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Zhen Ming estava de volta a sua casa no topo da montanha. Ela se viu mais nova, com dez ou onze anos, deitada em sua cama com uma compressa fria na testa. Sua irmã estava sentada ao seu lado, com três pergaminhos sobre o colo e um aberto nas mãos, que ela lia enquanto fazia anotações. O cabelo preto e curto caía sobre os olhos, mas a mais velha não parecia se incomodar. Ela desviou o olhar do pergaminho, percebendo a menor acordada.
—Ei, como está se sentindo? – Deixou o pergaminho de lado, removendo a compressa e verificando que já não havia mais febre. Zhen Ming não respondeu, mas riu, o que fez com que surgisse uma bolha de meleca em seu nariz. – Eca. – A menor tentou limpar com a manga de suas vestes, mas a mais velha impediu, alcançando um lenço e segurando-o sobre o nariz de Zhen Ming. – Assoe.
Zhen Ming fez o que lhe foi pedido e sua irmã descartou o lenço sujo junto a outras roupas que estavam num cesto no canto do quarto. Abaixo da janela, havia uma mesa com alguns utensílios. A mais velha abriu um recipiente de barro, enchendo uma xícara com água quente e entregando-o à mais nova, após ajudá-la a se sentar.
—Você está com fome? – Zhen Ming assentiu à pergunta, recebendo um carinho no topo da cabeça e um sorriso. – Vou buscar a comida.
Antes que pudesse se afastar, no entanto, Zhen Ming segurou sua mão e apertou.
—Jiejie... obrigada. – Sua irmã sorriu mais e tocou seu rosto, deixando o cômodo em seguida.
Zhen Ming voltou a se deitar na cama, fechando os olhos. Mas quando tornou a abri-los, a memória já havia se desfeito. Encontrava-se ainda na enfermaria da Seita Li. Os pálidos raios de sol do começo da manhã, que escapavam pela porta aberta e pelas frestas das cortinas, iluminavam a figura ao seu lado. Aos seus olhos, a líder da seita parecia uma imortal, brilhante e imponente em suas vestes vermelhas e postura impecavelmente rígida, mas também delicada e gentil, trazendo-lhe conforto e familiaridade com a lembrança recém-revivida em sua mente.
Hongyu estava sentada, com um par de pergaminhos no colo e um livro aberto em suas mãos. Na mesinha de cabeceira havia pincel e tinta e um caderno cheio de anotações. Não demorou para que a maior percebesse que Zhen Ming havia acordado, deixando o livro de lado.
—Como está se sentindo? – Zhen Ming riu, achando ainda mais graça com a semelhança, mas por sorte, desta vez não estava resfriada, evitando passar vergonha.
—Eu estou bem. – E realmente, seu corpo já não doía mais tanto quanto na noite anterior e a dor de cabeça também era apenas uma leve pontada. Ela não conseguia sentir sua perna quebrada, deduzindo que estivesse sob o efeito de algum anestésico para evitar a dor. Estava prestes a perguntar sobre, mas o som de seu estômago vazio, exigindo comida, passou em sua frente.
—Você está com fome? – Hongyu indagou, sua expressão sempre séria suavizando um pouco, como se tentasse esconder um sorriso. A menor assentiu, sentindo seu rosto esquentar, havia comemorado cedo demais. – Vou pedir a alguém para trazer a comida.
Antes que a líder de seita pudesse se afastar, Zhen Ming agarrou a manga das vestes de Hongyu. Um sorriso brilhante surgiu em seu rosto.
—Jiejie, obrigada.
Em nenhum momento pretendia desrespeitar a líder de seita, no entanto não resistiu em soltar aquela frase. Hongyu arqueou uma sobrancelha, um tanto confusa, mas não disse nada, o que Zhen Ming tomou como um sinal positivo, observando-a deixar o cômodo.
Hongyu não demorou a retornar, voltando a se sentar no banco ao lado da cama de Zhen Ming e reabrindo o livro que estava lendo, com o pincel em mãos para anotações. Ela não parecia incomodada com o silêncio, mas Zhen Ming, que não tinha nada para fazer, começou a ficar ansiosa, torcendo os dedos e espiando cada canto do quarto onde estava.
Não tinha conseguido ver antes, mas o local era amplo. Haviam cerca de cinco camas dispostas lado a lado, com bastante espaço de uma para a outra. Ao lado de cada uma, havia uma mesinha com gaveta, um recipiente com água e copos de porcelana. Três janelas grandes, que agora estavam abertas, deixavam a luz do sol e o ar puro entrarem. A brisa suave que fazia as cortinas balançarem carregava um aroma levemente doce e cítrico, que parecia familiar a Zhen Ming, mas que não soube reconhecer de onde.
Após explorar tudo o que a vista alcançava, Zhen Ming tornou a sentir-se ansiosa.
—Líder Li... quanto tempo eu fiquei desacordada? – Tentou puxar assunto, porém, Hongyu nem mesmo levantou o olhar.
—Dois dias.
—Oh. Então eu perdi seis refeições. – A cultivadora observou a líder de seita franzir a testa em uma expressão engraçada.
—Esta é uma observação bastante peculiar a se fazer logo após acordar. – A voz de Yahui preencheu o ambiente com um toque de diversão. Ela entrou carregando uma bandeja com várias tigelas e um jogo de chá, a qual ela depositou na cama ao lado da de Zhen Ming. – Mas, na verdade não perdeu tantas refeições assim. – A médica direcionou seu olhar à Hongyu, que imediatamente virou o rosto, evitando-a. – Nós a mantivemos alimentada o melhor que pudemos, não se preocupe.
—Uh... – Zhen Ming encarou de uma a outra e sorriu abertamente, mais um sorriso brilhante que fez o rosto da líder de seita ganhar um suave tom de rosa. – Tudo bem! De qualquer forma, posso comer o quanto quiser quando estiver recuperada. – A menor respondeu, se ajeitando na cama.
—Exatamente. Agora, deixe-me dar uma olhada em você. – A médica pediu, prendendo as mangas atrás de suas vestes. Zhen Ming assentiu, permitindo-a levantar a coberta. Yahui tocou alguns pontos de seu corpo com as pontas dos dedos e Zhen Ming sentiu o leve calor da energia espiritual da médica fluindo em seus meridianos. – Sem sinais de veneno nem dos danos causados por ele. Sua recuperação foi assustadoramente rápida, mesmo para uma cultivadora.
—Ah, eu sempre me recuperei rápido. – Ela respondeu, desviando o olhar e coçando a própria bochecha. Hongyu encarou-a, estreitando os olhos, mas sem comentar qualquer coisa.
—Quanto à sua perna... – Yahui puxou o tecido da roupa de Zhen Ming para cima, exibindo a perna quebrada, que estava enfaixada e devidamente imobilizada. Ela também tocou, usando energia espiritual para avaliar a situação. – É, vai demorar um pouco mais, talvez um mês se tiver sorte. Por enquanto, precisa ficar em repouso pois ainda está muito inchada e terminando de se recuperar da inflamação causada pelo veneno. Eu apliquei um anestésico antes para evitar que sentisse dor. Posso continuar aplicando?
—Sim, por favor. – Zhen Ming quase implorou. Não iria admitir ainda, mas era bastante sensível à dor. Sem dizer mais nada, Yahui retirou um pequeno estojo de agulhas de uma bolsinha presa à sua cintura e aplicou duas delas, uma abaixo do joelho e outra próximo ao tornozelo de Zhen Ming. A menor sentiu sua perna formigar por alguns instantes e depois mais nada. – Posso comer agora?
Yahui riu, ajudando-a a se arrumar na cama e se sentar direito. Colocou a bandeja sobre o colo da menor, removendo as tampas que mantinham a comida aquecida. O aroma de galinha, ovos e arroz cozido fez Zhen Ming salivar.
—Fique à vontade. – Ela serviu uma xícara de chá para Zhen Ming e outras duas para si e para Hongyu. – Temos sopa de legumes com caldo de galinha, ovos cozidos, arroz e broto de bambu em conserva.
—Ah... obrigada Srta. Yahui! – Sem mais espera, a cultivadora pegou os pauzinhos e passou a comer. Apesar de sua fome, ela não atacou a comida desesperada, mas saboreou cada pedaço com calma.
—Você não precisa nos tratar com tanta formalidade. – A conselheira da seita Li comentou, colocando um banco ao lado de Hongyu e sentando-se ali, enquanto bebericava seu chá. – Pode nos chamar pelo nome, não é, Hongyu?
A líder de seita nada disse, lançando um olhar interrogativo à sua conselheira, que cutucou-lhe com o cotovelo.
—Sim, eu não me importo. – respondeu por fim.
—Então eu posso te chamar de Jiejie?! – Os olhos de Zhen Ming brilhavam, cheios de animação. Novamente Hongyu sentiu suas bochechas esquentarem e desviou o rosto.
—Tanto faz.
—Vocês podem me chamar de Zhen Ming também!
—Certo, Zhen Ming. Esperamos que aprecie a hospitalidade de nossa seita e, se precisar de qualquer coisa, não hesite em nos avisar.
A menor concordou animada, com as bochechas cheias de comida.
Em meio à conversa tranquila das três, Yahui percebeu alguém parado na porta. Era a mais velha das discípulas da seita Li que Zhen Ming salvou quando chegou a Zheng Qi. A líder de Seita se levantou imediatamente, sendo seguida pela médica.
—Mestre, Conselheira Yahui. – A menina cumprimentou, inclinando-se respeitosamente para as duas.
—Diemeng, aconteceu alguma coisa? – Hongyu indagou, fechando sua expressão.
—Bem, sim...
Diemeng deu um passo para o lado. Agarrada a sua perna estava uma menininha de seis ou sete anos no máximo. Ela tinha cabelos castanhos crespos, amarrados em um par de coques no alto da cabeça. Suas vestes, vermelha e branca, estavam manchadas de sangue. Ela segurava um lenço na boca e tinha um curativo no nariz. Ao pôr os olhos sobre ela, Hongyu sentiu seu sangue gelar.
—Yan! O que aconteceu?! – Abaixou-se, verificando se a menina tinha mais algum machucado.
—Ela caiu e bateu o rosto em uma árvore enquanto brincava. – Foi Diemeng quem respondeu. Yahui também se aproximou, verificando os machucados.
—Não é nada grave, ela perdeu um dente de leite que muito provavelmente já estava perto de cair. O nariz só está um pouco inchado e tem um leve corte, mas com descanso e uma pomada, vai sarar rapidinho. – A médica limpou o nariz da menina com um lenço molhado e substituiu o curativo.
—Como eu posso sair tranquila, se você se machuca quase todo dia? – A líder de seita afastou os cachos bagunçados que caíam sobre o rosto de Yan. Zhen Ming achou a visão adorável, era perceptível para si o quanto Hongyu zelava pelos discípulos de sua seita, principalmente os mais novos, como se fossem seus filhos. Porém, o olhar que lançava para a pequena era ainda mais especial, mais brilhante.
—Daxie podexia me xevar xunto enxão. – Respondeu, tentando não afastar o pano da boca.
—Garotinha esperta! Gostei dela. – Zhen Ming riu, recebendo um olhar de reprovação da cultivadora mais velha.
—Você ainda é muito nova, Yan, o mundo lá fora é perigoso. Quando completar seu treinamento, prometo te levar comigo, está bem?
Apesar da reprimenda, a pequena concordou com a cabeça e sorriu, esquecendo o pano encharcado de sangue no colo. Sua boca não estava mais sangrando, mas era possível ver a falta de um dente da frente. Ela fungou um pouco de sangue que quase escorreu pelo nariz.
—Se Dajie promete, Yan vai esperar! Posso brincar agora?
—Nem pensar, mocinha. Você vai descansar, com a cabeça bem erguida para não piorar esse nariz. – A médica entregou um de seus frascos a Hongyu, junto com um potinho tampado. – Este você dá para ela tomar antes de dormir, o outro é uma pomada para passar três vezes ao dia, vai reduzir o inchaço e evitar inflamação.
—Vou cuidar disso. – A líder de seita guardou o que lhe foi entregue em suas mangas, preparando-se para sair, sem reparar no novo sorriso de Zhen Ming.
—Vocês parecem mãe e filha. – Por um breve momento Zhen Ming percebeu o clima do recinto inteiro ficar tenso, exceto por Yan, que riu alto e agarrou a perna de Hongyu.
—Ia ser legal se Dajie fosse minha mamãe! – Os grandes olhos brilhantes fizeram Hongyu sorrir também, pegando a menina em seus braços.
—É, ia sim.
Sem dizer mais nada, a líder de seita deixou a sala levando Yan.
Zhen Ming sentiu seu coração pesar no peito. Não era idiota de não perceber que havia tocado em um assunto delicado e aquilo ficou remoendo em sua cabeça pelo resto do dia.
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Zhen Ming e uma sombra do seu passado, hm?? O que estão achando?! Muito obrigada a quem está acompanhando, nos vemos no próximo capítulo!

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