As horas seguintes à ligação de Lisa se mostram um exemplo clássico de “anticlímax”. Ao voltar à delegacia, Gustave encontrou apenas Leclerc e Duchamp tomando chocolate quente. O único outro contato que receberam até o final da tarde veio da professora Villeneuve, avisando que a família Prater tinha retornado ao hotel. E quando o pessoal do próximo turno começou a chegar, ficou evidente que não tinha muito mais que ele pudesse fazer por hoje.
É por isso que ele vai direto para casa, sem academia ou mercadinho. Seu jantar é costurado com um monte de itens soltos que pesca na geladeira. É uma noite tão silenciosa que chega a ser estranho. É só ao se acomodar na cama que se lembra que precisava levar Buddy para passear. Não parece que o cachorro se importa muito; ele já se enfiou debaixo do cobertor, enrolando-se entre as pernas do dono. Não demora muito para Gustave perder a consciência depois disso.
É um sono aparentemente profundo. Ao despertar, encontra-se quase na mesma posição em que adormeceu, e não se lembra de ter sonhado com alguma coisa. Deve ter sido pela exaustão, mas isso não justifica ele ter acordado quinze minutos antes do alarme. Ainda está escuro lá fora. Por um momento, parece que nada mudou desde a noite passada, com exceção de dois pequenos detalhes: Buddy não está mais no quarto, e Lisa lhe enviou uma mensagem de áudio de quase quatro minutos.
— Bom dia, Martin… — Já passava de duas horas quando começou a gravação. Ela soa bem rouca, como se precisasse de um belo copo d’água. Seu fôlego falha em meio às palavras. Os ruídos no fundo indicam que ela estava dirigindo no momento, ou no banco do carona. Ele espera que seja a segunda opção. — Estamos indo para uma pousada agora, acabamos de sair da delegacia. Desculpa não ter falado direito com você mais cedo… Deu para perceber que não tive tempo nem para responder suas mensagens, né?
As justificativas preocupadas são um gesto bem legal da parte dela, mas ele ficaria ainda mais feliz se só fosse direto ao ponto — o que ela faz, depois de mais algumas explicações. Tudo o que a equipe sabe até o momento é que Mikael Prater está nas redondezas da cidade de Sherbrooke, e que apesar de parecer acabado, está agindo de maneira sóbria, de acordo com as testemunhas.
Porra, ainda bem que ele não apostou dinheiro na morte do garoto. Mas como é que ele foi parar a três horas de distância de Québec? Sherbrooke fica quase na fronteira com os Estados Unidos. Se Mikael quiser seguir rumo a mais algumas cidades ao sul, o caso vai tomar proporções federais. Cruz-credo.
— Ele foi visto mendigando numa área comercial, pedindo por comida e dinheiro. Também relataram que ele estava pedindo caronas para Québec num posto de gasolina. Ninguém sabe se alguém topou trazer ele, ou se ele ainda está por aqui, mas pelas câmeras de segurança, dá para ter certeza que é ele, sim. Tendo isso dito, por favor, preciso que você fale com os pais dele, para explicar a situação da maneira mais vaga possível. Por favor, não diga em que cidade estamos. A última coisa que a gente precisa é deles vindo até aqui para monitorar até os espirros que a gente dá. Pode falar em que tipo de situação o Mikael foi avistado, mas toma cuidado para não terem um aneurisma. E pelo amor do céu, reforça quantas vezes precisar que isso é informação confidencial, tá? Ninguém pode ficar sabendo. Especialmente a imprensa.
Claro.
Lisa encerra a mensagem pedindo que o capitão confirme que ouviu tudo — ele o faz imediatamente — e garantindo que ela vai ligar para o resto da equipe assim que acordar. Não que precise, mas é melhor deixar ela fazer o que quiser. Já deve estar complicado o suficiente para ela, então qualquer coisa que a ajude manter a sanidade está valendo.
Considerando todos os acontecimentos recentes, Gustave se permite cinco minutos a mais para executar sua rotina matinal. Até porque é preciso esfregar o rosto com um pouco mais de vigor para se sentir realmente desperto, e ele quase se corta ao ajustar a barba. Chega a ser impressionante como ele nunca quis tanto ficar em casa. Até onde ele sabe, tem uma chance muito real dele chegar na delegacia e ficar sabendo que enquanto Lisa dorme lá longe, Mikael Prater continuou sua jornada, foi parar nos Estados Unidos, e agora é parte de um esquema de tráfico de drogas internacional. Ou então, vai descobrir que na verdade ele foi vítima de tráfico humano. Sempre tem a chance do corpo dele ser encontrado num valão, também. E quem é que vai ter que consolar os pais dele depois de dar os pêsames?
Pois é.
Por mais irritante que o casal seja, é um zelo completamente justificável. Eles são pais, afinal de contas. Gustave não sabe como é a sensação, felizmente, mas dá para imaginar o pânico que eles estão passando nesses últimos dias. Seria ótimo se uma notícia mais leve os agraciasse hoje. Pelo bem deles, e do próprio Gustave.
— Não consigo expressar o quão feliz estou em te ver — suspira a capitã Bernard, temporariamente responsável pelo turno da noite. Se a chegada dele é a tal notícia positiva que desejava, as coisas realmente devem estar na merda. É visível que ela não está lidando bem com o peso do cargo, considerando sua terrível postura e expressão exausta. De ombros caídos, ela está curvada feito um camarão na frente da escrivaninha. Seus cabelos castanhos não estão presos no rabo-de-cavalo obrigatório ao uniforme, e seus óculos escorrem até a ponta de seu nariz. O maior esforço que consegue fazer é se ajeitar um pouquinho quando Gustave puxa uma cadeira para se sentar ao lado dela.
— Força, só mais vinte minutos.
— Martin. Eu tô acorrentada a essa mesa faz doze horas.
— Onze horas e quarenta minutos.
Ela ignora a brincadeira.
— Eu não preguei o olho a noite inteira. Nem uma sonequinha. Os meninos estão todos ocupados, correndo para cima e para baixo. Prenderam gente, até. E eu? Eu tive que ficar aqui esperando uma ligação que não veio, sem ninguém para conversar. Eu já reassisti meia temporada de Gray’s Anatomy. E nunca dá sete da manhã.
O ruivo opta por dar apenas um silencioso, porém amigável, tapinha no ombro dela. Bernard não tem medo de atacar quando está de mau humor, então é melhor deixar ela desabafar. Em nenhuma circunstância ele deve expressar o pensamento de que ela estaria mais alegre se tivesse escolhido uma série melhor para maratonar ao longo da noite…
E é também melhor afastar o pensamento de que é assim que ele estará dentro de doze horas. Desviando do assunto, Gustave pergunta:
— Eu soube que eles terminaram a reunião quase duas da manhã, né?
— Duas e dez, o Capitão me ligou quando chegaram no hotel. Disse que a coitada da Major Gauthier apagou assim que deitou na cama, nem tirou o uniforme direito.
— Ela me mandou uma mensagem resumindo as partes mais importantes, mas não foi muita coisa.
— Você sabe que eles estão em Sherbrooke, né?
— Isso é o básico do básico, Bernard, é claro que ela falou isso. Estava falando do que foi discutido na reunião, só sei que o Prater foi visto tentando arranjar carona.
— Então, conseguiram umas filmagens de pontos-chave da cidade. Ele está lá desde pelo menos segunda-feira. Entramos com uma solicitação junto à rodoviária daqui para liberarem as gravações de domingo e segunda, já que a gente só tinha até sábado, né? Mas óbvio que ninguém respondeu de madrugada. Acredito que isso vai ser problema seu para resolver hoje.
— Valeu. Mais algo que eu deva saber?
— Nada, foi literalmente só isso mesmo. Trouxe alguma coisa para fazer hoje? Um livro?
— Eu tenho cara de quem traz livro pro trabalho?
— Sei lá, não vou te julgar só pela aparência. — Ela dá de ombros antes de voltar a encarar a tela, trocando mais uma vez de assunto. — Sabe… Eu tava achando que ele tinha fugido para dar calote nas dívidas, mas se ele está tentando voltar, o que será que foi, então?
Olha, você ainda chegou mais perto do que eu no palpite.
— Talvez ele tenha se arrependido.
— É a linha que vou seguir agora. Deve ter sido no calor do momento, as drogas falando mais alto, não sei…
— Eu te aviso quando eles mandarem as gravações. Duvido que vai rolar muita coisa em quinze minutos, vai lá trocar de roupa.
A chefia precisa ter alguma vantagem: é com essa justificativa que Gustave comete um leve abuso de autoridade e delega a tarefa de comunicar os pais de Mikael sobre seu atual paradeiro. Afinal de contas, ele está muito ocupado, só não pergunte com o quê. A responsabilidade fica entre Bouchard e Leclerc, que estão livres para dividi-la como quiserem entre si, desde que o outro confira como Christine Laurent está, e dê um jeitinho na cozinha depois. Duchamp, como sempre, já está na recepção com sua xícara de café, vigiando um grupo de jovens que foram apreendidos pelo time da noite. Vandalismo, aparentemente. Estão esperando os papais aparecerem para pagar a multa. E quanto a Gustave… alguém tem que transcrever os depoimentos de ontem, né? Mas nem dá para ir muito longe nisso, visto que, aparentemente, Lisa já está acordada.
— Curtiu a soneca, Major?
— Bom dia para você também. — Resmunga, ainda bastante devagar.
— Bom dia. — Ele se contém para não provocá-la sobre ter dormido de uniforme. — Não temos nenhuma novidade por aqui, antes que pergunte.
— Nem aqui. Estamos nos ajeitando para ir para a delegacia, mas já avisaram que o Mikael não deu sinal de vida durante a noite. Mas emitiram mais alertas de desaparecimento, então, pode ser que a gente dê sorte. Tudo bem por aí?
— Tudo normal. Tá uma chuvinha fina desde madrugada. A Bernard finalmente deixou uns biscoitos para compensar aqueles que eles roubaram da gente. E, hã, o Duchamp tá tomando conta de uns moleques que foram pegos pichando a escola.
— … Que bom. O pessoal daqui disse que o café da manhã é por conta deles.
— Boa. Me dá um review depois.
Há mais um momento de silêncio antes de Lisa perguntar:
— Seja sincero, Martin. Você acha que vamos dar sorte hoje?
Ele não é muito bom nisso, mas falar o que querem ouvir sempre funciona.
— Espero que sim, Major. Não tem muito mais para onde o moleque correr.
— Queria logo resolver isso para saber como ele conseguiu chegar aqui.
— Um problema de cada vez. Se bem que seria bom se ele parasse de arrumar problemas, para começar…
— Vou te botar para interrogar quando pegarmos ele, aí você aproveita e dá bronca.
Pelo risinho que ela solta do outro lado da linha, deve ter previsto perfeitamente a reação dele: clicar a língua e dizer que vai desligar para trabalhar.
O resto da manhã corre sem maiores emoções. Os pichadores levam uma lição de moral homérica quase humilhante de Leclerc. Na frente dos pais, ainda por cima, que parecem não saber onde esconder o rosto. Ela não diz muito sobre como a família de Mikael Prater reagiu às notícias. Christine Laurent, pelo outro lado, parece estar mais em paz, segundo Bouchard. A casa dela ficou muito menos atraente para a imprensa sem a polícia na porta. Lisa diz que o café em Sherbrooke é muito aguado, mas que assam bolos maravilhosos. Richard liga para avisar que ela precisará dar uma entrevista para o jornal vespertino de lá, e é lembrado de que ela não está presente para pegar o recado. A equipe faz uma vaquinha e compra uma quentinha de massas para dividirem entre si no almoço. Alguém teve um celular furtado, uma criança tentou passar um trote, e uma moça pediu ajuda na entrada para entender o caminho até o campus de arte da universidade local.
E finalmente, às duas e quarenta e sete, o telefone pessoal de Gustave começa a tocar. Ainda nem receberam sinal das gravações da rodoviária, mas se Lisa está lhe ligando no meio do dia, provavelmente elas não serão tão mais urgentes assim.
Quando atende a chamada, ela o cumprimenta do exato jeito que ele previu:
— Estamos em custódia do Prater.
O que é ótimo, mas quer dizer que agora Gustave tem que pagar vinte pratas pra Leclerc e pro Duchamp. Se o alemão tivesse esperado mais uma hora e meia para aparecer, o jantar dele estava garantido…

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