No final das contas, foi um dia de folga muito mais movimentado do que ele gostaria. Pelo menos Bouchard não demorou a aparecer depois que Theodore entrou em casa; pegou as chaves e falou que agora Gustave lhe devia uma cerveja — ao que Gustave respondeu que não, era Bouchard que estava lhe devendo uma, mas que ele aceitou esse favor como retribuição. A única resposta que recebeu foi o colega fechando a porta da viatura com um estrondo. No lugar dele, Gustave teria mandado o sujeito tomar no cu, então até que o tenente reagiu bem à brincadeira.
Mas depois disso, finalmente, conseguiu sentir um gostinho de paz. Não que tenha sido muito, porque ainda precisou preparar o jantar, arrumar a mochila, conferir as mensagens no grupo da delegacia… onde, felizmente, há um aviso de que ele não precisará lidar com a família Prater logo cedo, uma vez que foi designado para apresentar e conduzir um mandado de busca e apreensão no apartamento de Mikael.
As implicações disso são uma dor de cabeça à parte, mas ele se recusa a sofrer por antecedência. De qualquer modo, ainda vai ter que acordar cedo e ir direto ao ponto. E cara, tirando aquela sonequinha de tarde, ele não descansou nada durante o dia. As costas dele chegam a doer, mas ele está cansado demais para se alongar. Logo, contra todo e qualquer senso comum, Gustave se larga novamente no sofá acabado.
O barulho da televisão preenche os vãos de sua mente, e ele fecha os olhos antes de soltar um longo suspiro. A louça já está secando. Buddy já está aninhado em sua cama, grudado em um dos travesseiros de Gustave. O céu noturno está até bem limpo lá fora, ele percebe ao jogar a cabeça para trás, permitindo-se observar as poucas estrelas entre as folhas das árvores que emolduram seu prédio. Dá para ouvir a brisa gentilmente sacudindo os galhos.
Ao se ajeitar contra a janela para melhor apreciar a vista, uma luz do outro lado da rua rouba sua atenção por completo.
Está vindo da janela do segundo andar da casa, o cômodo que Gustave presumiu ser uma suíte. Como sempre, ele é incapaz de resistir à própria curiosidade. Levantando-se, ele se inclina contra o batente, apertando os olhos na tentativa de discernir algo.
Puta que pariu.
Esse terrível hábito ainda vai acabar com ele um dia. Mas por hora, tudo o que Gustave consegue fazer é assistir boquiaberto às mãos pálidas que sobem pelo peito de Theodore, seguram-no pelo pescoço, o puxam para quem sabe quantos beijos. Por mais que tente buscar outros ângulos, tudo o que dá para ver é o topo da cabeça dele. Quando ele se ergue novamente, ainda ajoelhado, dá para ver o efeito do sol em seus ombros e peito, apenas um pouco menos bronzeados que seus braços. Não dá para ver seu rosto, é claro, mas Gustave consegue imaginá-lo com um sorrisinho torto, quase sacana, completamente diferente daqueles que ofereceu-lhe mais cedo. Naquela hora, ele também mal tinha percebido o tamanho dos braços dele — nada fora do comum, até bem normais comparado ao que ele costuma ver entre aparelhos e vestiários, mas se destacam contra a luz quente que vem do lado da cama.
Chega a dar água na boca.
Gustave se flagra respirando pesado, profundamente, enquanto Theodore fita sua companhia antes de se abaixar novamente. A mão parece fazer cafuné nele. Pouco a pouco, o corpo do homem cede; ele se deita, e só o que dá para ver são pés no ar, pernas se enroscando, então — Gustave tenta se convencer de que é melhor largar isso e ir deitar, tomar um banho frio, até bater uma pra se acalmar, se precisar. Ele não tem noção nenhuma de como sua vida está prestes a mudar de maneira irreversível.
Há mais uma ligeira movimentação; nisso, Theodore fica fora do campo de visão. A outra pessoa é quem se ajoelha sobre ele agora, curvado sobre o parceiro. Mesmo daqui, dá para ver que os cabelos grisalhos dele continuam tão bagunçados quanto sempre. Apesar de no momento se apresentar apenas como uma silhueta vestindo uma camiseta velha, Émile-Vincent continua tão lindo, ainda mais com as mãos de Theodore em sua cintura, invadindo as brechas do tecido para despi-lo da peça. Ele parece rir enquanto é sacudido para os lados. O que eles fazem está mais para uma briguinha de mentira do que algum tipo de sedução, mas é bem óbvio onde eles estão querendo chegar com esse momentinho fofo.
Caralho, é isso. Não é que Émile seja vizinho dele, é o vizinho dele que está comendo Émile. Caralho, e é tudo isso que ele consegue repetir, caralho.
Isso abre uma gama de possibilidades, partindo do simples fato de que Gustave tem sim alguma chance com ele, mesmo que distante. O pensamento vai direto para o pau dele, estimulado pela cena que se desenrola do outro lado da rua. Émile prende a barra da tal camiseta velha com os dentes, levantando-a até que Theodore volte para onde Gustave possa vê-lo beijando a pele do amante. Émile lhe abraça, beija sua testa, permite ser despido por Theodore. A camisa voa para algum canto fora da moldura do quadro.
Gustave sabe que precisa sair dali agora, imediatamente. Se Émile abrir os olhos, não tem como ele não perceber um vulto o observando do outro lado da rua. Até porque Gustave nem está tentando ser discreto — ele dá uma porrada na janela quando a fecha, e foge de perto dela antes que seus vizinhos busquem pelo som que deve ter ecoado rua abaixo. A água gelada da pia não funciona em nenhuma tentativa de acalmá-lo — seja ao jogá-la em seu rosto, ou ao tentar engoli-la num único gole, queimando sua garganta numa dor de parti-la ao meio. Nada disso funciona. Na verdade, parece que a vergonha só o faz latejar mais intensamente, na mesma velocidade e força que seu coração reverbera contra suas costelas.
Fudeu. Ele está completamente fudido, já era, acabou. Ele precisa agarrar essa oportunidade com ambas as mãos. Não tem como deixar passar. Gustave tem certeza que não vai se esquecer tão cedo da expressão que Émile fez ao curvar a cabeça para que Theodore pudesse beijar seu pescoço. E ele sabe que precisa ver isso tudo mais de perto.

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