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Zhen Ming estava sentada no chão de madeira na borda do pátio, com a perna quebrada esticada em repouso, assistindo ao treino de espadas comandado pela líder da seita. Depois de alguns dias praticamente amarrada à cama da enfermaria, Yahui finalmente havia deixado Zhen Ming sair, desde que mantivesse a perna imobilizada e permanecesse em descanso.
Os discípulos repetiam os gestos com maestria e, mesmo assim, vez ou outra Hongyu os corrigia. Com a postura completamente ereta, ela passava de fileira em fileira, analisando cada golpe.
A visão da cultivadora mais velha sob o sol, lançando comandos e fazendo demonstrações para que os demais a seguissem, sem qualquer hesitação, fazia Zhen Ming suspirar. Apoiada na muleta que Yahui havia lhe conseguido para que pudesse transitar pela seita, seus pensamentos vagaram no quanto Hongyu era incrível, linda e grandiosa, em como ela era generosa, apesar de rígida, e imaginando como seria maravilhoso lutar ao seu lado e ver todo o seu poder em batalha. Estava tão distraída que nem percebeu quando o treino acabou e uma roda de discípulos se formou ao seu redor. Precisou ser chamada diversas vezes pelas meninas e meninos empolgados, para que retornasse ao mundo real.
—Senhorita Zhen!
—Senhorita Zhen! Ouvi dizer que a senhorita é boa com arco!
—É! Diemeng disse que a senhorita acertou um monstro cobra no olho enquanto ele a atacava!
—Pode nos ensinar?
—Oh – Zhen Ming sorriu, um pouco confusa com toda aquela atenção e ligeiramente envergonhada pelos elogios. Ela se levantou com ajuda da muleta e limpou a garganta com um pequeno pigarro – Não sou tão boa assim! – Riu, coçando a nuca. – Também não quero ser rude com o professor de vocês e atrapalhar a aula.
—Nosso professor está doente – Uma das meninas respondeu. – A líder da seita disse que poderíamos continuar treinando com espada ou ir estudar na biblioteca.
—Mas se a senhorita Zhen Ming está aqui, poderia nos ensinar um pouco... – Dessa vez um rapazinho sugeriu, agitando ainda mais o grupo.
—Não acho que seja adequado fazer isso sem a permissão da Líder de Seita...
—Se você estiver disposta, não vejo problema. – Yahui falou, se aproximando da pequena comoção.
—Tem certeza? – A menor indagou, a última coisa que queria era deixar Hongyu brava, mas viu Yahui assentir sorrindo. – Então, tudo bem.
—Tragam uma cadeira para que ela possa se sentar no pátio. Os demais, vão buscar os arcos e posicionar os alvos. – A médica acenou, para que as crianças parassem de gritar e fossem se organizar. – Bom, deixo eles aos seus cuidados, tenho algumas coisas para fazer ainda. – Inclinou-se levemente e se despediu.
Apesar de apreensiva, Zhen Ming tentou transmitir seu conhecimento da melhor forma que podia. Nunca havia ensinado alguém antes e ver aqueles jovens animados, felizes em acertar alvos a distâncias e em ângulos que não conseguiam antes, a fez pensar que talvez aquilo fosse mesmo divertido.
—Tong Tong, está muito tensa! A puxada tem que ser firme, mas não rígida. Coloque pressão no abdômen e relaxe um pouco os ombros – Instruiu, vendo a menina fazer exatamente o que estava falando – Isso, agora mire bem e solte.
A seta voou rápido e precisa, acertando bem no centro do alvo. A garotinha levantou os braços e pulou, comemorando. Não demorou para que todos os discípulos conseguissem se familiarizar com as instruções que Zhen Ming dava, repetindo os passos praticamente decorados e acertando um alvo atrás do outro, se desafiando a tentar de outra distância ou de um novo ângulo.
Já era quase noite quando a cultivadora percebeu que o tempo havia voado, todos estavam tão animados que o treino mais parecia uma brincadeira e as crianças insistiam em continuar.
—Ei, como vocês pretendem seguir acertando os alvos no escuro? Isso é difícil até para mim! – Riu, se levantando. – Andem, guardem tudo antes que a Líder Li volte e encontre essa bagunça no pátio!
Com a menção à Líder de Seita, todos se endireitaram imediatamente, apressando-se em arrumar as coisas. Enquanto tudo era colocado em seu devido lugar, Zhen Ming vislumbrou a conselheira e médica da seita nos portões, recebendo uma visitante no mínimo interessante. Viu Yahui se inclinar em um cumprimento respeitoso demais para alguém que parecia uma simples aldeã. Sua curiosidade a corrompeu por dentro e a cultivadora parou o primeiro discípulo que passou por si.
—Hn... você sabe me dizer quem é aquela moça? – Perguntou baixo, quase como se quisesse esconder um crime. Sentia-se um tanto envergonhada por sair perguntando assim, mas Yuxian, uma das meninas que havia protegido na floresta, sorriu antes de responder.
—Xia XinYi, é a irmã mais velha da líder da seita. Ela vem com os filhos visitar de vez em quando.
A cultivadora fez um “O” com a boca, sem emitir som, dedicando um novo olhar à visitante. Desta vez reparou nas duas crianças que orbitavam ao seu redor e percebeu também o volume em sua barriga, indicando uma gravidez já bem avançada.
Zhen Ming teve ganas de fazer mais perguntas, mas achou melhor segurar sua curiosidade, soltando Yuxian e deixando-a seguir seu caminho. Pensamentos borbulhavam em sua mente. Achava estranho... se aquela era a irmã mais velha, porque Hongyu era a líder da seita, e não o contrário? Seriam meio irmãs, filhas de pais diferentes? Suspirou, tentando empurrar esse assunto para o fundo de sua mente. Era verdade que queria saber mais sobre Hongyu, mas ficaria tão mais feliz se a própria líder de seita lhe contasse sua história.
Seguiu para o quarto que haviam lhe designado. A rotina da seita era rígida e, apesar de ser uma hóspede, precisava seguir as regras. O banho acontecia antes do jantar, então separou uma muda de roupas limpas, aguardando que o sino tocasse para que pudesse se reunir com as demais. Os banhos costumavam ser coletivos, pois utilizavam os pequenos lagos de água quente que ficavam nas cavernas naturais, dentro do território da seita. A água era pura e repleta de energia espiritual, o que não somente limpava a sujeira do dia, mas também aliviava as dores e o cansaço dos treinos.
A cultivadora não podia negar que havia ficado ligeiramente decepcionada ao não ver a líder da seita durante o banho, não apenas por interesse pessoal, mas também por preocupação. E quando percebeu que ela não estaria nem mesmo no jantar, começou a ficar ansiosa. Mesmo que seu bracelete não tivesse mostrado qualquer sinal de perigo, a demora da mais velha em retornar fazia seus nervos formigarem e com a perna quebrada, Zhen Ming só podia suspirar pesado e esperar que nada de ruim tivesse acontecido.
Não conseguindo se aquietar, resolveu pegar sua Pipa e sentar-se outra vez no chão de madeira que dava para o pátio. Cantar era algo que gostava de fazer para tranquilizar sua ansiedade e, bem dali onde estava, poderia ver quando Hongyu chegasse. Passou a dedilhar o instrumento, deixando a melodia fluir no ar, junto a sua voz.
Não demorou muito para que uma nova roda de crianças se formasse ao seu redor, dançando e brincando, se divertindo com a música. Entre elas estavam Yan e os dois sobrinhos da líder da seita, um menino e uma menina bem agitados. Aquilo atraiu seu olhar, e acabou a distraindo tanto que não reparou quando Hongyu finalmente retornou.
A líder de seita lançou um olhar intenso na direção da menor, tão penetrante que Zhen Ming instintivamente levantou as íris, encontrando com as de Li Hongyu. Levou um pequeno susto e sentiu um arrepio gelado em sua espinha, mas não parou de tocar. Resolveu rebater com um sorriso caloroso e um olhar convidativo, como se a chamasse para se aproximar da roda. A mais velha deu alguns passos à frente, no entanto, assim que se tornou visível para os demais, seus sobrinhos, juntos com Yan, agarraram suas pernas.
—Dajie!
—Tia Li!
—Tia Li! Vem brincar com a gente!
Os três tentaram puxá-la para a frente da roda e Hongyu se abaixou, mudando sua expressão usualmente atarracada, para algo mais dócil.
—A tia Li não sabe brincar. Prefiro apenas assistir vocês, é mais divertido assim. – Respondeu, passando a mão no cabelo de cada um deles, incentivando-os a voltarem a sua dança. Os pequenos fizeram beicinho, mas obedeceram.
A líder da seita se aproximou de onde estavam Yahui e sua irmã, um pouco mais afastadas do centro, mas perto o suficiente para ouvirem a música. Fez uma breve mesura à XinYi, encostando-se ao seu lado enquanto observava os arredores. Vários discípulos estavam por ali, assistindo ao longe, sentados no chão de madeira ou nos bancos espalhados pelo lugar, muitos já com suas roupas de dormir. A melodia era suave e animada, carregada de um sentimento bom que parecia aquecer o peito e a letra falava de um guerreiro que enfrentava monstros e demônios enquanto ansiava em rever sua pessoa amada.
—Não imaginava que ela tinha um talento assim. – Hongyu comentou, fitando a cultivadora no centro das atenções. Podia ver seus dedos se movendo de forma habilidosa pelas cordas do instrumento, seu corpo balançando delicadamente de um lado para o outro enquanto interpretava a poesia, suas expressões mudando de acordo com a história que contava. Achou gracioso cada detalhe, não conseguindo desviar o olhar, quase como se estivesse hipnotizada.
—Hm. Zhen Ming nos surpreende cada vez mais, não é? – Yahui sorriu para si e a líder da seita soltou o ar, um tanto contrariada.
—Essa sua convidada é mesmo uma joia preciosa, A-Fang. – Sua irmã mais velha tocou seu braço, com um sorriso animado.
—Não foi exatamente para falar sobre ela que você veio até aqui, não é, irmã? – Tentou desviar do assunto, já com suas orelhas queimando.
—Hn, não não. Eu percebi uma movimentação estranha pelas vilas e vim ver como estão as coisas. Mas isso pode esperar. – Inclinou a cabeça, indicando que olhasse para a roda outra vez.
A música agora era mais tranquila, quase uma canção de ninar. Alguns discípulos bocejavam, outros começavam a se retirar, seguindo para os dormitórios. Um de seus sobrinhos havia se encostado em Zhen Ming, cochilando com a cabeça em seu colo. A cultivadora encerrou a canção e sorriu, fazendo um carinho suave no cabelo do rapazinho.
Por algum motivo Li Hongyu sentiu seu rosto esquentar e seu coração palpitar com aquela visão. Não gostava disso, não gostava nem um pouco disso. Instantaneamente sua expressão se fechou, então seguiu sua irmã até as crianças, erguendo o sobrinho e Yan, um em cada braço, enquanto Yahui pegou a outra sobrinha, que ainda estava de pé, mas com a boca aberta em um longo bocejo.
—Desculpe Jiejie, acabei criando uma bagunça aqui sem a sua permissão. – Zhen Ming pediu, se inclinando após levantar com a ajuda de um discípulo que estava por perto. A menor havia percebido a irritação no rosto de Hongyu e estava com medo de ter sido inconveniente.
—Não tem problema. – A voz da líder de seita soou neutra, suavizando um pouco a expressão e Zhen Ming sorriu aliviada, assistindo-a seguir rumo aos quartos.
Zhen Ming não desviou o olhar nem por um segundo das costas da maior, até que ela finalmente desapareceu no corredor.
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