A viagem o ajuda a recuperar o foco e tirar da mente todas as maneiras que poderia ter respondido Émile, parecido menos idiota, feito uma impressão melhor aos olhos do professor. É claro que está longe da hora e momento de se dar em cima de alguém; se Gustave quiser tentar a sorte, precisa esperar pelo menos até o sumido dar sinal de vida. Mas convenhamos, ele já foi melhor do que isso, também. Com muito menos, ele foi capaz de pegar o contato de testemunhas interessantes em outros casos, em situações até piores. Chega a ser incompreensível o quão idiota ele ficou naquele escritório.
O jeito é aproveitar o próximo encontro entre os dois, seja lá quando for… Ah, ele jogou uma chance perfeita fora, né? Eles estavam sozinhos, o cara tá preocupado com o menino… Era o pretexto ideal para pedir o número dele, sob a premissa de atualizá-lo sobre o caso. Criar alguma espécie de familiaridade, uma proximidade que o permita conhecer seu alvo melhor — especialmente, filtrar se há alguma chance real com o homem, ou se essa não é mesmo a praia dele.
Quando Gustave estaciona o carro, está preenchido por uma vontade de dar com a cabeça no volante. Pela frustração, pela vergonha, de certo modo, e para ver se dispersa todos esses pensamentos, a fim de focar no que importa de verdade: seu emprego. Se bem que se depender do resto da equipe, eles não vão deixar Gustave pensar em mais nada além do almoço. Assim que passam pelas portas de vidro, são cumprimentados pelo recepcionista Duchamp, que os cobra a marmita dele.
— Tá na mão, seu Pierre. — Bouchard ri ao entregar a sacola. A dupla troca piadas afetuosas; o tenente comenta algo sobre Duchamp estar engordando após a aposentadoria. O policial reformado, por sua vez, ameaça mostrá-lo que ainda está bem ativo. Um diálogo lamentável, mas Gustave não pode nem criticar direito. Duchamp é alguém a ser agradado sempre que possível. Se não fosse por ele, ainda estaria em Montreal, tendo que olhar para os dois lados da rua para não encontrar a ex-mulher — com ou sem o namorado novo. Isso sem contar os outros favores, especialmente os que ele precisou investir uma graninha para acontecer. Todavia, essa gratidão não é o bastante para justificar ter que assistir ele tentando desfazer o penteado do Bouchard. Vai ver é inveja, visto que ele já não tem muito mais para bagunçar…
— Vou entregar isso aqui. — O ruivo anuncia às paredes, pegando o restante das sacolas e adentrando o corredor principal da delegacia antes de anunciar sua chegada à uma sala aparentemente vazia.
Aparentemente, porque uma vozinha vem de trás de um dos computadores lá no fundo.
— A Major teve que sair! Disse que volta antes das quatro.
— Vou colocar a marmita dela na geladeira, então.
— Obrigada! Pode trazer a minha aqui, por favor?
Ele acata o pedido, entregando uma quentinha à sargento Leclerc. Ela não pede tempo em abrí-la e levar a borda à boca, provando o caldo do ensopado. Gustave gasta toda a paciência que ainda tem em observá-la fechar os olhos e contorcer o rosto devido aos condimentos apimentados da receita, agarrar a garrafa de chá gelado que tinha em cima da mesa, dar longos goles até esvaziá-la, suspirar e murmurar:
— Como pode? É tão perfeito…
— Sargento.
— Ah, Capitão, desculpa. Senta aí, vamos almoçar juntos. Tenho uns perfis pra te mostrar.
Agora sim, finalmente. Se tem alguém que dá para confiar nessa delegacia… é a Lisa, mas na ausência dela, a Leclerc até que é bem competente também. Um pouco inexperiente, mas está indo bem, pelo que viu até agora, e é a pessoa certa para conseguir controlar o resto da equipe… e quem mais for necessário.
O melhor é que à primeira vista, poucos diriam isso. Ela é a caçula do time, e não por pouco — acabou de chegar nos 30, pelo que Gustave lembra, e se assemelha mais à uma princesinha de desenho animado do que uma turrona feito a Major. Baixinha, gordinha, fala fininho, seu cabelo é todo crespinho, é aparentemente mansinha. Tudo no diminutivo. Só os olhos enormes dela que vão contra essa ideia, reluzentes e brilhantes. Apesar da maquiagem levíssima que Leclerc usa, não dá para não prestar atenção neles. Se os policiais do distrito fossem tão bons no trabalho quanto são em cuidar da própria aparência, já teriam sido promovidos à posições melhores.
Melhor deixar essa parte quieta, porque o que é que isso quer dizer sobre ele mesmo, né?
Voltando aos diminutivos, até mesmo o jeito que ela puxa o mouse para reacender a tela do computador é devagarinho. Não que isso seja demérito. Uma vez que Gustave destampa a própria marmita e dá a primeira garfada, nada disso importa. Ela pode levar todo o tempo do mundo a partir de agora, se quiser.
… E de fato, leva alguns minutos para a dupla voltar suas atenções à tela novamente. Pelo menos, aqueles instantes são os primeiros desde que acordou nos quais o ruivo sente alguma semelhança de calma. Então, numa rara decisão, ele prefere não reclamar.
Só que alegria de pobre dura pouco, e ele perdeu boa parte do que tinha no divórcio e na mudança. A bolha estoura quando Bouchard chega à escrivaninha perguntando onde estão os perfis.
Bem. Ainda tem batata frita o suficiente para ajudar a lidar com ele.
— Cadê as fotos? — O tenente insiste, colocando-se entre os colegas na frente do computador.
— Aqui, ó. — Leclerc clica numa aba do navegador de internet, revelando o Instagram da famosa Christine. À primeira vista, destacam-se várias fotos em tons neon, contrastadas à paisagens, livros e instrumentos musicais. Há poucas pessoas nas imagens, e é bem difícil discernir rostos entre elas. É só quando a página carrega por uma segunda vez que Bouchard aponta para um quadrado específico:
— Não é ele?
O próprio. Em frente a uma árvore florida, há um rapaz loiro abraçando uma menina de cabelos pintados de ruivo. Ele está de moletom, seu rosto está coberto de espinhas, mas sorri até mesmo com os olhos. Mikael Prater, numa foto datada de dois meses atrás. Tem até o username dele na legenda.
— O perfil dele é trancado. — A sargento dá de ombros. — Mas pelo menos consegui confirmar que essa era a Christine certa.
— Se eles realmente brigaram, não foi grave o suficiente para apagar as fotos com ele…
— Ah, eles brigaram?
— Foi o que o pessoal da universidade disse.
— Tem muito tempo?
— Parece que sim, tipo, semana passada.
— Ah, ela pode estar ainda tão mal que não quer nem ver essas fotos.
Ou ela tá fingindo que nada aconteceu, Gustave completa, em silêncio. Quando abre a boca, prefere soltar um comentário com menos acidez e mais seriedade:
— Precisamos cruzar nossas informações e encontrar um jeito de contatar a garota. Tenente, qual era aquele site da faculdade mesmo?
— Ah, eu tava falando com a menina da biblioteca… — Bouchard coça o queixo. — O sistema deles tá fora do ar desde semana passada.
Mas é claro. Porra, eles já vão ter que emitir uma caralhada de mandados, pra que mais um? Sem contar que vai se passar uma eternidade até liberarem a busca das informações de uma civil.
— A gente não pode pedir pra aquela amiga da Major? A professora lá da faculdade?
— É abuso de autoridade.
— Ah, Marie, ela não iria denunciar a gente por isso.
— E se ela brigar com a Major de novo? É uma maneira facílima de se vingar.
— Pera, quando que elas brigaram?!
Meu Deus, que povo fofoqueiro. Não que ele não queira ouvir a resposta, mas, infelizmente, alguém aqui precisa ter prioridades.
— Vamos evitar esse tipo de problema. — Interrompe. — Com ou sem briga de casal.
Ninguém questiona a escolha de palavras.
— Liga pro RH que eu falo com eles!
O grito vem da recepção. Novamente, ninguém questiona a ordem. Leclerc apenas assente, se levanta e segue até o corredor.
Ela só volta depois que terminam de almoçar, com um papel em mãos e um sorrisinho no rosto.
— Seu Pierre conseguiu a ficha dela.
Ah.
De fato, tem bastante coisa anotada: nome completo, data de nascimento, filiação, endereço, telefone residencial… até uma anotação de antecedentes criminais inexistentes. Não parece o tipo de coisa que eles deveriam ter acesso com tamanha facilidade, mas quem é ele para questionar isso tudo, né?
— Quem quer tentar ligar para a casa dela?
Bouchard e Leclerc o encaram em silêncio.
Frouxos.
A sala permanece imersa em silêncio até Gustave discar os pesados botões do telefone pré-histórico em cima da escrivaninha. A linha toca, toca, toca… e ninguém atende.
Uma segunda tentativa, por garantia. Dessa vez, para no quarto toque.
Pelo visto, o jeito é vencer pelo cansaço. Na terceira tentativa, só leva dois toques até a chamada ser rejeitada. Na próxima, a ligação vai direto para a caixa postal. A pessoa do outro lado da linha pode até estar determinada, mas para o azar dela, Gustave literalmente não tem nada melhor para fazer, então parte para a quinta tentativa.
Na sétima, alguém atende.
— Boa tarde. — Ele evita deixar sua satisfação transparecer na voz. — Aqui é da Polícia Provinci—
E desliga na cara dele.
— Para de rir, Francis. — Leclerc sussurra pelas costas dele. Para o bem de todos os presentes, o capitão opta por fingir que não deu para ouvir:
— Vou deixar pra Major tentar quando chegar. Ela que é a chefe, ela que fale em nome da delegacia. — Foda-se. — Vamos aproveitar e cruzar as informações dos depoimentos com o que você achou online, Sargento.
A partir daí, o que Bouchard revela sobre as entrevistas que conduziu não é nada revelador: são praticamente as mesmas informações que Gustave conseguiu. Mikael enchia a cara frequentemente, fumava socialmente, estava faltando às aulas com maior frequência nos últimos tempos, mas ninguém soube justificar o porquê disso tudo quando questionados. Não houve menção à amigos próximos, nem desafetos. Isso sem contar quem estava ali só pela obrigação e nunca trocou mais do que um "boa tarde" com o garoto. Leclerc, por sua vez, encontrou mais detalhes da vida do rapaz na Alemanha: sua irmã mais velha trabalha numa empresa chinesa, e seus pais parecem ter uma casa bem bonita — numa área bem afluente de Berlim, ressaltou. Dinheiro não era para ser um problema na vida dele, de acordo com a condição de vida da família.
— Será que é questão de orgulho? Eu odiava pedir dinheiro pro meu pai quando tinha a idade dele.
— Eu acho que era algum segredo, a família dele não devia saber. A Major me disse que quando ligou para os pais dele, não relataram nada…
— Vai ver esqueceram pelo choque, não? Depois que o susto passar…
— Calma, não é assim que as coisas funcionam.
Enquanto seus colegas debatem teorias, Gustave se pega voltando ao campus: à familiaridade com a qual a professora Villeneuve falava de Mikael, ao aluno que se desculpou mil vezes falando que queria poder ajudar mais, ao jeito que Émile encarava o vazio ao contemplar o que poderia ter feito de diferente na noite de sexta-feira. Ele quase nunca fala da família. Eu queria ser mais próximo dele, mas sempre tive vergonha. Ele é jovem demais para ter um fim tão triste. Seja lá o que foi, não foi por falta de gente que se importe. Ou o cara tava muito mal, ou ele estava com algum problema que mais ninguém poderia saber.
Considerando que Gustave esteja errado e Mikael ainda esteja vivo, onde é que o rapaz pode ter ido? O que é que ele foi fazer? De onde vieram as dívidas? Alguma compra exorbitante? Drogas, apostas? Será que tirou um empréstimo prevendo que teria que pagar a passagem de volta para casa? E se tiver sido um sequestro, considerando que a família dele não esconde o status do público? Sabe-se lá quanta grana a família Prater tem guardada lá em Berlim, ou em Xangai.
E essa Christine que não atende a porra do telefone, hein?
Quando Lisa retorna à delegacia, não traz consigo a resposta de nenhuma dessas perguntas, mas pelo menos tem uma declaração tão interessante quanto:
— Consegui as imagens do circuito interno do local da festa. O Prater ficou lá até cerca de meia-noite e quinze, e a última imagem que temos dele é indo embora num grupo com outros três homens.
— Alguma ideia de quem sejam?
— Nenhuma, nem temos noção de para onde foram. — Suspira. — O pessoal da 4ª e da 6ª DP estão vasculhando as câmeras de segurança de pontos-chave da cidade. Vocês conseguiram localizar a namorada dele?
— Sim, mas não conseguimos falar com ela ainda. — Gustave fecha os olhos, passando a mão pela testa. Ele nem conhece a garota e já tá pegando ranço dela só pela história do telefone. Bouchard chegou a tentar mais uma ligação, mas desistiu depois da segunda tentativa. Leclerc preferiu focar nas redes sociais, caçando outras relações que Mikael possa ter desenvolvido em Québec.
— Deixa isso pro pessoal da noite, então.
De canto de olho, é possível esgueirar que já são quase seis da tarde. Uma hora até o final do expediente.
Pela primeira vez em muito tempo, Gustave sente um alívio genuíno ao pensar em voltar para seu novo apartamento. É grande demais, vazio demais, entediante demais, mas porra, ele precisa deitar um pouco, abraçar o cachorro dele, e assistir qualquer jogo merda que estiver passando na televisão. Fingir por algumas horas que ele está feliz com o que tem. Talvez se o gringo tivesse feito isso mais frequentemente, Gustave não estaria ficando com dor de cabeça agora.

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