— A namorada deu sinal de vida?
Gustave foi o último a chegar à delegacia nesta terça-feira. Seus colegas já estão todos em seus respectivos postos, fazendo hora para começarem uma reunião marcada às pressas pelo Whatsapp há cerca de vinte minutos. Lisa está folheando um caderno, Leclerc está mexendo no celular, Bouchard está tomando um café da manhã atrasado. Sentando-se ao lado da chefe, o ruivo recebe duas respostas simultâneas:
— Nadinha. — A sargento não desvia o olhar da tela enquanto responde. — O pessoal da noite ligou, mas recebeu apenas um xingamento.
— Não, mas você nem imagina quem estavam atendendo quando eu cheguei. — O tenente dá um sorriso de canto, maroto, com direito a um farelo de pão no canto dos lábios. — A produtora do Québec Alerta.
— O que eles queriam? O Prater chegou na imprensa?
— Os amigos dele começaram a postar sobre o desaparecimento, para ver se conseguem achar alguém que o avistou. Um monte de gente marcou os jornais da cidade debaixo do post. Até onde eu vi, não publicaram nada oficial ainda, mas é questão de tempo.
Ainda debruçada sobre sua escrivaninha, a major limpa a garganta para chamar a atenção antes de anunciar:
— Inclusive, Martin, temos uma reunião sobre isso em duas horas.
— Temos?
— Temos, lá na faculdade. — Na faculdade? — Você dirige. Enquanto isso, Bouchard e Leclerc, vocês vão atrás da namorada. Conseguimos emitir o mandado para entrar na casa dela. A gente não pode ficar brincando de cabo de guerra numa situação dessas.
— No lugar dela, eu ia me achar a suspeita número um.
— Então vai lá convencê-la de que se ela não tem nada a dever, não precisa fugir da gente.
— E nós, Major? Vamos andando?
Lisa suspira, fechando o caderno:
— É melhor, né. Tem algo que você precise arrumar antes de sair?
— Por mim, nada.
— Empolgado? — Pergunta, em tom de escárnio. A resposta dele é um resmungo:
— Sem opinião.
A ideia dessa reunião emergencial não surpreende em nada — é procedimento padrão, afinal de contas. Hoje em dia, vários jornalistas acham que essa parte é meramente opcional, porém, é preciso contatar todos os envolvidos numa história antes de publicar algum artigo sobre a situação. Mas porra, marcar reunião? Tá que ele não vai reclamar de ser pago para ficar sentadinho no ar condicionado, muito menos de uma nova oportunidade de chegar no professor do Mikael Prater. Mas nada garante que Émile estará presente; se for o caso, então essa manhã será uma completa perda de tempo. Lá em Montreal, quando aparecia alguma ocorrência desse tipo, era só mandar algumas mensagens, assinar uns contratos digitais de sigilo, e pronto. Ou a Lisa tem a cabeça tão velha que não pensou nessa possibilidade, ou a faculdade ainda está presa no século passado.
— Eu sei que você nasceu assim, mas mais do que nunca, preciso que você fique com essa cara feia o máximo possível.
Gustave cerra os olhos, franzindo as sobrancelhas. A major solta um riso baixo. Filha da puta.
— É esse o espírito, Martin. Temos que fazer eles se arrependerem desse show.
— Pra que você quer meter medo neles?
— Porque essa reunião poderia ter sido um e-mail.
É bom saber que estão na mesma sintonia, pelo menos.
Leva pouco menos de uma hora para as cadeiras ao redor da longa mesa serem preenchidas. De certa maneira, Gustave é lembrado da situação na biblioteca universitária, tirando que dessa vez, o grupo que os cerca é um bando de senhores de terno, todos em algum estágio variado de calvície. Além disso, ninguém o ofereceu água saborizada durante sua última visita. Essas são pequenas diferenças irrelevantes; o que o interessa de verdade está a cinco cadeiras à sua esquerda.
Alguns dos alunos interrogados na véspera foram reunidos novamente, junto com outros que Gustave não reconhece. Tal como ontem, estão grudados na professora Villeneuve — que, inclusive, acenou para Lisa ao entrar na sala, arrancando um sorriso bem mal contido de sua chefe. Uma cena praticamente inédita. Entretanto, ele não teve muito tempo para ponderar sobre a situação. Logo atrás dela, na outra ponta do grupo de estudantes, Émile adentrou o recinto.
E aí, fudeu. Desde que as palavras “reunião na faculdade” foram mencionadas na delegacia, Gustave estava esperando por esse momento. Ele sabe muito bem que tem um trabalho a cumprir aqui, mas desde então, toda a sua concentração está dispersa entre o professor e o mundo ao redor dele. Ele chega até a conseguir dar um “oi” silencioso, balançando a cabeça na direção dele; Émile retribui o gesto, mas não olha na direção dele depois disso.
É uma pena que mal dá pra ver o rosto dele daqui. Ele está sentado ao lado da colega, e ela está bloqueando a vista. Ao se ajeitar na cadeira, até que dá para ver um pouco melhor, mas é um pouco conflitante dizer que vale a pena. O homem parece mais cansado ainda do que ontem, suas olheiras um pouco mais visíveis. Mexe um pouco na aliança, girando-a no dedo, e no silêncio petrificante da sala, é possível perceber que ele e a outra professora estão se comunicando do jeitinho deles.
A princípio, são apenas olhares — as sobrancelhas dela se curvam em preocupação, ele sacode a cabeça em clara negação. Mas a questão rapidamente evolui para pequenos gestos: ela põe uma mão no ombro dele, aperta levemente; ele segura o pulso dela, seu polegar deslizando por talvez tempo demais pela pele do antebraço dela. Soltam um ao outro em simultâneo. Ela não parece satisfeita com seja lá a conclusão que chegaram, pressionando seus lábios enquanto observa Émile se virando para a frente. O braço dele se move… Ele dá um tapinha amigável na coxa dela. Ela gira a cadeira e se apoia na mesa.
Cara, que merda é essa? Por mais que sejam próximos, por causa da tal pesquisa ou sei lá, é um pouco íntimo demais para dois colegas de trabalho, ainda mais durante uma reunião com a alta cúpula da universidade. Bem que dizem que esses grupos são desculpas para professores se envolverem entre si ou com alunos, né? Se ele fosse professor, seria a justificativa perfeita para só aparecer em casa tarde da noite. Não precisava nem ser com gente da faculdade, ele poderia simplesmente usar a reunião de pretexto…
Como de costume, seus devaneios sobre relações extraconjugais são interrompidos pela voz de sua chefe, que se levantou e bateu duas palmas antes de iniciar seu discurso. Os velhos tentam ajustar o que sobrou da coluna deles, os alunos guardam os celulares. Émile cruza as mãos, cotovelos na mesa, os nós dos dedos contra seus lábios secos. Gustave tranca os dentes e se força a desviar o olhar, focando num ponto vago na parede do outro lado da sala. Lisa já comentou uma vez que ele sempre parece mais assustador quando está distraído assim.
O que até que é uma coisa útil de se saber, mas ainda assim, novamente, filha da puta.
Enquanto ela tagarela sobre as informações que a polícia permitirá que a imprensa tenha acesso, há um comentário sobre o que eles, como testemunhas, são permitidos ou não a revelarem. Dá para ver pelos cantos dos olhos que as reações são imediatas. Mãos correm por folhas de papel, anotando garranchos que ninguém entenderá mais tarde. Alguém esqueceu de colocar o celular no mudo e está tentando fazer isso agora, da maneira menos discreta possível. Émile ajeita o cabelo, colocando uma mecha atrás da orelha. Um aluno deixa algo cair, um professor tenta disfarçar a própria tosse, Émile morde a tampa da caneta que está usando, o celular de Gustave vibra em seu bolso, alguém levanta a mão e fala sobre o direito ao amplo acesso à informação, alguém o corta, levantando um argumento sobre o direito à privacidade, Émile suspira e fecha os olhos, apoiando a testa no dorso de suas mãos novamente cruzadas. Lisa dá três batidinhas na mesa, um dos engravatados pede silêncio, Émile continua de olhos fechados, um terceiro indivíduo pergunta se não é melhor esperar os pais do desaparecido chegarem em Québec, e aí um quarto maluco entra na conversa falando “eles tão pouco se fudendo pra isso tudo”.
Gustave pigarreia, produzindo um som apenas marginalmente mais alto que o ruído de alguém chutando a perna de uma cadeira na outra ponta da sala.
— Com licença, mas tudo que estamos citando aqui é parte de um protocolo legal. — Ele se mantém monótono, porém firme. — Não cabe a mim, nem à Major Gauthier, decidir o que é que pode vir a público ou não. Ficaremos profundamente agradecidos se puderem nos ouvir com um pouco mais de compreensão.
— Não apenas por nós, individualmente, mas também pela família dele, que ainda nem sabe de todos os detalhes. O plano é que as aulas continuem normalmente, considerando que a maioria quase unânime do corpo estudantil não tem nada a ver com a situação. Eu sei que parece insensível, e eu peço perdão pelo desconforto, mas é o que foi nos foi solicitado.
O burburinho diminui à medida que ele e Lisa se pronunciam.
— Com licença, Major. — O engravatado mais careca de todos (o reitor, ele pressupõe) levanta a mão e pede a palavra.
Gustave se reclina contra a cadeira; a postura que deve manter segue em mente, mas ele se permite relaxar pelo menos a mandíbula. Os ombros de Lisa também estão um pouco mais baixos do que a última vez que ele olhou para ela, e ela mantém um sorriso sem dentes que ele já aprendeu que é um bom sinal. Lá naquela pontinha perto do outro lado da mesa, Émile parou de encarar as próprias mãos. Seus braços estão abaixados, e ele não mexe na aliança.
Seu olhar se levanta rapidamente, roubando uma olhadela na direção de Gustave, o que faz os dois se encontrarem por um instante. É muito rápido, mas dá pra ver que ele percebeu essa troca de olhares, levando um ligeiro susto, e depois… algo parecido com vergonha? Ele se volta para a outra ponta da sala imediatamente, sua compostura aparentemente intocada.
Mas Gustave sabe muito bem o que viu, e agora não consegue ouvir mais nada além da própria respiração.
Ah, caralho, era pra ele estar prestando atenção no careca. Depois a Lisa atualiza ele.
O resultado da reunião é um rascunho de comunicado à imprensa, assim como uma porrada de assinaturas de documentos de confidencialidade. Apesar de ter se atrasado, o tenente Richard foi bem útil quando chegou com seus cabelos encaracolados, seus óculos comicamente largos e redondos, e sua pasta entupida de documentos e modelos pré-preenchidos. Gustave não consegue parar de pensar que ele parece saído de uma sitcom. Felizmente, ele é muito mais inteligente do que parece, e mais organizado, também. Lisa e Gustave deixam ele assumir as rédeas; tão drasticamente que Gustave aproveita a situação para pedir licença e ir lá fora rapidinho conferir como as coisas estão indo na outra ponta da investigação.
— Ela se recusa a abrir a porta. — Bouchard o informa pelo telefone. — Marie tá tomando café com a mãe dela agora, pediu para eu deixar elas a sós.
— Então deixa.
— Tô deixando. — Seu colega solta uma bufada tão forte que Gustave consegue imaginar perfeitamente ele com a mão no bolso, trocando o peso do corpo de uma perna para a outra, uma expressão frustrada estampada em seu rosto. — Como foi a reunião? Seu Pierre me falou que o Richard brotou lá na DP feito um furacão.
— Ainda tá rolando, só que sem mim. Todos aqueles jargões me cansam, e eu também tenho mais pra fazer, não tenho?
— Não foi isso que eu perguntei.
— O que é que você quer saber? Só vi um monte de intelectuais metidos tendo um treco, quase comemorei quando a Major me liberou. Era pra eu voltar pra delegacia, mas se vocês ainda estão aí sem previsão de voltar, só me sobra esperar. Não vou ficar dando voltas em círculos.
— Eu tô quase voltando pra delegacia. Até agora, tudo o que eu fiz foi ser chofer.
— Como se eu tivesse feito muito mais do que isso. Pelo menos com o Richard aqui, eu não preciso levar a Major de volta pro posto.
— Volta sozinho, então. Pega um cafézinho pra gente na volta.
— Passo. Pede você pra mãe da menina.
Ele desliga antes que Bouchard comece a choramingar no ouvido dele.
Ou seja: não aconteceu nada do lado de lá, também. E o maior problema disso tudo é que ele é péssimo em ficar esperando.
“Eu vou ver nosso almoço enquanto isso,” digita antes de enviar a mensagem para Lisa. “Me avisa se vocês se liberarem antes de eu voltar.”
“Espera por mim”, ela respondeu cerca de quinze minutos mais tarde. Isso foi uns vinte minutos antes dele voltar à entrada do prédio e ficar lá plantado com uma sacola em cada mão. Dá para ouvir o vento sacudindo contra o plástico. No silêncio daquele corredor, tão imponente e belo quanto sempre foi em sua gloriosa história, é a única coisa que indica qualquer presença. Que ódio que isso tudo dá nele. Não é nem uma brisa agradável, porque o clima piorou ao longo da manhã, e ele não se preparou o suficiente para a queda de temperatura. Nessas horas, quase bate uma saudade de Montreal: apesar de tudo, pelo menos era um pouco mais quentinho lá. Um dos poucos aspectos positivos de sua terra natal.
Não dá nem para tentar se consolar pensando que daqui a pouco ele voltará para o carro. A reunião parecia estar se encaminhando para uma conclusão na hora que ele saiu, então por que estavam demorando tanto?
Sendo sincero, Gustave estava com um pouco de esperanças de encontrar Émile, mesmo que grudado na amantezinha dele. Seria uma chance de apreciá-lo de perto, se permitir observá-lo um pouco melhor. Ele não está surtado a ponto de ter procurado pelo professor online, mas o rosto dele não saiu de sua mente a noite toda. Especialmente depois que decidiu abrir o Grindr, dando like em qualquer perfil que se parecesse com o corpo que imaginou debaixo daquele suéter.
Não que ele tenha gasto tanto tempo assim divagando sobre o que toda aquela lã e poliéster estavam cobrindo. Foi bem pouco; na verdade, só o suficiente para aquecê-lo antes de um bom banho. Mas Gustave tem certeza de que a cintura de Émile não é muito fina, e presume que os braços dele são mais firmes do que o esperado. Ainda assim, ele é fácil de marcar — fica vermelho com os mais leves toques, seja por irritar a pele, ou por vergonha. Porque ele deve ser um pouco pillow princess, né? Se pudesse decidir, é isso que Gustave gostaria. Seria bem divertido ter que fazê-lo ceder às próprias vontades…
O ruído de passos cada vez mais próximos o puxa de volta para a realidade. Alunos começam a passar pelo portão, sussurrando entre si, tentando ser discretos quando o observam pelos cantos dos olhos. Um senhor que os segue está resmungando consigo mesmo, e Gustave se prepara mentalmente para caso o homem queira descontar seus problemas nele, seja lá quais forem.
Felizmente, é em vão, porque Lisa e Richard o ultrapassam numa marcha quase corrida. Pela cara dos dois, o motivo da pressa está nas mãos dele.
— Deixa que eu dirijo.
Richard agradece, quase choramingando. Lisa começa a falar alguma coisa com o colega, talvez mandando ele pelo menos esperar até chegarem no carro para destampar a marmita, mas Gustave não escuta muito. Por mais que estique o pescoço, não vê nem a sombra de Émile no caminho até a saída do campus.

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