[AVISO DE CONTEÚDO: Esse capítulo possui menções à uso de entorpecentes, assim como a descrição da briga de um casal que quase chega ao abuso físico. Lembrando que caso você conheça uma mulher num relacionamento complicado como esse (ou até pior), a Central de Atendimento à Mulher pode te ajudar pelo número 180.]
— Alguma ideia de que horas eles voltam?
— A professora disse que vai levar eles para passear pelo campus, e a mãe estava planejando nos pagar um almoço, então…
— Tomara que fiquem entretidos o suficiente para nos esquecer.
Gustave nem responde. A essa altura, até se precisasse buscar os pais de Mikael Prater com o próprio carro, não seria um grande problema. Seria uma ótima desculpa para voltar à universidade, na verdade. Se os alemães quiserem esperar lá na sala da professora, tá ótimo também. É pertinho da sala do Émile… e ele disse que vai voltar depois do almoço, né?
Merda, lá vai ele, se perdendo de novo. Respirando fundo, o capitão ajusta a postura e se força a voltar ao planeta Terra. Por sorte, sua chefe não estava falando nada com ele… nem com ninguém. Olhando ao redor, o ruivo percebe um silêncio atípico ao escritório. Está tão quieto que dá até para tirar uma soneca.
— Cadê todo mundo?
— Leclerc levou as coisas do Prater no laboratório. Bouchard e Duchamp estão na casa da Christine Laurent.
— O Duchamp?
A delegacia está com tão pouca gente disponível assim? Gustave sabe que o atual recepcionista deve ter bastante experiência com casos mais delicados, mas ele já se aposentou. Ele até questionaria se isso é permitido, mas se tratando do Duchamp, “permissão” é um conceito apenas opcional.
Franzindo as sobrancelhas, a major curva-se sobre a mesa antes de perguntar:
— Você chegou a ver algum jornal hoje?
— Que houve?
— Parece que parte das informações foram vazadas, e fizeram uma matéria sobre o caso no noticiário da manhã. A namorada do Mikael Prater ligou enquanto você estava fora, pedindo socorro, porque a imprensa tá na porta dela desesperada por uma entrevista.
— Putz, que merda.
— Se eu fosse lá, só ia chamar mais atenção ainda, então mandei o Duchamp para acalmar a família, e o Bouchard para passar um pouco de segurança e fazer pressão nos jornalistas. Eu queria aproveitar a situação para pegar mais alguns detalhes, já que o primeiro interrogatório com o Bouchard e a Leclerc não deu muito certo, né? Talvez a namorada e a sogra fiquem mais à vontade com alguém diferente, e a imprensa pode recuar se mandarmos um policial mais intimidante…
— Já entendi. — Gustave se contém para não bufar.
Até que a casa da família Laurent é bonitinha. No meio de uma vizinhança relativamente deserta, as telhas vermelhas desbotadas e o gramado bem cuidado normalmente já se destacariam, mas com a meia-dúzia de estagiários de jornalismo amontoados em frente à soleira, parece a entrada de uma cafeteria hipster.
Pelo menos a horda não tenta impedir a entrada de Gustave, nem tropeça uns nos outros quando gritam suas perguntas. Alguns nem tentam dirigir a palavra, apenas levantam os celulares e tiram fotos enquanto ele passa, como se ele fosse um animal de zoológico que acabou de acordar de uma soneca. Filhos de uma puta arrombada, cada um deles.
— Achei que a situação estaria pior quando elas ligaram. — Bouchard confessa num sussurro enquanto lhe passa uma xícara de chá na sala de estar, cortesia da (ex-)sogra de Mikael Prater.
— Cadê o Duchamp?
— Tá na cozinha, de papo com elas desde que chegamos. Já se acalmaram bastante.
— Ah, então a menina aceitou sair do quarto?
— Pelo visto. Só ainda se recusa a olhar na minha cara.
— Ah, essa parte eu entendo. — Gustave assente, dando um gole. Antes que o colega possa retrucar, ele se levanta e se dirige à anfitriã, que entra novamente com outra bandeja. — Deixa comigo, senhora.
— Muito obrigada. — A mãe de Christine Laurent lhe entrega a louça. — Agradeça também ao seu comando por ter enviado os reforços.
— Bem, eu não vim exatamente como reforço, mas sim como troca de turno. Inclusive, preciso confirmar mais algumas coisas com vocês duas. Se a senhora me der licença, preciso sentar com a sua filha lá na cozinha, tá?
Duchamp apenas acena ao vê-lo entrar no recinto, um breve sorriso no rosto. Em frente a ele, está sentada uma menina cuja tintura no cabelo já deveria ter sido retocada há mais de um mês. O que era para ser vermelho está laranja, desbotando em amarelo até subitamente transformar-se em preto. O rosto dela é bem redondinho, ainda carregando consigo os traços da adolescência, porém seus olhos escuros estão opacos, e os círculos abaixo deles parecem se estender até mais longe do que parece razoável. Ela morde os lábios ressecados.
Christine Laurent, 19 anos. Se a memória o serve corretamente, é estudante do segundo período de Serviço Social.
— Oi — ela murmura, observando Gustave se sentar à mesa.
— E aí? — Ele se sente um pouco idiota tentando sintonizar na mesma frequência que a menina, mas não custa tentar. — Meu nome é Martin. Cheguei pra substituir esse maluco aqui, espero que ele não tenha te perturbado muito.
Duchamp revira os olhos.
— A gente tá falando de cinema, Martin. Não que você jamais conseguiria entender.
— É claro. — Tanto faz. — Sinto muito por interromper o debate intelectual, mas a Major pediu para você voltar o quanto antes.
— Poxa vida. Obrigada por ouvir minha palestra, Chris.
— Que nada, seu Pierre. Obrigada pelo café!
Isso porque ela não queria nem abrir a porta pra Leclerc ontem, né? Caraca. Não dá para negar que o velho sabe o que faz.
— Então, Christine… — Gustave apoia os cotovelos na mesinha de jantar. — Você já deve estar de saco cheio da gente, mas me mandaram te perguntar mais umas coisas.
— Imaginei.
A linguagem corporal dela muda imediatamente após Duchamp sair da cozinha; o sorrisinho vai embora com ele, e ela para de brincar com a caneca que ainda segura.
— Vou tentar ser rápido, tá? — O ruivo chega a estranhar a cautela na própria voz. — Você não precisa responder nada que não queira, — por mais que ele vá insistir se ela não o fizer — mas eu preciso que você seja completamente honesta comigo.
— Eu não tenho dez anos de idade, eu sei como funciona. — Pelo jeito que ela resmunga, não aparenta ter muito mais do que isso. O mínimo que ela podia fazer era cooperar.
A fim de contornar a situação, Gustave responde que tais declarações são apenas parte do protocolo, e que ele precisa também recapitular todas as informações fornecidas por ela até o momento: dados pessoais, sua história pessoal com Mikael Prater, o status do relacionamento entre eles, como se conheceram, quanto tempo passaram juntos, quando foi a última vez que se viram.
— Vocês terminaram o namoro quinta-feira, por causa do vício dele em drogas.
Ela permanece quieta.
— Quando você o confrontou sobre a moradia dele, ela levantou a mão como se fosse te bater. Você disse que recuou, levantou os braços para se proteger e gritou. Nisso, ele ficou parado por alguns instantes, abaixou o braço, e saiu correndo daqui. Depois disso, você não recebeu mais notícias dele até entrarmos em contato com você. Só vocês dois estavam em casa nesse último momento, certo?
— Certo.
— Você acha que ele estava sob influência de alguma substância durante a briga?
— Não. Ele só estava um pouco mais nervoso que o normal, mas não deu nenhum outro sinal de ter usado algo antes de vir para cá.
— Recapitulando essa parte com um pouco mais de detalhes, você questionou especificamente a expulsão dele do apartamento que dividia com os colegas. Você sugeriu que ele ficasse aqui, com você e a sua mãe, e ele se recusou, afirmando que pagaria por um quarto numa pousada. Aí você perguntou como que ele ia pagar por isso, e foi aí que a briga estourou. Algum palpite sobre essa recusa tão ferrenha?
— O Mikael é orgulhoso demais. Ele se recusa a pedir ajuda para qualquer coisa, por mais fudido que ele esteja. Isso acaba comigo. Não era para ele confiar pelo menos em mim?
— Por isso você reagiu.
— Eu surtei. É crime, por acaso?
— Não estou aqui para julgar ninguém. — Por mais que ela tenha razão. — Vocês ficaram batendo boca depois disso.
— Vamos pular para a próxima parte, por favor.
— Não posso. Perdão.
— Por favor.
— Eu vou só repetir o que você disse no seu último depoimento, tá? Você perguntou de onde que ele ia tirar o dinheiro, ele disse que não era da sua conta. Você começou a falar mais alto que ia dar tudo certo se ele aceitasse a situação e buscasse ajuda. Nisso… tudo bem, vou pular o palavreado chulo… — Não por se sentir mal por ela, mas sim porque ele não está aguentando essa novela mexicana. — Mas no fim, você terminou o namoro por, abre-aspas, “não aguentar mais ter que se importar com um noia vagabundo que prefere morrer de overdose num banheiro químico a tentar se cuidar um pouco”. Ele te xingou, você xingou ele de volta, ele ameaçou te bater… E foi embora depois.
São palavras bem brutais para se despedir do seu amado para sempre. Christine parece estar bem ciente disso, considerando que caiu em lágrimas no meio da narração. O jeito que ela tenta cobrir o rosto com as mãos não disfarça nada, e seus soluços estão começando a parecer gritos abafados. Gustave espera alguns instantes para a menina se recompôr; levanta-se e serve um copo d’água. Seu corpo inteiro treme à medida que tenta tomar goles lentos, mas sua respiração não é alta o suficiente para que Gustave não perceba que está ocorrendo alguma movimentação lá na sala. Dá para ouvir alguém se colocando contra a porta. Provavelmente, é Bouchard. É possível escutar a voz dele, mas não dá para discernir o que diz à mãe de Christine.
A interrogada, enquanto isso, repete pedidos de perdão enquanto tenta ajeitar os cabelos, esfregar os olhos, fazer qualquer coisa que amenize sua aparência instável. Após tomar o final da água que ainda estava no copo, pede que Gustave continue o interrogatório. Ele atende:
— Você foi a primeira pessoa a mencionar que o Mikael fazia uso de drogas. Há quanto tempo isso estava ocorrendo?
— Faz uns meses. Eu descobri porque quando a gente ia para alguma festa, volta e meia ele sumia… E aparecia uns dez, quinze minutos depois todo alegrinho, rindo à toa, sabe? Achei que ele estava dando perdido para me trair. Uma noite eu segui ele… e encontrei ele cheirando pó na saída de emergência do bar.
— Como ele reagiu?
— Me ofereceu.
— Você aceitou?
O silêncio dela é ensurdecedor.
Pelo amor do céu.
— A gente não vai te incriminar por nada. Uso não é porte, nem tráfico, e só tenho como dar voz de prisão se te pegar em flagrante.
— … Aceitei. — O timing da fungada que dá ao admitir chega a ser cômico em sua ironia. — Eu sempre tive um pouquinho de curiosidade, tá?
— Eu já falei que não tô aqui pra te julgar, Christine. Essa foi sua única experiência se drogando?
— Foi a primeira. Eu provei mais algumas vezes com o Mika, mas era bem de vez em quando. Coisa de semanas entre cada vez. Eu parei depois de ter uma bad trip horrorosa, mas ele continuou normal.
— Você só usou cocaína?
— Só, ué. Era a única coisa que o Mikael usava.
Ah.
— Você sabe se ele usava alguma medicação no dia-a-dia?
— Que eu me lembre… Ele sempre carregava dipirona, por precaução, e uma vez eu achei zolpidem no quarto dele… — Dá para perceber pela expressão dela o exato momento em que liga os pontos. — Ele me disse que tomava para insônia.
Gustave prefere não confirmar a descoberta recente de Christine. Ela que processe isso sozinha depois.
— Entendi. Voltando à tarde de quinta, então. Depois que ele saiu, você se trancou em casa até segunda, incluindo a noite de sexta, quando o Mikael foi visto pela última. Mais alguém estava aqui?
— Minha mãe. Ficamos assistindo filmes.
— Você falou com mais alguém durante o fim de semana?
— Fiquei batendo papo com o pessoal da minha turma e umas amigas do Ensino Médio por mensagem, todo dia, e tive uma call com uns amigos online no Domingo.
— Alguém conhecia o Mikael?
— Só de nome.
— Entendi. — Ele faz uma breve anotação sobre a possibilidade de conferir os perfis destes amigos. — Então a única pessoa que esteve com você nesses dias todos foi sua mãe, né? Você contou por que terminou com o Mikael?
— Não, né? A única coisa pior do que ter uma filha drogada é ela namorar um drogado.
— O que você disse para ela?
— Que achei que ele estava me traindo.
— Ela sabia que ele foi expulso de casa?
— Agora sabe. Bem, agora ela deve saber de tudo…
Christine solta um suspiro tão longo que chega a impressionar.
— Vocês chegaram a conversar sobre a situação toda?
— Não, ela só falou que está pronta para me ouvir quando eu quiser, se eu quiser falar.
— Que mãe legal.
— Demais. Ela está super carinhosa esses dias.
— E antes disso tudo… — Gustave volta algumas páginas no caderninho, lembrando-se do comentário que um dos colegas de apartamento fez, mencionando a aversão do sumido à morar com a sogra. — Ela gostava do Mikael?
— A primeira impressão foi boa. Mas nos últimos meses, ela ficou indo e vindo entre ficar preocupada com ele, ou por causa dele.
— Ela percebeu que vocês, ou pelo menos ele, eram usuários?
— Não! — Ela protesta. — Não que eu saiba. O Mika nunca veio aqui chapado, e eu só voltava para casa quando tinha certeza que estava sóbria. Mas ele já estava meio estranho de uns tempos pra cá. Sempre agitado, se irritava por qualquer coisa, ficava mudo do nada… e eu tava ficando doida de preocupação com isso! Essa parte ela deve ter notado.
Será que esse comportamento era por abstinência? Ou então ele queria disfarçar que estava, sim, chapado?
— Ela falou sobre isso com você? Fez ao menos algum comentário?
— Não, mas tava na cara.
— Então, finalmente… — Gustave se prepara para outra rodada de choradeira. — Depois de três dias inteiros sem contato nenhum, você não tentou falar com ele nenhuma vez?
— Eu que dei um fora nele, Capitão. Não dá para simplesmente só mandar mensagem do nada.
— Mas você não ficou preocupada? Você relatou que tinham o hábito de falarem no telefone toda noite.
— Olha, se eu desse o braço a torcer tão fácil assim, ele não ia me levar a sério. Eu queria falar com ele, é claro que queria. Mas se eu terminei com ele justamente por querer que ele mude, e três dias depois eu já voltei correndo, quer dizer que eu não me importo tanto assim, que tá tudo bem com a atitude dele, que eu me arrependi…
— Faz sentido. — Gustave murmura, tentando mantê-la sob controle.
Não funciona.
— Merda — ela soluça. Merda, ele concorda. — O pior é que ele estaria certo. Eu nunca me arrependi tanto de algo na minha vida. Se eu soubesse que ia dar nisso, faria de tudo possível para ser diferente, para ele estar aqui agora. Meu Deus, eu abandonei ele — e as lágrimas voltam a escorrer grossas por seu rosto. Seus lábios inchados lutam para soltar todos os seus pensamentos, apesar de serem constantemente interrompidos por uma evidente falta de ar. — O que foi que eu fiz? Eu abandonei o homem que eu amo. Desculpa, eu– é que– eu ainda amo ele, Capitão, amo muito, eu juro. Eu amo muito o Mikael que eu conheci, só não o cara que ele se tornou. Eu só queria ele de volta pra mim. Eu sinto tanta falta dele…

Comments (0)
See all