto o último exemplar vivo de uma árvore sagrada, um fóssil vivo de tempos ancestrais - segundo as lendas, mais antiga que a própria civilização. Existiam até mesmo histórias de que seria uma dessas árvores que segurava o mundo em suas raízes, e que quando a última dessas árvores tombasse, o mundo desabaria.
Erevan não acreditava que o fim do mundo aconteceria por causa de uma única árvore - apesar de que no rítmo em que os reinos estavam desmatando, realmente estavam querendo pagar pra ver. Tolos. Achando-se donos da natureza. Um dia ainda vão descobrir o que acontece com quem se mete onde não devia. Bom, alguns tolos acabaram descobrindo seu destino na floresta de Samaúma. Dríades tem uma certa tendência de fazerem qualquer coisa para proteger sua floresta.
De qualquer forma, com ou sem lenda, a árvore possuía propriedades únicas – ela podia se movimentar livremente, agarrando-se nos terrenos mais rochosos e difíceis, em que nenhuma outra planta conseguiria chegar, podendo até reposicionar seus galhos e raízes para moldar o terreno e desviar os ventos em busca de melhores condições. Era o único gênero de árvore que podia se mover dessa forma, com uma única espécie vivente, e uma das últimas árvores de grande porte da região que ainda não tinha sido catalogada pelo seu avô. Esta poderia ser a única chance que alguém teria de estudá-la, e Erevan planejava fazer novas mudas antes que a espécie fosse extinta. Quem sabe, sua propriedade de se agarrar a terrenos rochosos e inférteis pudesse até mesmo ser usada para restauração de áreas degradadas.
O ambiente muda algumas vezes ao longo dos dias até que Erevan chegue na pequena cidade. A floresta de enormes árvores de Samaúma dá a vez a uma mata de árvores menores, seguidas de plantas arbustivas mais adaptadas a um ambiente seco e rochoso, até enfim chegar em um terreno feito quase de rocha pura, lascada e quebrada em inúmeros pedregulhos, que cobriam todo o leito e o entorno do rio, seguindo assim por alguns quilômetros ao sul. As rochas também davam nome ao local, Cidade Pedregulho.
Não era exatamente um local turístico. O solo não permitia que a agricultura prosperasse, não havia metais ou pedras preciosas para minerar na região, e sequer era uma cidade que fabricasse conhecimento. Tudo o que mantinha a cidade de pé eram, bem, seus pedregulhos. Ou melhor, a fabricação de grandes tijolos de pedra, resistentes a qualquer intempérie. Muitos castelos em outros reinos eram feitos com materiais importados daqui - também muito procurados por serem considerados “belos”, se é que uma pilha de pedras cortadas e sem vida pode ser chamada assim.
A única coisa que seria impressionante era o Jardim Botânico Real, mas o duque a quem pertencia essa região o mantinha fechado, como seu jardim particular. Erevan já tinha escutado muitas histórias do duque que se achava o rei, e esperava poder manter a maior distância possível do castelo e de toda essa gente da realeza.
Erevan atravessa o rio e segue para o sul, longe da cidade alta, buscando uma taverna barata e afastada onde pudesse se hospedar. Infelizmente, em um terreno aberto e rochoso assim, o garoto não poderia montar acampamento na mata como normalmente fazia, e os pedregulhos não eram amigáveis para caminhar com uma muleta. Seria melhor parar e descansar antes que caísse nas pedras.
Já estava escurecendo, mas ainda era possível ver o estado em que a cidade se encontrava. As ruas mal iluminadas e cheias de poeira, com inúmeras pessoas morando entre os becos, as casas mal cuidadas e muitas até já abandonadas, já desabando, faziam o lugar parecer triste e decadente.
Erevan se surpreende com o estado da cidade. Já sabia que o reino de Kindar, em que a Cidade Pedregulho ficava, era conhecido pela desigualdade entre a realeza e sua população, mas o garoto não imaginava que seria tanta.
O garoto sente todos os olhos o observando em silêncio, e ajusta a capa para esconder seu cajado, desconfortável com atenção. Apesar de usá-lo como muleta, aquele também era seu cajado usado para lançar magias e feitiços, e conjuradores não costumavam ser bem-vindos no reino de Kindar, muito menos druidas. Muitos da realeza não gostavam de seres mágicos guardiões da natureza que rogavam maldições em quem atravessasse seu caminho. A fama de Erevan como espírito vingativo da floresta não era de graça, afinal.
Erevan logo encontra uma pequena taverna na borda da cidade. Não era difícil encontrá-la, afinal, parecia ser o único lugar movimentado, com música e conversas. Talvez chamar de movimentado fosse exagero, já que a taverna parecia tão decadente quanto o resto das construções que viu por ali, mas já eram bem mais pessoas do que o garoto gostaria de ver.
Assim que se aproxima da entrada, o jovem escuta sons abafados do que parecia ser uma briga de bar, logo antes de um homem mais largo do que alto e com uma enorme barba grisalha sair arrastando alguém pelo colarinho. No meio da confusão, Erevan só consegue reparar nos cabelos rosas do garoto sendo arrastado para fora.
– Já falei para não voltar mais aqui! Se eu ver sua cara na minha taverna mais uma vez eu chamo os guardas pra te arrastarem pessoalmente pro calabouço do duque!
– Ha! Quero ver o que aconteceria quando os guardas vissem todo esse vinho ilegal de rubi que você deixa nos fundos! E se eu contasse pra eles antes?
– Suma daqui! – O homem corpulento arremessa o rapaz para fora como se não pesasse nada e pega um pedaço de madeira dos entulhos, mas antes que pudesse erguer a arma improvisada, o rapaz já tinha desaparecido. – Humph. Demônio. E você, o que tá olhando, forasteiro? A gente não costuma ver orelhudos pra esses lados.
– Ah… – Erevan volta a tomar consciência de todos os olhos o observando.
– Ou compra alguma coisa, ou some da minha frente igual aquele demônio. Já tive o suficiente de magia por hoje.
– Não seja mal-educado com viajantes, Thorganzinho. Sabe como é difícil termos visitantes de fora ultimamente. – Uma voz rouca grita de dentro da taverna – Entre, rapazinho!
Erevan passa rapidamente por “Thorganzinho” e vai até o balcão da taverna, onde uma senhora, igualmente mais larga do que alta, arruma uma bagunça de copos quebrados e bebida derramada.
– Mãe! Eu já pedi pra não me chamar assim na frente dos clientes. Eles precisam saber que eu sou ameaçador. Eu sou Thorgan, o quebra-ossos!
– E você precisa parar de assustar clientes! Quase perdemos um agora. – A senhora volta a atenção para Erevan – Me diga, rapazinho, o que vem fazer aqui em Pedregulho? Deve estar cansado, aqui é um longo caminho desde a floresta do Norte.
– Como a senhora sabe?
– Oh, é uma longa história. Já tive minhas aventuras por lá quando era moça. – A senhora fica corada e desvia os olhos, com uma risadinha – E você não é exatamente alguém fácil de esquecer. Se quer passar despercebido, é melhor parar de se preocupar em esconder o cajado e usar esse seu capuz para esconder as tatuagens e as orelhas. Todo mundo vai saber quem você é a quilômetros de distância.
– Ah… – Erevan se enrola mais no capuz, desejando sumir dali o quanto antes.
– Oh não, não se acanhe! Não temos nada contra magia aqui. O Thorganzinho só falou aquilo porque está de mal humor por ter perdido de novo no joguinho com os amigos.
– Mãe! Eu falei que aquele demônio está trapaceando!
– Então pare de jogar com ele! Agora pare de reclamar e limpe essa bagunça. Meus joelhos já estão velhos demais pra limpar esse chão. Venha rapazinho, você deve querer um quarto para passar a noite.
A senhora leva Erevan até um quarto no térreo, nos fundos da taverna. Era pequeno e com móveis velhos e manchados, mas parecia ser o melhor dali.
– Quanto pelo quarto?
– Ah, não se preocupe com isso. Fica por conta da casa, como desculpas pelo comportamento do meu filho. Ele é rabugento, mas tem um bom coração. – Ela entrega uma toalha e um pedaço de sabão para Erevan antes de sair do quarto – Quase me esqueci. O banheiro fica no final do corredor. O jantar vai ser servido em uma hora, e o café da manhã é às 6 da manhã. Caso precise qualquer coisa, é só ir até a sala por aquela outra porta, fico até tarde costurando na frente da lareira.
– Ah… obrigado!
– Não há de quê, rapazinho! Fico feliz de ver viajantes de fora passando por aqui. Quem sabe você possa me pagar me contando um pouco sobre você hoje depois do jantar? – Com um sorriso, a senhora fecha a porta e volta para os seus afazeres na taverna, deixando Erevan sozinho com seus pensamentos.
Erevan apoia a mochila na pequena cama, pega uma muda de roupas mais leves, o sabão e a toalha, e vai até o banheiro para se lavar. A água era fria, o vento entrava pelas frestas nas paredes gastas de madeira, e as tábuas rangiam e entortavam sob seus pés, fazendo um som desagradavelmente alto quando a madeira da sua muleta batia no chão. Mas apesar de velha, a taverna era limpa e arrumada, e não tinha a poeira fina das ruas. Apenas no tempo que esteve do lado de fora, o garoto já sentia as roupas e o cabelo cobertos de pó.
Estava com saudades de acampar na mata. Pelo menos sua estadia seria curta. Apenas iria descobrir onde estaria a árvore das lendas, faria algumas mudas e seguiria seu caminho em direção ao ponto de encontro para o Ritual das Duas Luas.
O garoto considera a oferta da taverneira. Não queria ver ninguém, mas também precisava de mais informações sobre a árvore Iporavã. Se precisava conversar com alguém, aquela senhora parecia ser a melhor opção. Erevan tinha a péssima sensação de que todo o resto da cidade seria mais como “Thorganzinho” se tentasse se aproximar.

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