— Eles ainda estão na casa da namorada. — Duchamp informa assim que passam pela recepção da delegacia. O cheiro de café que se espalha pelo recinto é reconfortante o suficiente para compensar a falta de novidades. Caralho, que vontade de engolir a garrafa inteira.
O caminho de volta foi estranhamente silencioso, com os únicos ruídos dentro do carro vindo do motor velho e de Richard trocando mensagens de áudio com os mais variados destinatários: seu supervisor, sua irmã mais nova, e, pelo que Gustave conseguiu ouvir, o açougueiro. Volta e meia, Lisa suspirava, mas era tão baixinho que acabava abafado pela buzina de um outro motorista, ou alguém gritando na rua.
Richard nem se importa em ficar para tomar um copinho de café; apenas agarra o que deixou para trás e agradece a cooperação de todos. Lisa, pelo outro lado, corre na direção do microondas, enfiando a marmita dela lá dentro. Duchamp não se emociona em mexer um único fio de cabelo, e é provavelmente como esteve nas últimas horas. Não tem nenhuma mensagem nova nem do Bouchard, nem da Leclerc.
A reunião cumpriu seu propósito. Os depoimentos de ontem já foram todos transcritos. A mesa dele está limpa. São duas da tarde de terça-feira, e Gustave já não tem mais o que fazer pelas próximas cinco horas. Claro, ele poderia organizar um pouco o resto do escritório, ou até agilizar alguns casos de menor gravidade que se acumularam ao longo do fim de semana: batedores de carteiras, problemas entre vizinhos, itens sumidos, briguinhas de bêbados. Ele pode até mesmo, Deus o livre, sentar com Duchamp e fingir que está tomando conta da entrada. É sempre uma possibilidade, mas está abaixo até das últimas instâncias.
Pensando pelo lado positivo, ele está reclamando num lugar quentinho e debaixo de um teto, ao contrário da equipe de resgate. Eles estão agora em alguma mata no meio do nada, cerca de uma hora de distância da civilização, tendo que controlar uns cachorros do tamanho deles para fazê-los farejar a lama em todo e qualquer ângulo possível. Serão forçados a ficarem debaixo da chuva que cairá em breve, só para garantir que um noia realmente não foi assassinado e jogado de um barranco.
Até porque, sinceramente — por que alguém iria atrás de Mikael Prater? Algum desentendimento prévio? Agiotas pareciam ser os culpados mais prováveis, mas já conferiram os lugares de sempre, e não tinha muito a ser descoberto por lá. Nada novo desde a última vez, na verdade. A namorada é uma teoria ainda a ser desenvolvida. Os pais chegam em dentro de algumas horas e podem até trazer alguma informação interessante, mas ele nem estará aqui para ouvir em primeira mão, então, por hora, é o mesmo que nada.
Gustave opta por sentar-se à mesa de Bouchard, puxar o celular, e abrir o Grindr.
Em algum ponto após as quatro da tarde, um Bouchard exausto e uma Leclerc sorridente passam pelas portas de vidro, logo na hora em que Gustave termina seu desafio diário no Candy Crush.
— Bem-vindos — boceja Duchamp, tendo se movido um total de trinta centímetros desde a hora do almoço. Desde então, está assistindo filmes de baixíssimo orçamento no YouTube, no alto falante, deixando os efeitos sonoros mais bizarros da Terra inundar o local. Tomara que ele se manque e abaixe um pouco o volume agora que não estão mais a sós. Desde que Lisa foi para uma outra reunião do comando, Gustave está sendo sujeito a essa tortura.
— E aí, como foi?
— Eu tenho certeza que não foi ela. Se eu estiver errada, ela tá gastando um talento que poderia fazer ela ganhar um Oscar.
— Ela mente muito mal. — Bouchard se senta na mesa da recepção, ignorando o olhar repreensivo que Gustave lança a ele. — Ela tentou nos enganar com o depoimento.
— É, ela amenizou bastante o término deles. — Leclerc, ao menos, se encosta na parede do corredor invés de em algum móvel. — Primeiro falou que foi pelo telefone, depois que foi ele que pediu pra terminar…
— Porra, não dá pra confiar em nada do que ela contou, então.
— Não, calma. — O olhar dela chega a brilhar, sinistros de reluzentes, quando sorri novamente. — Eu lembrei a ela do que poderia acontecer se as informações não fossem totalmente legítimas, aí deu tudo certo.
— E o que aconteceu de verdade?
— Eles brigaram e ela pediu para terminar. Ele não queria, ela insistiu e tentou expulsar ele da casa. Ele surtou, começou a gritar, ela foi tentar empurrar ele até a saída… e aí ele reagiu…
Eita.
— Revidou nela?
— Não, ela deu um berro e ele parou com a mão no ar, gritou de volta e saiu sozinho. Parece conveniente demais, mas ela jura que é verdade mesmo.
Fica difícil de acreditar com tantas versões.
— Enfim, a gente vai precisar de um mandado de busca pro apartamento dele, e também chamar os colegas dele para depor de novo. — Gustave levanta uma sobrancelha frente ao comentário de Bouchard, que explica da maneira mais sucinta possível: — O moleque é drogado.
Voilá. Foi uma overdose. Tudo se encaixa perfeitamente: o comportamento, os desentendimentos e as notas ruins são todas consequências dos vícios. As dívidas são para pagar os traficantes, e não é nenhum bicho de sete cabeças entender porque ele encheria o cu de drogas depois de ser expulso de casa e levar um fora da namorada na mesma semana. Se você for numa dessas festinhas de faculdade, consegue se chapar até de água sanitária. Agora só falta encontrar o corpo, que deve estar apodrecendo nos fundos de algum posto de gasolina na beira da cidade.
— Cara, a gente tem que fazer algo sobre essas festinhas. — Seu colega segue resmungando. — Só Deus sabe as atrocidades que essa galera faz.
— Como se a gente tivesse pessoal para isso. — Leclerc se aproxima, levantando o dedo. — Ou você vai querer ir lá tomar conta de um monte de criança alucinada?
O silêncio dele é resposta suficiente. Após alguns instantes, ele dá de ombros e conclui:
— Bota os recrutas pra fazer isso, então.
— Nem pensar. Eles vão provar e se viciar também. — Duchamp finalmente pausa o filme, juntando-se à conversa. — Aí, nesse caso, só vale a pena se eles trouxerem amostras pra gente poder averiguar a qualidade da coisa–
— Tô fora. — Gustave se levanta, determinado a cortar aquela linha de pensamento o quanto antes. — Bouchard, Leclerc, vão trabalhar no relatório do depoimento. Mesmo que a Major não volte antes do fim do expediente, tem que ficar pronto o mais rápido possível. Qualquer coisa, eu fico um pouco mais tarde para entregar a ela.
Claro que o ideal é que isso não aconteça, mas pelo menos já ficam avisados, e não perdem mais tempo falando merda. Leclerc é bem tranquila de lidar, e Bouchard é besta o suficiente para conseguir dar a volta nele sem muito esforço, mas Duchamp pode ser um porre quando está a fim. Deixar os três desocupados no mesmo recinto é pedir para a enxaqueca dele atacar com tudo.
— Mais algo além disso, Capitão?
— Rola um cafézinho depois que a gente terminar?
— Só se for na casa de vocês. — Gustave dá uma olhadinha no relógio. Quatro e trinta e três. Eles devem terminar um pouco antes das seis, então… — Eu libero vocês um pouco mais cedo, assim que terminarem. Vão curtir o pôr do sol, adiantar as compras da semana, sei lá.
— Isso vale para mim também?
O policial segura um suspiro.
— Olha, Duchamp, se você quiser, nem precisa esperar eles. Vai querer ajudar? Porque eu posso ficar aqui na recepção.
— Não, de jeito nenhum. — Ele se levanta com toda a energia e vigor que acumulou ao longo do dia. — Vou até aproveitar para passar numa confeitaria e comprar um bolo para te dar amanhã, Martin.
— Não precisa, é minha folga.
— Poxa, que pena.
Qualquer arranjo tá valendo desde que ele fique em paz, sério. O humor dele já dá uma melhorada quando consegue ficar finalmente sozinho, em silêncio. Quando seu par de colegas entrega o relatório pontualmente às cinco e cinquenta, ele quase sorri, até. Nenhum dos dois fica por mais tempo do que é necessário para Gustave folhear o documento, fazer que sim com a cabeça e deixá-lo na mesa da major. Tá que depois que eles vão embora, ele volta e lê tudo com mais calma, mas isso não é da conta deles.
Nem deles, nem do pessoal da noite. Todos o cumprimentam com níveis variados de empolgação; alguns mais tagarelas do que outros, mas nenhum chega perto de o ignorar. Na verdade, a reação mais aversa vem da própria Lisa, quando chega quarenta minutos após o fim do expediente.
— Você sabe que não vai ganhar extra por ter ficado até agora, né?
— Mas será que eu tenho mesmo mais o que fazer em casa? Aqui tem climatizador e internet de graça.
Como esperado, ela revira os olhos até Gustave ver o branco deles.
— Vai tomar conta do teu cachorro, Capitão. Até quinta.
Ela mandou tomar conta só do cachorro, então depois que Buddy está com água fresca e comida servida em suas tigelas, Gustave escolhe ignorar mais uma vez a pilha de roupas em sua tábua de passar. Amanhã é dia de folga mesmo. Não tem para onde ir, vai sobrar tempo… parece um problema para o ele do futuro. Melhor isso do que passar o dia na cama vendo vídeos.
Logo, a única obrigação que resta por hoje é levar o bichinho para passear. Assim que Buddy estiver satisfeito com o jantar, mas antes que Gustave fique confortável demais em casa, de preferência — então ele joga um moletom por cima da camiseta de algodão e calças cargo que usou para voltar do trabalho, sem se importar em colocar meias por debaixo do chinelo.
O ruivo se arrepende assim que pisa na rua, devido ao ar noturno que o acerta em cheio enquanto fecha a entrada do prédio. É o suficiente para cobrir seu corpo de arrepios, descendo pela nuca e espinha como uma cascata. Buddy late para algo, como se quisesse chamar a atenção. Gustave se vira para descobrir o que é.
Quando vê um vislumbre prateado, o mundo imediatamente para nos eixos.
Muito mais aquecido do que ele, Émile vem subindo a rua, tendo acabado de atravessar da calçada onde Gustave está agora petrificado. O homem está terrivelmente elegante, mesmo trajando calças de moletom, tênis surrados de tão gastos, e um suéter uns dois tamanhos maior do que o necessário, com uma estampa breguíssima de folhas de bordo azuis. Junto com as sacolas retornáveis que carrega, é um forte contraste com os sobretudos e malas que usa no local de trabalho. Pelo menos o cabelo dele está tão bagunçado quanto antes, muito mal contido no lugar por fones de ouvido quase do tamanho da cabeça de Émile, a faixa preta se destacando contra os fios claros. E o que talvez seja a gota d’água para Gustave: ele está usando uns óculos arredondados, de armação fina. Um pouco antiquados, mas ficam perfeitos nele.
Ele parece bem distraído, até. Não que ele tenha muita noção sobre o “normal” de Émile, considerando que o viu apenas duas vezes… e ambas foram situações terríveis que acabariam com a paz de espírito de qualquer um. Mesmo assim, levando isso tudo em consideração, é fato que o coração de Gustave está quase saindo pela boca com o susto, e não dá sinais de ser capaz de desacelerar tão cedo. Porra, ele tá todo largado, mas ainda continua tão atraente quanto antes. Chega a deixá-lo lerdo, considerando quanto tempo leva para reagir ao fato de que Émile para na casa em frente ao prédio dele, sobe a escadinha da entrada, destranca a porta e entra.
… Quê?
Ele mora aqui? Bem aqui, só a uma faixa de asfalto de distância? De frente pro apartamento dele? Tá que Gustave nunca prestou muita atenção nos vizinhos — muito mal lembra os nomes dos moradores do próprio prédio, vá dizer guardar os rostos do restante do quarteirão — mas com certeza lembraria se tivesse visto um homem como Émile rodando por aqui.
Se bem que sendo razoável, ele mesmo não tinha achado o homem grandes coisas até o ver de perto. Além do mais, os horários de trabalho deles não devem bater muito bem, então tiveram poucas oportunidades de se encontrar. Existe uma chance real de Gustave simplesmente só nunca ter reparado nele.
Caralho…
Se é isso mesmo, então não tem outra explicação — só pode ser o destino, ou alguma outra dessas merdas bonitinhas de contos de fadas, porque é coincidência demais para conseguir explicar. Somado ao fato de que Émile não saiu da cabeça dele nas últimas trinta e seis horas, Gustave precisa de alguma justificativa para essa fixação. É difícil alguém causar alguma impressão nele, vá dizer tornar-se memorável assim; seu emprego exige que converse com todo tipo de gente, e seus nomes e rostos se tornam borrões indistinguíveis numa velocidade constante.
Mas os olhos acinzentados de Émile seguem lá, mesmo que em segundo plano, incessantes apesar de sua vergonha, evitando o olhar de Gustave. Dá vontade de rasgar esse véu na própria mente e adentrar esse espaço, agarrar pelo queixo essa imagem de Émile que o perturba, fazê-lo encarar Gustave diretamente. Falar com ele, sorrir para ele, conhecer e ser conhecido. Ele quer saber mais sobre o professor — sua rotina, hábitos, história pessoal, gostos, desafetos, comidas favoritas, como prefere ser beijado, as posições que lhe dão mais prazer, como que a voz dele iria soar ao chamar por Gustave em meio a um orgasmo, porque ele é tão cativante, porque é que eles estão cruzando caminhos logo agora, porque Gustave não consegue parar de pensar nele?!
É porque ele já passou tempo demais sozinho? Por que ele começou a se permitir sonhar com uma vida que nunca teve? Será que lá no fundo, ele realmente não quer nem um pouquinho a estabilidade de um relacionamento? Ou será que é justamente por Émile parecer ser tão diferente de si, mais inalcançável do que os próprios desejos? Talvez seja só isso mesmo, a porra daquela aliança no dedo dele enfeitiçando Gustave e o convidando a se projetar no professor. Ele está acostumado a estar do outro lado da situação, honestamente; jamais imaginou que seria ele no lugar dos tantos homens que o cortejavam ao longo da última década por esse mesmo motivo.
No final das contas, pode ser só mais um sintoma dessa crise de meia-idade brutal que está atravessando, talvez o mais alarmante. Um indício de que ele surtou de vez. Não o surpreende se for o caso, mas mesmo que seja pura psicose, ele está pouco se fudendo para isso. Ele não tem mais nada a perder mesmo. Émile — ou pelo menos o conceito dele, a princípio — conseguiu acender algum fogo em Gustave, uma faísca que nem o próprio imaginava possuir em si. A vontade de viver uma aventura, a adrenalina da perseguição, o gosto aguçado do proibido, o desejo de possuir. Quem sabe até uma chance de finalmente ser feliz, apesar de tudo.
Gustave faria qualquer coisa por isso agora.

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