A luz do luar respingou na sutil folga provinda das várias janelas daquela sala de reunião, a mesa de carvalho maciço era banhada por toda sua vasta extensão, servindo como uma espinha dorsal para um debate sobre o rumo de uma denominação que envolvia inúmeros fiéis. Pois, além da fé — esse guia moral que alimenta o vigor oculto das pessoas — todas as ações das famílias eram de grande importância social, já que o mundo afora observava essas figuras — embora em sua maioria estivessem em Lyra, com uma parcela em Sagitta — como exemplos para o cotidiano. Em contrapartida, elas se tornavam ainda mais próximas de Sândalo.
Não era por acaso que o dono daquela mansão, o patriarca Arthur Huberi, sentado na ponta do móvel nutria uma tentativa de conter sua fúria rangendo os dentes baixinho enquanto fechava os punhos até sangrar. Estava furibundo por uma razão justa, visto que perdeu seu filho numa noite estressante onde falhou em impedir uma etapa de um processo que iria custar vidas. Esse mesmo filho, no entanto, o havia salvado de inúmeras enrascadas.
Ainda que não tivesse êxito em viver seu luto da forma adequada, Arthur precisava espairecer para seguir em frente, avançando o próximo passo em busca daquela assassina dele.
Somente quando dois toques na porta aconteceram que o líder Huberi conseguiu recuperar sua compostura, causando uma impressão mais sóbria para quem quer que fosse. Logo, como o esperado, uma fresta surgiu na grande porta dupla, de onde emergiu uma voz suave de um transceptor que tinha uma presença quase pertencente àquela residência:
— Com licença, senhor. Os representantes das famílias Buey, Hamamelis, Belgorod e seus respectivos súditos já estão presentes em nossa recepção. Permita-me liberá-los para vierem até aqui?
— Autorizo. — O loiro retira um fio de cabelo da sua vista, colocando-o atrás da orelha enquanto traz seu carisma eloquente — Agradeço imensamente a informação, sir Morgan.
Retrucando com uma assentida com a cabeça unida de um som, o funcionário da casa se retira sutilmente, anunciando sua saída com o baixo impacto da porta fechando.
Silenciosamente, deixou escapar um suspiro de alívio numa tentativa de retornar a um estado minimamente consciente dos seus próximos passos. Afinal, seu sangue ainda pulsava devido à recente batalha com seu então camarada, Luiz Buloke, dado que era a pessoa mais próxima por perto que podia culpar de alguma forma e ainda assim, sentiu-se humilhado por tê-lo perdido de vista num confronto tão disputado, especialmente porque via a régua de força equilibrada entre os dois.
“Por que ela?! Não há uma razão lógica por trás da batalha daqueles dois ter sequer existido… Gabriel tinha sumido subitamente da floresta e arrumou tempo para uma briga até a morte com uma garotinha de quinze anos que roubou a graça do irmão mais preparado que ela? Só pode ser uma piada de mau gosto ou um pesadelo, mas…”
Sentado, o líder Huberi passa a mão aberta sobre o carvalho, traçando um movimento circular delicado para confirmar sua percepção tátil.
“Além dos meus sentimentos, toda essa questão sensorial é muito real para que seja parte de uma montagem peculiar da minha cabeça. Meu subconsciente não me trairia assim…”
A conclusão, melancólica como fosse, dava um senso de justiça ainda maior para ele. Não adiantava se martirizar enquanto uma das diretrizes não fosse respeitada como deveria. Acreditava que um líder religioso necessitava guiar todos à verdade, mesmo que precisasse recorrer a uma pequena falta de humanidade no processo. A lei era a lei quando se tratava de escândalos midiáticos. Quanto mais cedo abafasse toda aquela fragilidade interior, menos tarde lidariam com um avanço de confiança de seus inimigos.
Como antecipado, a porta dupla do salão de reuniões foi aberta por Morgan, que se pôs à frente dela e reverenciou as lideranças convidadas que adentraram o ambiente soturno, aproveitando a iluminação vacilante para se concentrarem essencialmente na conversa, com o tom emergencial que necessitavam ter.
Em ordem de chegada daqueles que atravessaram a entrada com um misto de elegância e curiosidade, entrou o líder da família Hamamelis, um jovem com o cabelo verde musgo, curto, com um leve volume na raiz, estilo espetado e franjas repartidas. Seus olhos amarelos eram ressaltados pela vestimenta discreta, com ênfase em uma jaqueta preta com forro de pelúcia, tornando-se tão brilhantes quanto a lua.
Estupefato com o crescimento da cria de seu saudoso companheiro, que se esvaiu como uma chama ao vento anos atrás, Arthur Huberi não conseguiu disfarçar a alegria ao vê-lo como uma figura de renome para o Sandalismo. Embora, devido à situação, não pudesse externar isso para não desviar o foco da importância do comunicado que o fez convocá-los até ali.
Dando continuidade aos olhos de cobra, logo atrás dele, passava um homem menos esguio, usando uma camisa roxa sobre uma camiseta ciano simples e colada, que evidenciava o desenho do corpo. Seu cabelo, com topete, compartilhava a mesma cor da sua calça preta, e sua aura discreta exalava, ao mesmo tempo que nutria um pouco de intimidação clara de uma figura pública. Esse era Santiago Belgorod, o atual líder da família Belgorod que garante a honra da graça do desimpedido Saint-Mersin.
Por último, entrou aquele cuja presença parecia carregar a força de quinze representantes. Suas irises azul-piscina cortavam como navalhas, desafiando qualquer indivíduo que não se garantisse veementemente sustentar um embate de alto nível. Sua feição, com cabelo loiro que se transformava da sutil luz das velas para o brilho do próprio Sol, harmonizava com sua capa de pele animal — especialmente, a do Rei da Selva — que deixava qualquer um amedrontado por não saber como essa havia sido adquirida.
Os passos dessa figura carregavam uma certa presença para os não líderes das famílias, que só conseguiam lidar com ela em sua plenitude quando Igor Buey, dono da graça com maior potência ofensiva do planeta caminhava pelos corredores das mansões dos membros desses herdeiros das graças provindas de Sândalo.
Morgan, por sua vez, sentiu como se estivesse presenciando o próprio Saint-Paul em pessoa naquele ambiente. Essa sensação só era possível devido à perfeita dominância dos poderes advindos daquela energia mística, algo que se materializava por uma sincronia ideal com o santo, de uma forma que nenhum outro havia conseguido anteriormente.
“Como nunca me acostumo com o mais forte? Sinto como se ele estivesse prestes a cortar minha jugular a qualquer instante.”
Por fim, as personalidades e seus acompanhantes ocuparam seus lugares, prontos para lidar com a quebra do silêncio, concentrando seus olhares no maior estrategista entre os doze.
— Queridos! Agradeço pela disponibilidade dos senhores e pela compreensão da urgência da situação em que nos encontramos. — Abrindo os braços, gesticulando com uma certa pontualidade para dar ênfase à sua expressão, o dono da casa interrompeu a inércia sonora. — Infelizmente alguns outros membros estão com complicações para se deslocar até Jardim dos Desejos, mas não há inconveniente, visto que essa reunião será pautada em relatórios que compartilharão as principais informações a todos. Conto com os senhores!
Arthur percorreu com os olhos uma trajetória para passar a tarefa a todos os profissionais que acompanhavam os ali presentes, terminando o caminho em seu homem de confiança na porta, agora fechada, que estava com um pequeno caderno de anotações.
Assim, Morgan assentiu com um singelo sorriso sem mostrar os dentes.
— Hoje foi um dia de inúmeras derrotas que inundaram meu peito de tristeza. — Levando a mão ao peito, na direção do coração, como sinal de respeito. — Primeiro, tivemos a vida de nosso irmão Johan Gilwell ceifada por aqueles que falhamos em conter… Isso, inclusive, foi a razão pela ausência da família nesta reunião. Minhas condolências.
Em sinal de respeito, todos fecharam por um momento os olhos, absorvendo a dor e inclinando levemente a cabeça.
Arthur sentiu uma fisgada, engolindo em seco, tentando conter a tristeza que transbordava de dentro dele para condensar sua indignação como liderança espiritual. Essa era uma situação laboriosa, visto que poderia soar antiético para alguém envolvido intrinsicamente no contexto tomar algum partido radical. Pois, para as pessoas de fora, a decisão não seria tomada pela regra, mas seria construída por uma parcialidade que fugiria do divino.
Ele queria evitar ao máximo essa percepção para manter sua imagem intacta e ser tão justo quanto o próprio Deus.
Então, voltou o olhar com uma frieza que ocultaria seus sentimentos, impondo uma aridez que visava a objetividade.
— Além disso, infelizmente tivemos a violação de um dos mandamentos essenciais para convivência harmônica entre nós. O quinto, que indica que não podemos tirar a vida de um semelhante em qualquer hipótese, foi violado pela filha de Luiz Buloke, Raissa Buloke. Como agravante para a sentença desta, que seguiu os caminhos do mal, ela atentou contra a vida do atual líder da família Huberi, o herdeiro da graça de Saint-Florença, e roubou a respeitosa graça de Saint-Katharos do pretendido primogênito Raimundo Buloke.
— Que absurdo! — Igor rosnou.
— Verdadeiramente um escândalo sem precedentes… — Santiago sublinhou, com seu típico baixo tom de voz.
— E ainda, pelo que soube, tornou-se um evento televisionado pela imprensa. — Uma terceira voz se juntou, com um tom jovial que ressaltava a vitalidade de Benjamin.
— Jura?
— Acredite se quiser, Buey. Acompanhei desesperado o noticiário, visto que Gabriel e eu tínhamos uma amizade invejável.
— Sinto muito por você também, jovem… — Santiago, com toda sua cordialidade, tentou confortar delicadamente Benjamin, que estava em tristeza, assim como o proprietário daquela mansão.
— Agradeço as palavras de conforto.
Desde sua meninice na orla de Araci, Benjamin, apesar de ser paparicado por grande parte das famílias como um prodígio a ser lapidado, nunca teve efetivamente um amigo naquela região que o acompanhasse nas aventuras. Por isso, quando contou com Gabriel nas visitas dos Huberi ao extremo do país, vivenciou o mais próximo disso. Mesmo que grande parte dessa amizade durasse pouco e o contato ocorresse em intervalos espaçados, essa ainda era a relação mais profunda que Benjamin tivera com alguém.
Contudo, nos últimos anos, devido à ascensão de ambos para as posições designadas na hierarquia da igreja, eles não mantiveram contato, pois viviam em extemos opostos de um país enorme. Somando-se a isso, havia a expansão dos radicais de Naya à espreita.
Ou seja, fazia dois anos que eles não se encontravam frente a frente e agora, só teriam essa oportunidade em um triste velório. Entretanto, a sensação que nutria em seu interior não lhe causava tanta amargura. Pessoalmente, o jovem já havia lidado com o assassinato brutal de seu pai por Paulo Hernanez logo em sua infância e talvez nunca mais sofresse tanto quanto naquele incidente em sua longa jornada na Terra.
— Amor! — Uma voz potente e chorosa, devido à perda de seu filho, emergiu de fora da sala com passos rápidos até o ombro de Arthur. Era sua esposa, Soraya Huberi, com um lenço sobre a boca. — Me perdoe por atrapalhar a reunião de vocês, mas surgiu uma novidade sobre os Bulokes que pode colaborar com o tema debatido aqui.
— O que aconteceu?
— Fui informada sobre o paradeiro de Luiz Buloke. Ele foi avistado na mansão Buloke indo perseguir a filha por conta do descumprimento do mandamento, mas foi surpreendido por uma revolta do seu outro filho, Raimundo Buloke, que decidiu acobertar a irmã e desobedecer ao pai.
— O quê? — Arthur arregalou os olhos.
— Ou seja, você está me dizendo que não bastou a irmã descumprir o quinto mandamento. Agora, o filho primogênito que teve o poder roubado descumpriu o sétimo, o sagrado mandamento para aqueles que almejam se tornar líderes futuramente? — Igor Buey tentava unir as peças do então incidente com um certo tom de incredulidade pela sucessão de acontecimentos repentinos.
— Essa família Buloke nunca deixa de nos surpreender…
“Particularmente, nunca imaginei que Raissa Buloke fosse mexer os pauzinhos para mudar tudo de forma tão abrupta assim… Eles são tão interessantes…”
Benjamin indagou em sua mente, não deixando que seu entusiasmo por aquela família que vinha movimentando o Sandalismo há três gerações ganhasse espaço num ambiente em que a hostilidade era a única definição ao que eles deviam sentir por esses pecadores.
O silêncio pouco se perpetuou pelo espaço, pois aquela informação causou uma reação em cadeia, gerando um senso de urgência para uma ação imediata. Portanto, não poderia ignorar a demanda, dado que o escândalo poderia adquirir proporções incontroláveis onde uma tentativa de apagar um incêndio com uma pequena mangueira seria inútil.
— Já tenho uma decisão.
Arthur assumiu uma postura firme, deixando claro seu pensamento sobre a forma como deveria lidar com aquela situação.
— De acordo com o que está escrito em nosso sagrado Divinal, o descumprimento de certos mandamentos que geram contenda em nosso convívio exige uma punição divina. Em relação a Raimundo Buloke, aplicaremos um castigo momentâneo para ensinamento; já para Raissa Buloke, a pena de morte, para que pague devidamente o dano causado à família Huberi. Sendo assim, conto com a ajuda dos senhores presentes e das demais lideranças por Sagitta e mundo afora para caçá-los em todos os cantos. — A firmeza nas palavras dele penetrou o íntimo de cada um, levando a um entendimento imediato: era preciso agir o quanto antes — Ademais, embora saibamos da predisposição de Luiz Buloke para punir seus filhos, não devemos contar com sua colaboração para questões que perpassem depoimentos sobre os acontecimentos recentes, pois, como pai, ele se transforma num pilar instável para nossa busca. Ainda assim, solicito como uma medida ética que não conste esse aviso na transcrição à família Buloke, para evitar um desconforto entre as famílias. Deixem essa orientação apenas para esta reunião.
— Entendido! — exclamaram os assistentes em uníssono.
— Tendo isso acordado, encerramos a primeira reunião do protocolo “Caça à Anomalia”. Conto com vocês para garantir que nossa fé prossiga em normalidade. Amém!
“Seu pai não deixará que ela saia impune, meu filho.”
Assim, as famílias serventes percorriam todo Jardim dos Desejos em prol dessa busca incessante por uma justiça divina antes que uma exploração dos Seguidores de Naya a essa ferida aberta dos Fiéis a Sândalos aconteça.
Eles evitariam a todo custo que essa caça às bruxas fosse interrompida, pois os servos do rei maligno estavam em vantagem. Mesmo com a partida dos inimigos principais daquela cidade, um novo conflito tomaria lugar, tingindo flores daquela cidade de sangue e assim, também causaria um reboliço ainda maior do que os irmãos Buloke poderiam imaginar.
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