Gustave mal consegue três horas de folga antes do celular começar a disparar com notificações, bem no meio da série de tríceps dele. O suor em seus dedos chega a dificultar a tarefa de desbloquear a tela, mas sendo sincero, ele também não está com muita pressa para ler o que Lisa mandou, seja lá o que for.
Pelo menos está por escrito — se Lisa tivesse ligado só para avisar que os pais de Mikael Prater chegaram no Canadá, Gustave não sabe se teria conseguido fingir cordialidade. Além do comunicado, há um breve comentário sobre as dificuldades que a sargento Leclerc encontra para entrevistá-los, visto que o francês do casal é quase inteligível. Sua resposta é um desejo de boa sorte. A chefe agradece quase de imediato, falando que vão precisar mesmo. “A mãe até vai, mas o pai muito mal conseguiu nos dar bom dia”, escreveu.
“E como eles estão se comportando?”
“A ficha da mãe ainda não caiu. O pai está em silêncio completo, mas não sabemos se é pela barreira linguística, ou por outro motivo.”
“Me avisa se acontecer algo relevante.”
A mensagem não passa de formalidade. Se há uma certeza no mundo, é a de que Lisa não hesita em perturbar Gustave quando precisa dele para qualquer coisa. Não vale nem colocar o celular no silencioso, porque a notícia vai chegar nele independente de sua vontade. Logo, o jeito é aproveitar essa paz enquanto ela ainda dura, mesmo que ela se manifeste em fazer um monte de obrigações. Dar um pulo no mercadinho, finalmente passar a ferro aquela pilha de roupas, levar Buddy para mais um passeio (a pedido do próprio), esse tipo de coisa. Ajeitar um almoço simples e ligar a televisão para ouvir o noticiário… sentar-se à janela e aproveitar a vista.
“Aproveitar” é quase uma força de expressão, porque ele fica mais tenso a cada minuto que passa. É como ir ao campus — toda vez que vê um relance de cabelos grisalhos ao vento, a barra de um sobretudo se sacudindo, até mesmo as pontas de um cachecol azul, Gustave curva o pescoço e segue brevemente a ilusão que se apresenta tão distante. Nunca dá em nada, é claro, mas isso não o impede de manter suas esperanças firmes. Na verdade, elas só se fortalecem a cada nova ocorrência.
Não dá nem para culpá-lo, né? É a chance perfeita para puxar conversa, mesmo que ele precise gritar do segundo andar do prédio para tal. Um “e aí, vizinho” meio besta, ou um “nossa, que coincidência” bem simples já bastaria. São pontapés inofensivos que permitiriam Gustave se apresentar devidamente fora do horário de trabalho, sem o fantasma de um jovem desaparecido se colocando entre eles. Não vai levar a nada, a claro, mas isso é só a princípio. A longo prazo, quem sabe, pode o levar a tantos lugares…
Um fator particular que alimenta suas esperanças é o fato de que a casa do outro lado da rua parece deserta. Não tem crianças correndo, ninguém varrendo a entrada, nenhum entra-e-sai que o cotidiano de uma família geralmente exige. Sem choro de bebê, sem gente voando escada acima ou abaixo, sem um pulinho em casa para almoçar, nem cheiro de comida, ou fumaça saindo da chaminé. Não que seja possível deduzir muito do que se passa lá dentro, sendo justo — daqui, só dá para ver a porta e a garagem. A janela da sala está coberta com cortinas. Esgueirando o olhar pela janela acima desta, a maior do segundo andar, só dá para ver parte de uma cama, cuja cabeceira está debaixo da moldura e fora do campo de visão. Pelo menos parece grande — larga o suficiente para um homem se deitar e relaxar, com espaço de sobra para que outra pessoa possa acompanhá-lo.
E é claro, além disso tudo, o ponto mais marcante da casa para Gustave é que, com a exceção da entrada de Émile ontem à noite, ele não viu mais ninguém circulando pelo terreno. Nem o próprio Émile, diga-se de passagem. Tudo bem, ele deve ter saído para trabalhar antes dele acordar, mas e o resto da família? Essa é uma casa grande demais para alguém viver sozinho — dois andares, portões amplos que dão para uma garagem aparentemente subterrânea, e pelo menos mais um ou dois quartos além daquele cuja janela fica de frente para ele. Se depender das árvores que vê no horizonte, deve ter até um quintalzinho dos fundos. Ou seja, a metragem total deve dar uns quatro do apartamento de Gustave, sem contar o tal quintal hipotético. Desconsiderando o quão insuportável deve ser morar num lugar desses sozinho — tanto pela solidão quanto pelo trabalho de limpar tudo — será que realmente dá para sustentar um lugar desses com o salário de um professor?
Se bem que deve dar para falar o mesmo do antigo lar de Gustave em Montreal. O apartamento onde a mulher dele deve estar agora morando sozinha — isso se o namorado dela já não tiver enfiado as coisas dele lá dentro. Só Deus sabe o que se passa naquela casa agora. Ela sempre gostou de convidar os amigos para jantar, então essa é uma boa aposta. Capaz da irmã dela ter tomado o cômodo que eles usavam como escritório, já que ela vivia reclamando do preço do aluguel da kitnet mequetrefe dela. É bom para fazer companhia, provavelmente. Só é difícil dizer se seria algo temporário, ou se ela se meteu lá de vez. Será que o namorado dela tá de boa com isso? Bem, se ele não tem problema em pegar mulher casada, então não deve ter muita coisa que o afete muito, mesmo que…
Gustave joga a cabeça para trás, respirando fundo. Nada disso é da conta dele, não mais. Felizmente. Finalmente. Não era isso que ele mais queria nesses anos todos? Uma desculpa válida para se livrar desse casamento forçado. Ele é um homem livre agora. O que ela faz da vida não é problema dele, não deveria importar a ele nem incomodá-lo…
É nisso que ele percebe que sua mente está dando voltas em círculos, e que é melhor parar logo com essa palhaçada. Numa tentativa de interromper o processo, Gustave se joga no sofá, rolando na almofada. Buddy decide se juntar a ele, subindo no móvel e montando em seu peito.
— Você tá ficando pesado, colega — ri, fazendo carinho na cabeça do bichinho. É um bom momento para a atenção dele vagar até a televisão, onde um desses programas de fofoca está ameaçando revelar o segredo de alguma celebridade que não pagou o suficiente para comprar o silêncio deles — ou então abriu a carteira para comprar a manchete, vai saber. Ele bem queria se levantar e pegar sua comida, mas Buddy se acomodou com tamanho conforto que fez o ruivo rir novamente. Não sabia que tinha adotado um gato.
Talvez seja melhor esperar um pouco até o cachorro se cansar dele, mas parece que vai demorar… e é assim que Gustave se deixa levar pela dormência que se espalha por seu corpo, fazendo-o perder a noção do mundo, borrando-o em escuridão atrás de suas pálpebras.
O toque estridente do celular o acorda de supetão. Buddy sumiu de vista, e a televisão agora passa algum filme ou seriado, mas graças a Deus, ainda há luz do dia lá fora.
— Perdão. Martin falando — balbucia, ainda lerdo ao atender à chamada.
— Bom dia, flor do dia. — Lisa o cumprimenta sem nem esconder quanta graça ela acha da situação. — Terminamos aqui com os pais do menino.
Ele afasta o celular do rosto, conferindo o relógio. Dez pras quatro. Caralho, demorou, hein?
— Boa. Tem mais algo que eu preciso saber?
Gustave espera que não dê para ouvir do outro lado da linha o jeito que ele esfrega o rosto, tentando acelerar o próprio despertar.
— Não de imediato, mas eu preciso transcrever e cruzar as informações dos depoimentos individuais, e agora não tem ninguém disponível para levá-los ao hotel.
— Ninguém?
— A Leclerc só foi almoçar agora porque estava colhendo os depoimentos. Bouchard teve que ir patrulhar sozinho.
— O Richard não tá aí hoje?
— Não, ele tá na 7ª. Rolou um escândalo de abuso de autoridade por lá.
— Que merda… O Duchamp não consegue mais dirigir, não?
— O contrato dele não cobre isso. — O tom de voz da Major, somado ao suspiro que solta, indica que tal justificativa é na verdade uma paráfrase de algo que ela deve ter ouvido anteriormente.
— Ah, sim, é claro. Desculpa. — Gustave clica a língua, aceitando a derrota. — Tá bom, pode ser. Avisa que eu chego em vinte minutos.
— Não esqueça de pentear o cabelo.
— Claro, Major. Vai trabalhar no seu relatório.
O uniforme dele ficou no armário da delegacia, então ele precisa se virar com as roupas mais não-exageradamente formais que sabe que tem em casa: uma camisa de botão e calça social. Pelo menos ele leva um casaco ao invés de um blazer. O táxi que pega até o trabalho será pago pela corporação, então menos mal, mas ainda leva alguns minutos a mais que o prometido para chegar no destino. Pensando positivamente, não é um atraso longo o suficiente para apagar os sorrisos plásticos, mesmo que exaustos, que o Sr. e a Sra. Prater trocam com ele ao cumprimentá-lo.
Se a foto na ficha dele é um bom indício, então Mikael é a cara da mãe: cabelo lisinho, tão claro que parece descolorido. Até o corte que usam é similar, com as pontas duplas mal hidratadas um pouco abaixo do lóbulo das orelhas largas. Seus rostos são chupados de tão magros, seus olhos parecem estar prestes a saltar do crânio. Os dela estão inchados, bem vermelhos, contrastando com seus lábios rachados.
O pai, pelo outro lado, é impressionante em vários sentidos. Gustave se vê obrigado a curvar o pescoço a fim de ficar olho a olho com o homem, e apesar das olheiras profundas que marcam seu rosto, sua expressão é vigorosa e firme, tal como o aperto de mão que oferece ao policial. Com certeza, ele seria capaz de quebrar os dedos de alguém mais fraco. Quando se apresenta num inglês até razoável, fica evidente que o sotaque dele é tão pesado quanto um elefante. Caralho, o homem é um estereótipo ambulante da Alemanha. Loiro, olhos azuis, alto, parrudo, carrancudo. Ainda bem que a esposa dele é pequenininha, senão o casal não caberia no banco de trás do humilde sedã que a equipe usa como viatura. O importante é que ela cumpre sua função, mas o silêncio dentro dela dura apenas o suficiente para chegar na rua principal.
— Aqui é bonito. — Comenta o senhor Prater ao olhar pela janela, pelo que Gustave consegue ver pelo retrovisor. — Quanto tempo de distância até o hotel?
— Dez minutos de carro. Estamos bem próximos.
A esposa dele diz algo em alemão. Ela soa frágil, terrivelmente cansada. Nenhuma surpresa nisso. Os dois conversam por alguns momentos, mas é claro que não dá para entender nada. Se ao menos ele tivesse pego aquela eletiva de alemão na faculdade…
Dá para deduzir que eles devem estar falando do dia deles, é o que faria mais sentido. Fazendo comentários sobre a equipe da delegacia, comparando as perguntas feitas durante os respectivos interrogatórios… Será que eles sabem que o filho deles era um viciado? Que ele quase agrediu uma menina? Ninguém cria os filhos para serem uns merdas, pelo menos não de propósito. Até o pai dele falava que haveriam dias nos quais ele teria que ser meio filho da puta, mas que o importante era Gustave estar com a cabeça no lugar certo quando decidisse agir assim.
Agora que a lembrança veio até ele, Gustave percebe que já faz um tempo que não liga para o pai. Eles já se falavam bem pouco quando moravam na mesma cidade; com tantos quilômetros entre eles, a distância só aumentou. Ele não lembra nem se o pai sabe da existência do Buddy, ou se chegou a passar o novo endereço.
Ele meio que sente falta do velho, sabe? Até que ele foi bem legal da última vez que o visitou: abriu uma garrafa de bebida (da boa) e começou a falar sobre como ele já passou por tudo isso — transferência no trabalho, divórcio, ser corno, todos esses problemas — e ficou jurando que tudo ia melhorar depois de Gustave tomar uns porres e comer umas raparigas, para compensar o tempo perdido. Chega a ser meio emocionante saber que o pai dele acreditou esse tempo todo que ele era um marido fiel. É o tipo de cegueira voluntária que os Prater devem estar adotando nesse momento.
— Capitão… — A trêmula voz de uma mulher se esgueira por trás dele. — Recomenda algum restaurante bom perto do hotel? Estamos famintos…
Ou então não estão nem pensando nisso. Convenhamos: eles passaram coisa de meio dia viajando, e foram direto para a delegacia assim que chegaram. Com certeza, têm prioridades mais urgentes para atender antes de conseguir processar isso tudo. Logo, ele começa a listar algumas apostas seguras no mesmo quarteirão do hotel. Ela agradece, mas antes que ele possa aproveitar o silêncio que sucede o breve diálogo, ela revive a conversa com uma das piores perguntas possíveis:
— O senhor é da equipe de busca pelo Mikael?
Puta que pariu, não dava mesmo pra ficar em silêncio por mais alguns minutos?
— Eu ajudo a Major Gauthier com os procedimentos. Perdão por não ter recebido vocês de manhã na delegacia. Eu já estava marcado para não ir hoje, tinha algumas questões pessoais a resolver.
— Ela mencionou. Perdão por interromper seu dia de folga.
— Obrigado — murmura o marido.
— Não tem problema. É parte do meu dever.
Gustave torce para que este seja o fim da conversa. Mas dada a tenebrosa sorte dele, não leva nem meio minuto até a senhora Prater começar a balbuciar novamente:
— Me perdoe também pela indelicadeza, mas eu preciso perguntar… — Nem fudendo. Meu Deus. Parece que eles nunca vão chegar na porra do hotel. — É que estamos só respondendo o dia todo, sem poder fazer ou falar mais nada.
Ele não está gostando do tom dela.
Tem motivo pra isso, né, minha senhora? Para pra pensar um pouco.
— Meu filho nunca deu problema. Nunca teve inimigos. Sempre foi um doce, e um aluno exemplar. Ele conseguiu a bolsa pra vir pra cá por mérito próprio. Ele não é criminoso, é vítima, então por que tantas perguntas sobre o comportamento dele? Sobre as amizades? A infância dele...?
Tá bom, tá bom, ele já entendeu. Eles não sabem ainda de nada que o bebezinho deles fez desde que atravessou o Atlântico. Já deu de monólogo dramático.
— Não tenho permissão para divulgar qualquer informação sobre o caso. — Gustave interrompe a madame, assumindo o risco de deixá-la puta de verdade. — Além do mais, passei o dia todo longe da delegacia. O que eu sei pode já estar desatualizado.
— Eu aceito pelo menos uma explicação resumida, qualquer coisa. Imagine se fosse sua mãe nessa mesma situação, Capitão.
Tem tantas coisas impossíveis nessa frase, que ele não vai nem se importar em pensar como respondê-la.
— Eu sinto muito de verdade, mas lei é lei, e de qualquer jeito, nem eu estou plenamente informado. Não posso divulgar informações sigilosas e ainda correr o risco delas serem falsas.
Parece que, finalmente, foi o suficiente para calar ela. Tudo que dá para ouvir depois disso é um suave soluçar. Deus do céu. O GPS avisa que ainda faltam dois minutos até o destino. Provavelmente, serão os cento e vinte segundos mais longos da vida dele. Quando o senhor Prater murmura “perdão por isso tudo”, as únicas coisas que Gustave consegue fazer é assentir e torcer para não pegar mais nenhum sinal vermelho daqui em diante.

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