Mais tarde depois do banho, Mattew me guia até o quarto de hóspedes, ele é realmente muito grande. Os móveis são clássicos com madeira nobre entalhada, tem cheiro de pão de mel e antiguidade. -Marie já preparou a sua cama então fica à vontade para descansar. Ele me alcança um travesseiro e sorrindo como de costume acrescenta -Depois de tudo que tu passou hoje, acho que o descanso não vai cair mal hein. Agradeço ao garoto enquanto ele fecha a porta me desejando uma boa noite.
No instante em que ele fecha a porta me deito e passo um bom tempo tentando cair no sono. Porém a curiosidade toma conta de mim, começo a fuxicar todo aquele enorme quarto. Observo as réplicas de pinturas francesas em temas floridos, passo a mão pelo estofado das cadeiras e me deparo com uma estante branca de livros. Ela é incrivelmente bonita, diferente de qualquer estante que já vi, ela tem detalhes complexos e padrões de borboletas simétricas nas pontas. Olhos para os livros dentro dela, são diversos títulos, alguns em inglês, outros em português. A maioria deles são romances históricos e livros de informação. Até que dentre eles um se destaca é um livro de capa dura feita em couro branco e letras douradas. “Memories” o título simples também se sobressai aos outros, que eram complexos. Então, pego o livro, começo a tatear e sinto uma textura muito macia, seu cheiro é antigo também. Abro e a primeira página contém um dedicatória, essa em português “Para alguém que para sempre amarei” -Nossa, ele deve ser importante -penso. Tenho um sentimento de estar invadindo a privacidade de alguém mas a curiosidade me faz continuar. Percebo que há uma data em baixo 19- o resto da caneta está borrada. De repente, das páginas do livro caem uma foto danificada, parece ser um retrato de família. Nele há uma mulher loira junto de um homem bastante sério que foi rabiscado com uma caneta e no colo dele está um garotinho de olhos claros emburrado. Ouço barulhos de passos então guardo o livro e corro para a minha cama fingindo ter pego no sono, não quero ter a fama de fofoqueiro (eu sou mas não irei admitir ). Fecho os olhos e ouço a porta abrir, os passos começam a ficar mais perto, alguém para ao lado da minha cama. Meus cabelos são acariciados por mãos pequenas e quentinhas e em uma voz baixa a presença diz -He met a good one…good night my sweet boys. (Boys?) Percebo ser Marie, não sei como reagir ao que ela disse, me esforço para não abrir os olhos, tentando continuar minha péssima atuação. A porta se fecha, respiro aliviado, abrindo os olhos, viro para minha direita e noto uma bola de pelos, é um gato persa, marrom (provavelmente, está escuro não vejo muito bem) e gordo (Isso eu tenho certeza). Chamo ele estalando os dedos, ele prontamente vem em minha direção ronronando. O acaricio, em resposta ele deita no meu peito e fico sem escolha a não ser dormir com ele.
Na manhã seguinte, sábado, o gordo felino me acorda com lambidas ásperas no nariz além de ronronar compulsivamente. Estou encantando com isso, meu contato mais próximo com um animal fofinho foi quando visitei minha avó em Porto Alegre há uns 6 anos atrás. Meu pai nunca foi a favor de bichos em casa, principalmente os gatos, ele acreditava que iríamos crescer apegados demais em um. E é claro, homens viris não tem apego à nada, nem nas suas próprias vidas…
-Ele gostou de ti. Levo um susto. Enquanto olhava distraído para o teto do quarto, Mattew sentado ao lado da cama me encarava discretamente com um pequeno sorriso no rosto, como sempre. Assim que o bichano ouve sua voz, o gato corre para se esfregar no rosto do garoto que o apresenta. -Esse é o Wurly. É por causa do chocolate que mais gostava quando era pequeno. Ele pega Wurly no colo que mia em protesto. -Ele não gosta de muita gente, se sinta sortudo. Ele ri como uma criança e o gato continua a miar até ser solto na cama novamente. -Que bom, é bom saber que alguém gosta de mim. Digo enquanto acaricio as costas de Wurly que se deitou ao meu lado. -Olha não é só ele que deve gostar de ti. Mattew diz isso olhando para mim, porém por algum motivo não faz contato visual, ele olha atentamente para minha mão sobre o gato. Ele é confuso, não sei o que ele realmente pensa. Enquanto um estranho silêncio penetra o quarto, o garoto se senta na cama e prossegue a dar carinho em Wurly também. Agora nós dois nos encontramos relaxando e se divertindo afagando a grande bola de pelos. Noto que seu semblante parece feliz, não o sorriso comum é um sorriso doce, mais doce do que o de costume. E assim sem perceber estou sorrindo também, nós dois estamos sorrindo sem trocar olhares diretos ou palavras. Até que acidentalmente nossas mãos se tocam (que merda!) ele me olha. -Ele deve pensar que sou nojento, preciso me desculpar. Ele deve estar irritado comigo! Penso. Assim que ameaço afastar minha mão sinto a dele sobre a minha, segurando forte ele diz -Ele vai ficar triste se tu parar. (Aquela estranha gentileza de novo, ele deve ter percebido e tá com pena de mim. Sou um idiota.) Não consigo responder então só olho para baixo e aceno com a cabeça.
Depois de uma sessão de quase meia hora de carinho, Wurly acorda enquanto Mattew quase cai no sono. -Acho que tem alguém com fome. -Quem? Eu ou gato? -Nos três com certeza. O garoto sonolento dá uma risadinha, e se espreguiça. O bocejo dele é fofo, até com o cabelo bagunçado ele consegue ser lindo, diferente de mim. Droga, sempre perco para esse cara. -Aceita torradas? Eu preparo, a Marie saiu mais cedo hoje já que é sábado. -Aceito. Quando vejo ele saindo me dou conta que é sábado! E estou a mais de 24 horas fora de casa! Não sei se fico empolgado com a informação ou com medo do que vai acontecer comigo em casa depois. Na real, foda-se. Preciso de um tempo longe do meu irmão, por mais que meu pai ainda custe entender isso. E não é como se pudesse fazer alguma coisa minha mochila ficou na escola junto do meu celular e também não tenho coragem de pedir o telefone fixo de Mattew para fazer a ligação.
Me levanto da cama, e analiso meu reflexo no espelho a minha frente, meu cabelo está bagunçado como sempre e estou usando pijamas largos confortáveis de seda azul, provavelmente eram de Mattew. Ele realmente tem roupas bonitas, até os pijamas dele são estilosos - penso.
Pelo reflexo vejo a estante de livros, percebo que não guardei muito bem o livro branco, ainda estou meio intrigado com a foto. Quem será que eram aquelas pessoas? Será que são da família do Mattew? E por que o rosto daquele homem estava riscado. É meio suspeito levando em consideração que Mattew nunca mencionou os pais dele e nem sequer há indícios que eles vivam com ele aqui. Deve ser solitário. Disso não tenho como reclamar, minha família é muito grande e presente demais em certos momentos, estou sempre pensando neles e envolto nos problemas dela. - Érico, british toasts! Ouço a voz como o sotaque engraçado do inglês me chamando ecoar pela casa.
Érico, um garoto gay e introspectivo, vive uma vida complicada em um cidade do interior do Rio Grande Do Sul. Se sente sufocado pela família e deslocado na escola, seu único refugio é criar histórias e fazer análises de mundo pessimistas. Em uma noite, decide escrever um personagem com tudo aquilo que mais despreza, secretamente inveja, mas e se ele não fosse só um personagem e ,sim, alguém real. Será que Érico ainda o odiaria? A resposta virá de forma turbulenta.
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