Toda essa situação só aumentava a minha necessidade de me aliar a Doutor Castelo. E mesmo que ninguém entendesse as minhas anotações, não tinha nenhum papel em Pristine onde eu pudesse anotar o alfabeto que eu conhecia. Todos os eletrônicos usavam aquelas letras estranhas.
Como entrar na minha história favorita pode ter se transformado em um pesadelo tão aterrorizador? Tudo bem que era uma fantasia sombria, mas tinham os seus refrescos também.
— Você está ouvindo o Sacrum? — a voz do Sentinela Castrum me puxou para a realidade.
“Falando no diabo...”
— É que… — estava tão frustrado por não conseguir ler, que as palavras se embolaram em minha boca, mas eu precisava me aproximar do Sentinela Castrum e essa era uma boa oportunidade. Engoli o orgulho para continuar explicando — Eu acho que, junto com minha energia mental, eu perdi algumas memórias e eu não… eu não consigo ler…
— Oh… Isso é possível, você ter lapsos de memória é um dos efeitos colaterais de fato — Sentinela Castrum continuava com seu tom calmante e profissional — Eu posso te ajudar com isso, mesmo com os comandos de voz, você vai precisar saber ao menos as palavras básicas para acessar o seu relógio holográfico.
Senti meu estômago roncar e olhei sem jeito para o Sentinela Castrum. Não sabia se ele tinha ouvido, mas me sentia exposto com aquela roupa de hospital ridícula! Estava em um futuro distante e ainda usavam essas coisas vergonhosas. Primeiro aquela manta horrorosa, agora esse troço que deixava minha bunda de fora!
Ao menos eu não transmigrei para Pristine usando a cueca com o MD na parte de trás, chicoteando uma banda e uma onomatopeia do outro lado escrito “Yes, Daddy”, e na frente o Chanwoo de boca aberta, pedindo leitinho. Seria muito difícil enfrentar os olhares julgadores no meio da Mansão Sagrada. Talvez fosse por coisas como essa que eu ainda estava solteiro.
— Eu tenho direito a algum lanche noturno, ou algo assim? — perguntei tentando manter o tom casual de sempre. Ainda me sentia relaxado ao lado do Sentinela Castrum, mas agora que sabia da sua real identidade, aquela calmaria me parecia muito estranha.
— Receio que a cozinha do hospital já tenha fechado, mas posso conseguir algo pra você comer. Você tem alguma alergia?
— Não.
— Posso fazer um mingau de aveia com leite de amendoim pra você, é tudo que eu tenho no meu escritório.
— Com canela e cravo?
— Claro!
— Eu aceito.
Sentinela Castrum saiu para fazer o meu mingau e eu continuei ouvindo o Sacrum e tentando ignorar o buraco no meu estômago.
“Não tem nem duas horas que fiz minha última refeição e já estou morrendo de fome.”
Nunca senti tanta fome na minha vida! Parecia que minhas entranhas estavam me comendo de dentro para fora. Passou o que me pareceu uma eternidade até Sentinela Castrum voltar com um mingau quentinho.
— Fiz uma tigela bem cheia pra você! — ele colocou na mesinha ao lado da minha cama e me ajudou a levantar.
— Você se incomoda de me fazer companhia enquanto eu como? Eu não quero ficar sozinho…
Ficar sozinho significava imergir naquele pânico novamente. O medo de ser trancafiado não me corroía com a presença do Sentinela Castrum, então seria melhor comer com ele ao meu lado e evitar outra indigestão.
— Só se você me prometer que você vai dormir depois de comer, temos pouco tempo até o início do treinamento então virei cedinho para te ajudar com a leitura. — Ele ofereceu um sorriso reconfortante. Tenho que admitir que o filho da puta era um manipulador bonito do caralho.
Olhei para a fumaça saindo da tigela, enchi uma colher com o líquido espesso e soprei levemente. Quando tive certeza de que estava em uma temperatura suportável, experimentei o tal mingau e estava delicioso! Acabei devorando tudo rapidamente e queimando a língua no processo, mas ao menos meu estomago não parecia mais que queria me matar.
— Você come bem, é até satisfatório assistir — riu Sentinela Castrum, me ajudando a deitar na cama — Agora descanse, amanhã será um longo dia.
— Só um momento, Sentinela Castrum! Quando eu vou poder… — as palavras se embolaram na minha língua, e senti uma sonolência repentina.
“O que tinha naquele mingau?”
— Treinar? — perguntou Sentinela Castrum como se lesse meus pensamentos.
— Sim…
— Depois dos eventos fúnebres… — ele levou a mão à boca parecendo um pouco assustado — Oh, eu não queria falar sobre isso agora.
— Tudo bem, eu quero saber. Vai ser mais fácil encarar a realidade assim — me forcei a ficar consciente, mas minhas pálpebras estavam tão pesadas.
— O enterro de Ignis e de todos os falecidos durante a tragédia será no próximo dia Vermelho, e o treinamento começará no dia seguinte — ouvi a voz ressoar distante.
— E que dia estamos hoje? — dei um grande bocejo.
— Dia Verde.
— Então temos menos de uma semana para eu conseguir ler alguma coisa? — fechei os olhos sentindo o peso do cansaço de uma semana me atingir — Não sei se consigo…
— Vai ser bom ter algo para te fazer pensar, digamos que fará parte do seu treinamento.
Minha consciência se apagou e dormi tranquilamente, sem sonhos ou pesadelos.
Na manhã seguinte, acordei com um banquete à minha espera. Sentinela Castrum sorria gentilmente para mim, apontando para a mesa com café, suco de laranja, beiju de coco, mamão cortado com aveia e mel, bolo de milho e pão.
— Imaginei que precisaria de energia extra para nossas aulas.
Me senti muito feliz. A última vez que alguém me serviu algo foi quando eu ainda era criança no orfanato. Depois que cresci o suficiente para colocar minha própria comida, eu sempre tinha que lutar com os outros meninos para pegar o que eu queria comer. Quando passei a morar sozinho, a luta era diferente. Precisava acordar cedo e preparar meu café da manhã, ou gastar meu precioso dinheirinho e comer na rua. Então acordar com uma mesa repleta de coisas deliciosas só para mim me deixava genuinamente feliz.
Comi com lágrimas nos olhos. Estava tudo tão delicioso! De comer rezando! Sentinela Castrum podia ser um desgraçado, mas ele sabia como seduzir as pessoas. Se eu não conhecesse sua verdadeira identidade, já estaria completamente fascinado por seu jeito atencioso, seu sorriso encantador e comidas deliciosas. Ele era um homem muito perigoso.
— Dormiu bem? — perguntou Sentinela Castrum depois que destruí toda a comida que ele trouxe.
— O que tinha naquele mingau? — perguntei meio brincando, meio falando sério — Estava com dificuldade de dormir, e depois de comer, me deu um sono tão pesado!
— Não foi o mingau, essa é uma das minhas habilidades como curandeiro. Você precisava de sono para se recuperar, então te coloquei para dormir.
— Seria bom receber um aviso da próxima vez — cruzei os braços e o encarei. Ele não tinha nem vergonha de admitir o que fez comigo.
— Se não conseguir dormir essa noite, me chame e te ajudarei, ok? Você precisa se recuperar logo para começar o seu treinamento.
— Por que a pressa?
— Você será o sucessor da Soberana, Guia Spes. Seu treinamento é de extrema importância para Pristine.
— A Soberana ainda tem muitos anos para governar. E se surgir um Guia mais forte do que eu?
— É possível que aconteça, mas não vamos dar sorte ao azar, não é mesmo? Mesmo que apareça um Guia mais poderoso, você ainda é importante para Pristine!
— Tem razão. Vamos aos livros? — disse empolgado.
— Livros? — Sentinela Castrum me olhou com o cenho franzido.
— Aos estudos — corrigi rapidamente.
Sentinela Castrum se mostrou um ótimo professor. Tínhamos poucos dias até o treinamento começar. A semana em Pristine era contabilizada de forma diferente. E aqui a autora brilhou quando escolheu as sete cores do arco-íris como os nomes dos dias das semanas, não tem coisa mais gay do que isso! Ela fez de tudo para deixar a história o mais gay possível.
Tinha também as referências ao número 7. O número da perfeição. A semana com 7 dias, o mês com 7 semanas e o ano com 7 meses. O ano era reduzido a 343 dias, pois a Terra estava mais próxima do Sol, o que diminuía o seu tempo de translação, e aumentava o calor infernal.
Começamos a estudar no dia Azul, e seguimos pelos dias Anil, Violeta e Vermelho. Foram quatro dias em que me dediquei apenas ao alfabeto de Pristine, mas o máximo que pude foi identificar as palavras-chave para acessar o relógio holográfico. Não seria o suficiente para a minha missão, mas era um começo.
Na manhã do dia Vermelho, antes da cerimônia fúnebre de Ignis, Sentinela Castrum passou um exercício simples para identificar vogais. Eu acertei todas.
— Você está lembrando bem das letras, Guia Spes! — elogiou Sentinela Castrum, sentando-se ao meu lado na mesa.
— Eu tenho um bom professor — não pude deixar de sorrir.
O olhar de admiração do Sentinela Castrum era contagiante, e me senti altamente dragado. Eu sabia que aquele homem era terrível, e mesmo assim não conseguia odiá-lo naquele momento. Ele estava sendo tão gentil e atencioso. Pelo que me lembro, Doutor Castelo só se juntou ao laboratório depois que Spes foi preso, então talvez eu pudesse mudar o destino dele também. Assim, Lux teria um bom pai e Spes um bom sogro.
Acho que valeria a pena tentar.
— Sabe, Guia Spes — Sentinela Castrum inclinou-se na minha direção. Ele estava tão perto que pude sentir a sua respiração na minha bochecha — Você realmente é fascinante. Um Guia que passa por um trauma como o seu não conseguiria se dedicar a estudos dessa maneira. Sei como você deve estar sofrendo. Eu perdi meu Guia há muito tempo, e ainda dói pensar nisso.
— Sinto muito que tenha passado por isso — engoli em seco tentando não pensar onde aquela conversa me levaria.
— Sei que ainda é cedo para falar sobre isso, mas você vai precisar de um Sentinela para treinar purificação, mesmo sendo um Guia nível F no momento. À medida que seu tratamento for evoluindo, a sua energia espiritual vai voltar aos poucos, então acho que seria melhor treinar com alguém que já tem ciência da sua condição. Você gostaria de treinar comigo?
— Você quer que eu seja o seu Guia?
— Não precisa ser algo tão formal, apenas parceiro de treino. O que acha?
— Tudo bem... eu acho... se nossa compatibilidade for alta. Não acho que, na minha condição, seria adequado usar aparelhos para potencializar a purificação.
Meu plano de me aproximar dele estava indo bem até demais. Eu não queria esse nível de proximidade com um cara que já foi completamente obcecado por Spes, então colocar a compatibilidade como um empecilho funcionaria bem. Não tinha como eu ter um alto nível com ele, não depois de saber de tudo que ele fez com Spes.
— Você está certo. Então vamos medir nossa compatibilidade quando você receber o seu relógio holográfico.
Um brilho percorreu os olhos verdes de Sentinela Castrum, estampando a possessividade. Ele sempre usava suas habilidades comigo, então certamente precisava de purificação ao final de cada um dos nossos encontros. E estava bem claro que ele desejava que eu fizesse isso por ele. Algo me dizia que ele não queria ser apenas o meu parceiro de treinamento. Mesmo sem saber que eu era um Excluído, Sentinela Castrum já mostrava traços de obsessão. Será que eu conseguiria evitar que ele se tornasse Doutor Castelo ou já era tarde demais para ele?
— Sentinela Castrum — uma voz soou na porta do meu quarto — Pare de flertar com um Guia que acabou de perder o seu Sentinela que nem teve o corpo velado ainda.
Lux estava parado à porta com uma expressão enojada, e eu senti como se tivesse sido pego em flagrante fazendo algo extremamente errado.
Revisão Ortográfica por: Isabella Viard

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