Senti como se estivesse visitando uma das igrejas católicas da minha cidade, e se não fosse pela tecnologia eu diria que estava no passado, não no futuro. Andei lentamente admirando cada detalhe, tentando absorver cada tom, cada textura, cada formato. Desde que percebi que meu tempo em Pristine podia ser passageiro, eu queria aproveitar ao máximo.
Ao chegar nos fundos da Mansão Sagrada, prendi o fôlego por um instante. O céu azul sem uma única nuvem era lindamente opressor e contrastava com o amplo jardim cheio de esculturas. O frescor da brisa da manhã tocou minha pele e senti um estranho conforto, como se a natureza estivesse me recepcionando. Eu, que nunca tinha visto um jardim tão vasto, estranhei o quão confortável as pessoas pareciam entre flores e árvores. Até eu me senti como parte daquela imensidão.
Segui Sentinela Castrum, que permanecia em silêncio enquanto me mostrava o caminho, e me aproximei do que parecia um palco improvisado, com sete caixões simples de madeira abertos. Pareciam mais caixotes de feira gigantes do que caixões. Ao redor estavam os pontos vermelhos que se destacavam na imensidão verde. Como Ignis tinha nascido e morrido nesse dia, as pessoas usavam essa cor para homenagear a ele e as outras vítimas.
Não consegui encontrar a Prioresa naquele mar de gente. Queria ver a cara que aquela desgraçada vai fazer ao ver os familiares das vítimas. Infelizmente não a encontrei, deve estar por aí planejando algum plano macabro. Era melhor deixá-la de lado um pouco.
Cumprimentei os pais de Ignis, que estavam ao lado do filho. Foi meio estranho, pois eu não sabia se apertava as mãos ou se dava um abraço. Ao mesmo tempo em que eles eram pessoas próximas para Spes, eles eram completos estranhos para mim. Eu sabia algumas informações aleatórias sobre eles, pois eles estavam presentes nos flashbacks da infância de Spes, mas mesmo assim, ainda eram apenas figurantes no livro. Vê-los de perto, sofrendo por algo que eu podia ter evitado, doía como se tivesse um alfinete atravessado na minha garganta.
Olhei para os sete corpos ali dentro e estavam todos impecáveis. Não pareciam que foram mortos brutalmente, e sim que dormiam o sono dos justos. Ver Ignis tão sereno era tanto apaziguador quanto perturbador. Pelo que me lembro, os funerais em Pristine são longos, pois o corpo do morto é reconstruído e a família tem direito a passar uma semana velando; depois disso, ele é queimado e espalhado ao vento.
Tudo isso era para evitar que qualquer tipo de toxina poluísse Pristine.
Saber que o destino daquelas figuras serenas era o “nada” fez o meu coração pesar. Eu consegui salvar boa parte dos Guias que estavam fadados a morrer naquele dia, mas quando precisei proteger o meu olho e minha identidade como Excluído, aqueles que tentaram se esconder ao invés de sair da catedral foram despedaçados pela força do portal, ou atingidos pelo veneno da cascavel. Eu, que nunca tinha estado em um velório antes, presenciei sete de uma vez!
Aquele era um mundo fictício. Pristine só existia na imaginação da autora e de quem lia a novel, então porque parecia tão real? Eu ainda não sei se realmente transmigrei ou se estou de coma em algum lugar…
“Ah! Que clichê de merda! O pior final de um isekai é de que nada foi real... Eu quero que isso seja real! Tratarei as pessoas aqui como seres humanos e não personagens!”
— Spes, querido! Estava com tanta saudade! — ouvi uma voz feminina se aproximar, e quando me virei, dei de cara com uma mulher da minha altura e com os mesmos cabelos cor de prata. Era Luna, mãe de Spes.
Luna me abraçou com força e senti meu peito apertar, não só pelos braços dela se pressionando contra mim, mas também por algo dentro de mim que se contorcia. O calor do seu acolhimento era quase palpável. Podia sentir em cada gesto o tamanho da afeição que ela tinha pelo filho. O olhar de Luna carregava o mais puro e simples amor materno.
“Então é assim o colo de uma mãe?”
Uma saudade descabida se apoderou de mim. Senti meus olhos se encherem e as lágrimas deslizarem. Nunca tinha recebido um acalento tão cheio de amor e tão verdadeiro. Encostei a cabeça no ombro dela e disse, tentando disfarçar a voz chorosa:
— Eu também, mãe... Eu também — achei que a palavra mãe seria estranha de se dizer, já que nunca tinha pronunciado antes, mas ela se encaixou tão bem em minha língua que tive que conter a vontade de repeti-la várias e várias vezes.
Fiz isso mentalmente. Olhei para Luna por entre a umidade e repeti “Mãe! Mãe! Mãe! Minha mãe”.
— Sinto muito a demora, filho — uma voz masculina me fez olhar para cima, e um homem de profundos olhos azuis com uma cicatriz na bochecha sorria brilhantemente para mim. Era Caelum, o pai de Spes.
— Estávamos em uma missão fora da cidade e só conseguimos chegar agora — explicou Luna me soltando relutante.
— Só sua mãe ganha abraço? — resmungou Caelum.
Antes que eu pudesse responder, o homem que era um palmo mais alto do que eu me abraçou. Não foi aquele abraço desconfortável que homens costumam dar, com tapas rápidos nas costas. Era uma um abraço protetor, de um homem que queria dizer o quanto se importava com o seu filho.
Meu coração balançou novamente, e chorei mais. Deixei jorrar algo que estava dentro de mim há muito tempo. A vontade de ter uma família, de pertencer a algum lugar. No meio daqueles abraços e palavras doces, eu me senti não só querido, como parte de um lar amoroso.
“Isso que significa ter uma mãe e um pai? Ter uma família? Saber que tem alguém com que contar com apenas um abraço?”
— Estamos aqui por você filho, chore o quanto precisar — Luna sussurrou, alisando os meus cabelos.
— Vamos nos despedir de Ignis juntos — Caelum segurou meus ombros com firmeza e ofereceu um sorriso de apoio.
Segurando a mão de Luna como uma criança que precisa da proteção da mãe, me aproximei mais do caixão de Ignis. Relutante, estendi a mão. Eu queria tocá-lo, mas tinha medo de que a magia se fosse e só restasse o pescoço mutilado. Olhei para os pais de Spes, como se pedisse permissão, e eles acenaram com a cabeça.
Toquei a pele fria daquilo que usaram para refazer a cabeça de Ignis, e um filme passou diante dos meus olhos, assim como aconteceu durante o batismo. Fui invadido por memórias de Spes e Ignis brincando na floresta. Eles corriam entre as árvores, atiravam frutos caídos uns nos outros como se fossem munições, cavavam a terra com dedos nus à procura do que se escondia por baixo dela.
— Ele teve uma boa vida — sussurrei entre soluços.
Spes e Ignis cresceram na Guilda Ipê Azul, que estava em ascensão na época em que eles nasceram, por isso eram as duas únicas crianças do grupo, e a líder Yuuko fazia questão de mimá-las. Os pais de Spes e Ignis trabalhavam em uma área de reflorestamento, um local onde tinham que limpar uma área totalmente morta e reconstruir o ecossistema do zero. Como não era uma missão perigosa, as crianças sempre iam com eles.
Por isso elas tiveram uma infância mais ou menos normal, com uma tia lhes dando tudo que queriam, correndo livres pela natureza e vivendo pequenas aventuras. Mas Ignis não encontraria mais nenhum tipo de felicidade. Não realizaria nenhum dos seus sonhos. Quando o final feliz de Trilha de Lágrimas chegasse, o final de Ignis seria sempre uma morte brutal.
— Você precisa deixá-lo ir — Sentinela Castrum falou depois de tanto tempo em silêncio — Não há nada que possamos fazer para ajudá-lo, sei que essa dor nunca será superada de verdade, mas ele vai estar vivo para sempre em suas memórias. Ele vai estar pra sempre dentro de você.
Um calor tomou meu olho direito, e eu sabia que era Mox me enviando uma lembrança de que parte de Ignis viveria comigo para sempre. A dor que eu sentia não era bem de um luto, era mais de fracasso. Eu queria salvar Ignis, queria que ele encontrasse um final feliz, assim como Lux e Spes, porém a voz misteriosa... Ela não permitiu... Se eu pudesse voltar mais uma vez, será que eu poderia...?
— Não estamos seguros em Pristine, esse portal que apareceu é a prova! — alguém gritou.
— Uma quebra de masmorra bem no meio da Mansão Sagrada? — comentou outra voz indignada.
— O que impede que o mesmo aconteça em nossas casas? — uma terceira pessoa começou a questionar.
Uma comoção começou no meio do jardim. Murmúrios de concordância logo se tornaram agitação e o silêncio em respeito aos mortos logo se tornou em um mar de vozes. Fiquei angustiado por não poder fazer nada. Se eu não conseguia nem exigir paz para Ignis no dia de seu funeral, como eu poderia salvar Pristine?
— Estamos em um funeral! Por favor, respeitem aqueles que já se foram e os familiares que vieram se despedir! — imperou uma mulher alta de cabelos curtos e rosto feroz.
Rapidamente a confusão se dispersou, ninguém ousaria contrariar Bellatora, a maior guerreira da Mansão Sagrada. Ela era uma Guia Nível S e tinha habilidades incríveis em vários tipos de lutas. Além disso, ela sabia manipular vários tipos de armas. Ela era incrível!
“Bellatora é ainda mais maravilhosa de perto!”
Tentei conter a minha excitação. Não era hora nem lugar para ser tiete, mas eu não conseguia resistir a uma grande diva! Estava no meu DNA venerar mulheres poderosas! Ficou ainda mais difícil me controlar quando vi Lux ao lado dela. Ambos vieram em minha direção, e meu coração parecia que ia sair pela boca.
“Pra onde foi aquela tristeza que eu estava sentindo agora há pouco? Bastou uma mulher fodona e um gostoso pra curar minha depressão?”
— Minhas condolências, Guia Spes — Bellatora estendeu as duas mãos para mim, e estendi minha palma úmida e trêmula. Ela deu um aperto como se estivesse tentando passar um pouco das suas forças para mim, e se despediu rapidamente para falar com as outras famílias.
Achei que Lux falaria comigo também, por isso mantive minha mão ali, aguardando por uma saudação. Ele passou direto. Fiquei parado como uma das estátuas do jardim com os olhos incrédulos, boca aberta e o braço estendido, completamente petrificado. Fui ignorado abertamente. E doeu saber que, para ele, eu era tão irrelevante quanto uma reles decoração.
Revisão Ortográfica por: Isabella Viard

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