6 Samael
No topo das árvores debaixo apenas do nascer do sol, uma imensidão de folhas das mais variadas cores formam o início do solstício de verão que cobre as copas do grande jardim real, mas a canção da natureza é interrompida pelo balançar de um galho não confiável sob os pés do garoto, ele escala com certa dificuldade fazendo um farfalhar de folhas que assusta os animais ao redor, ou quem sabe tenham se assustado pela sombra do pássaro que sobrevoa em círculo acima da árvore. O garoto de cabelos rosados agora na copa, fita no horizonte o grande palácio real, mas olhando para os lados ele questiona
— Onde está? Ela devia estar nesse jardim… Trevo!??
— Sua memória é horrível idiota. — A voz rouca do corvo ecoa pelas árvores e se repete algumas vezes. — Ela ficava na praça central, do outro lado do jardim, idiota.
— Shiiiii !! Fecha o bico trevo, quer avisar que a gente tá aqui em cima? Fique sabendo que os corvos falantes são uma iguaria nesses lugares chiques. — O pequeno galho no topo da grande árvore balança com o peso do garoto que, sem prestar atenção, retira pequenos gravetos e folhas dos cabelos. — Esse lugar é enorme, não vai dá pra chegar lá com os guardas me perseguindo assim.
O som das juntas de metal de soldados em marcha puxam a atenção do garoto que observa o grupo de guardas em patrulha logo embaixo de seus pés, ao lado o farfalhar das folhas de um arbusto aflora ideias na mente do garoto, que sussurra para o céu:
— Trevo, fica aqui em cima e conta as novas, vou descer no arbusto e sigo atrás deles fazendo o tour do jardim. Genial né?
O garoto calcula a distância até o próximo apoio, seus pés se preparando para o salto pegam impulso balançando seu galho de apoio para cima e para baixo, que quebra no meio do pulo.
— Péssima ideia, que azar. — Gargalha a ave vendo o impulso sem equilíbrio levar a cabeça cor de rosa de encontro com o tronco da árvore vizinha, logo acima do arbusto onde o menino cai e se espatifa.
Ainda sem equilíbrio, o garoto se levanta do tombo que fora mais suave que o esperado, mas antes de poder proferir maldições e xingamentos ele é interrompido por um grito:
— Aaaai, o que caiu em cima de mim? — Disse o arbusto aborrecido, farfalhando derrubando o menino de cima de suas folhas.
— Que barulho foi esse? Disse um guarda retardatário parando sua marcha e coçando sua cabeça por debaixo do capacete de metal.
Mesmo com a queda amaciada o menino se levanta com dificuldade. — ai minha cabeça, meu cabelo ta inteiro? — O garoto observa o guarda a alguns passos o encarando confuso, o homem reconhecendo o intruso puxa sua espada e aponta para charlatão, mas recua ao olhar a coisa ao seu lado. Sem questionar, Samael corre na direção oposta a toda velocidade desviando dos troncos e galhos pelo caminho. Com ele, desviando das árvores com mais facilidade estava o arbusto que agora aparentava ter chifres e corria em disparada com 3 pernas. O menino ainda tonto considerou:
— Trevo, talvez eu seja mesmo um drúida
A criatura de três pernas estende seus braços e puxa Samael para dentro de suas folhas a tempo de evitar um novo encontro do charlatão com uma árvore. O arbusto exclama:
— É a segunda vez que eu te vejo no ar trapaceiro, se você é um pássaro é de uma espécie que não voa. — A voz soava jovem, quebrando a expectativa de Samael ao ver a criatura.
Dentro do arbusto ainda correndo a toda velocidade Samael distinguia uma criatura da natureza feita totalmente de madeira, mas olhando mais de perto brilhantes olhos castanhos escapavam por dentro da máscara. O movimento de desviar Samael da árvore que vinha ao seu encontro foi brusco e o desequilíbrio de Samael se contagiou com o arbusto, correndo juntos o inevitavel acontece e ambos capotam baixo a ladeira. De frente a um tronco robusto samael se levanta das folhas se recuperando do tombo, ele estende a mão para, a agora visível, criatura da natureza, sorrindo enquanto diz:
— Não reconheço sua voz arbusto e eu nunca esqueço uma voz, você não é dessa região, mas já que me salvou fico te devendo uma, que tal a gente escapar daqui e eu te pago uma bebida no vaca rose pra você me contar onde foi que ja me viu antes — O garoto considera por um momento o quão perigoso aquela criatura poderia ser, afinal seu rosto lembrava muito o monstro do cartaz de procurado que havia visto na cidade alta. Mas, era exatamente o que precisava, uma distração perfeita.
— Você tá brincando? — Disse a criatura ofegante, checando por entre as folhas o novo ambiente ao redor. — Depois de me usar de amortecedor e destruir meu disfarce você acha que uma bebida barata vai te cobrir? — A criatura reajusta sua máscara no rosto, suas orelhas mais longas que o comum para humanos escapam por dentro dos cabelos castanhos escondidos, ele adiciona: — Além disso, não posso sair daqui até achar uma coisa nesse jardim, ela deveria ficar aqui perto.
Um brilho aparece nos olhos do charlatão, uma figura de linguagem considerando suas pupilas quase totalmente brancas, ele sorri amigavelmente retirando sua mão estendida totalmente ignorada pela criatura.
— Na verdade, sua memória está meio ruim, arbusto, a árvore ficava na praça central da cidade, ou seja, do outro lado do jardim, talvez você precise mesmo de um guia, prazer, sou Samael e posso te levar até lá…Por um preço é claro.
— Um guia? Você não é exatamente da realeza bardo, como você saberia o caminho?
— E se eu for um principe rebelde?
— Foi isso que você falou pro infeliz do guarda antes de fritar os miolos dele, ou essa é uma mentira diferente? — A criatura se levanta sozinha usando um galho como apoio revelando um manto de folhas verdes de tom escuro que cobria todo seu corpo. — E eu não sou um arbusto, meu nome é Erevan.
— Então, você estava me perseguindo desde lá atrás, Erevan? Viu algo que te interessou, foi? — Ele fala virando de costas para a criatura, fitando os espaços de céu não ocultos pelas copas — Não interessa quem eu sou, eu consigo achar a árvore pra você em troca de alguns favores druídicos, só preciso achar o preguiçoso do meu pássaro.
— Porque precisa da minha ajuda, use sua canção mágica das tribos do sul, pensei que fosse uma magia poderosa.
— Não precisa tocar na ferida, não foi minha melhor ideia de disfarce, ok? Afinal onde tá esse corvo?
— Samael, estou vendo os galhos dela daqui de cima — A voz de Trevo aparece em pensamentos na mente do menino.
— QUE?! Porque não avisou antes? Onde ela tá e como ela é?
— Difícil distinguir, consigo sentir sua natureza, mas minha visão está limitada aos olhos inferiores dessa forma.
— Preciso ver com meus olhos então, vamos Erevan, tem algo se mexendo a oeste daqui, deve ser nossa árvore.
— Ainda não aceitei seu papel de guia, Samael.
— Tudo bem, tudo bem, um acordo de ajuda mútua então, já temos uma direção, não é? Isso vale pelo menos um aperto de mão de onde eu venho.
A criatura hesita, em silêncio considera a proposta e decide que o trapaceiro tagarela poderia ser útil, em último caso como distração. Ele responde:
— Se conseguir me levar na direção consigo achar a árvore certa pelas raízes, acho que isso já deve valer como pagamento bardo, afinal o que é que você quer com —
O som de pesadas botas de metal pisoteando a terra interrompem Erevan, que troca olhares com Samael e como se pensassem juntos começam a correr para Oeste.
— Bom, essa é uma pergunta excelente, que eu posso te contar no caminho — Samael fala enquanto corre evitando tropeçar nas raízes grossas que escapavam pelo solo.
— Ali estão eles, a criatura e o invasor! — Gritou o guarda retardatário liderando um grupo de 3 soldados que agora desciam a ladeira com velocidade.
— Ah não, não vou voltar para aquela cela nunca mais — Samael levanta a cabeça olhando diretamente a fresta entre as copas que permitiam que visse Trevo. Ele grita: — Trevo, faz agora!
— É o que você quer garoto? — A voz rouca reaparece em sua mente — Você sabe o preço, vou pegar da reserva que você fez na taverna mais cedo.
— Não, vou precisar disso mais tarde, usa minha reversa pessoal, Trevo.
— Como quiser, que má sorte.
Erevan observa enquanto um pássaro de penas negras e um bico rosa desce do céu por entre os galhos e folhas, o mesmo pássaro que vira pousando no guarda pouco antes que uma descarga de energia o desmaiasse. Ele hesita, mas então para sua corrida abruptamente. — Não vamos durar muito com eles alertando todo mundo onde estamos, vamos acabar com isso.
— Ah. — Samael diz tentando parar seu impulso — Ok eu concordo, podemos começar pelo da direita e aí nós…
— Muito demorado — O drúida estende a mão e aponta para o grupo que se aproximava em marcha, com a palma aberta ele começa a espremer seus dedos até fechar completamente sua mão. A marcha cessa instantaneamente e é substituída pelo som de armaduras de metal colidindo com o solo. Subindo por suas botas os ramos de grama se esparramam prendendo seus pés ao chão e consumindo sua armadura. Os guardas sacam suas espadas e as sacodem deitados, tentando se desvencilhar, ocorreu somente a um deles que poderia tirar suas calças de metal antes que a grama chegasse ao resto da armadura.
— Vocês não vão fugir de mim tão fácil — O guarda retardatário disse sacando sua longa espada e se aproximando sem cautela.
O corvo pousa nos ombros de Samael, que observa a ponta de espada afiada se aproximando lentamente. Samael avança de uma vez deixando o pássaro para trás pela inércia, ele corre em direção a lâmina que desce com velocidade na diagonal errando sua orelha por um triz, seus cabelos voam com o movimento se desviando para trás do homem. O garoto estende seu braço e faíscas de energia estalam da palma de sua mão como um raio aprisionado, são os reflexos rápidos do homem que impedem o toque do charlatão girando sua espada em um corte horizontal que por pouco não assemelha Samael as mulas sem cabeça da floresta do Norte, o garoto se joga para longe da espada antes que o impulso terminasse e o homem começasse seu próximo golpe. Ele se prepara para um novo comentário sarcástico entre respirações ofegantes, mas percebe os diversos fios de cabelo cor de rosa jogados aos pés do guarda. — Já chega, isso já foi longe demais, tá me ouvindo? — O garoto demônio fecha seus olhos em uma reza silenciosa e retira o final de seu colar de dentro da camisa, revelando um pequeno dado vermelho que continha somente um ponto em todos os lados, que Samael segura entre suas mãos.
— Resolveu se entregar invasor? Menos um, só falta achar a criatura que fugiu. — O homem se aproxima com sua arma em guarda.
Nesse momento, o céu do local se torna cinza como em um dia de tempestade, pingos de chuva começam a escorrer pelas folhas caindo em círculo perfeito somente em cima do grupo de homens. Samael abre os olhos, confuso.
— Só isso, Trevo? Uma chuvinha de nada?
— O pagamento foi baixo, você nunca fora exatamente sortudo, Samael.
— Ah, que maldição.
O menino fita o homem de pé olhando para o céu embasbacado com a coincidência, por um momento ele considera sobre sua sorte, ou a falta dela, até notar o invasor colocando suas mãos dentro do círculo de chuva. Ao abrir das palmas, faíscas de energia se tornaram um emaranhado de teias elétricas que em segundos atingem os guardas que ainda tentavam escapar de uma grama inerte. A eletricidade corre pelas gotas da chuva e toca a ponta de sua espada, em seguida percorrendo sua armadura de metal até que sua consciência se apaga, o derrubando desmaiado ao chão.
— Bom, fez um pouco de barulho, mas acho que nos saímos bem Erevan— Samael comenta observando o céu voltar a sua cor natural, ele olha em volta estranhando a falta de uma resposta sarcástica. — Erevan?
— Sumiu na floresta em direção à árvore, já deve estar lá a essa hora.
— O'QUE!? E você não me disse nada Trevo? Não tá do meu lado?
— Ora, você não me perguntou nada — Gargalhou o pássaro. — Recomendo correr, idiota. A ave riu voando para as copas enquanto um novo grupo de soldados aparecia no topo da ladeira.
— Merda, ele me usou de distração. — Disse Samael, se virando de costas e se preparando para correr, mas impedido por uma raíz imóvel onde tropeça e cai de cara com o chão. — Maldição Trevo, não pode esperar um momento mais propício?
A ave não responde, no lugar o som da marcha de metal de uma patrulha próxima esclarece a Samael sua resposta.
— Maldita má sorte.

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