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Mais uma vez, Li Hongyu estava logo cedo em seu escritório. A usual pilha de cartas e relatórios ocupava metade de sua mesa, porém, o que não era usual era seriedade no rosto de sua irmã mais velha. Xia XinYi estava sentada diante de si e, após provar o sabor suave do chá servido mais cedo, soltou o ar que prendia, descansando as mãos sobre a barriga. A mais nova franziu a sobrancelha, já demonstrando impaciência com a espera.
—E então?
—A-Fang... Diga a verdade, o que está acontecendo? Vejo a patrulha cada vez mais intensa e ainda assim ouço os aldeões falando de novos ataques de monstros quase todo dia.
Desta vez foi a líder da seita quem suspirou, passando a mão no próprio rosto. Já se sentia pressionada o suficiente em buscar uma solução para aquele problema, não queria e nem deveria envolver sua irmã nisto, no entanto, era impossível esconder qualquer coisa de XinYi.
—Eu gostaria de te dizer que não precisa se preocupar com isso, mas estaria mentindo. – Hongyu respondeu, puxando da pilha suas anotações e os desenhos das matrizes que vinha estudando nos últimos dias. Talvez, se compartilhasse o que havia descoberto e pensasse junto com sua irmã, pudesse encontrar um caminho para seguir – Encontrei uma matriz restritiva no local onde a maioria desses monstros e criaturas demoníacas estão surgindo, acredito que tenha algo ali, mas ainda não consegui encontrar nenhuma pista do que possa ser e nem uma forma de parar os ataques.
—Hm... – XinYi varreu os papéis com o olhar, fixando-o em um dos desenhos. – Esse aqui não foi você quem fez, não é?
—Não. – A expressão da mais nova se fechou um pouco mais. – Foi Zhen Ming. Eu nunca havia visto nenhuma matriz parecida com essa antes.
—Oh – Apesar de o assunto ser sério, XinYi não conseguiu conter o pequeno sorriso travesso.
— Irmã, por favor...
—O que? Eu não disse nada.
—E nem precisa!
—Certo, certo – A mais velha tentou voltar à expressão séria de antes, sem muito sucesso.
—Enfim, ontem eu fui investigar o local outra vez e o mais…estranho é que é exatamente o mesmo local onde o papai…
—Ah… a clareira ao norte. – Hongyu concordou com um aceno. – Aquele lugar parece que ficou mais sombrio depois do que aconteceu, não me surpreende que seja o foco do problema.
—Sim mas, essa matriz tem alguma ligação com aquele ataque? Se sim, porque esses novos monstros estão surgindo depois de tanto tempo?
—Hm… – Xinyi estreitou o olhar e esfregou o queixo. – Algumas matrizes de restrição tem um tempo de duração. Quando a criatura é muito poderosa e não é possível destruí-a, o melhor a se fazer é selar até que exista uma forma de derrotá-la completamente.
—Se for isso mesmo, só pode ter sido algo que aconteceu meio milênio atrás, antes da seita ser fundada.
—Ou… os registros da existência dela foram destruídos.
Os olhos de Li Hongyu se abriram feito pratos, as palavras de sua irmã abrindo novas possibilidades em sua mente.
—O incêndio que aconteceu logo após a morte do fundador da seita, é claro! – A mais nova se levantou exasperada.
—O fogo começou no pavilhão da biblioteca e se alastrou rapidamente, perdemos todos os registros daquele período. Nós só sabemos o que o segundo líder da seita e o conselho queriam que as gerações futuras soubessem.
—E é óbvio que eles não deixariam algo assim passar, seria uma demonstração de fraqueza! Bastardos! Estamos de mãos atadas agora. – Hongyu bufou e apertou a ponte do nariz, na tentativa de amenizar a dor de cabeça que estava por vir.
—Não há o que fazer minha irmã, a Seita Li vai ter que lidar com isso daqui pra frente. – Xinyi também se levantou e apertou o ombro da mais nova, tentando transmitir algum apoio. – Vamos pensar em uma solução juntas. Certo?
A líder de seita deixou os ombros caírem e concordou com a irmã, tornando a sentar-se, mas ainda com o sangue fervendo em raiva. Bateu a palma sobre a mesa, consternada com a situação, o que apenas fez com que as pilhas tombassem, espalhando anotações, relatórios e cartas pelo chão. O símbolo do conselho no selo de cera que fechava a maior parte das cartas fez com que Hongyu visse vermelho.
XinYi, ignorando o acesso de raiva da mais nova, colheu uma carta do chão e rompeu o lacre, lendo atentamente o que estava escrito. Hongyu sentiu uma veia pulsar, já antecipando a provocação da irmã.
—Isso… uma hora ia acontecer, não é? – Comentou, com um pequeno sorriso enviesado – Quantas destas recebeu até agora?
—Já perdi a conta. Faz um mês, todo dia chegam mais. – A líder da seita apertou a borda da mesa, não transformando-a em pó por pouco. – Estão zombando da minha cara se acham que vão me manipular.
—Com certeza eles estão desesperados. Seria bom para eles se a seita fizer uma aliança através do casamento. – XinYi viu a mais nova bufar outra vez, ainda mais irritada.
Deixando o ódio tomar conta de si, Li Hongyu simplesmente recolheu todas as cartas do Conselho de Anciões, se levantou e marchou porta a fora.
—O que pretende fazer?! – A mais velha gritou, tendo dificuldade em acompanhá-la.
—Mandar um recado a esses velhos. – A mais nova respondeu determinada.
Zhen Ming acordou com a agitação do lado de fora. Passos e cochichos pairavam por todos os lados e a cultivadora se sentiu ansiosa e curiosa para saber o que estava acontecendo. Trocou-se rapidamente, alcançando o par de muletas e com alguma destreza se pôs de pé, seguindo para fora do quarto.
No centro do pátio, uma pequena fogueira havia sido montada. Alguns discípulos passavam de um lado para o outro, chamando mais deles para se aglomerarem ao redor. Outros apenas olhavam de longe, curiosos, e fofocavam entre si.
Assim que a líder de seita apareceu, todos abriram caminho. Nos braços, ela carregava uma pilha de cartas que, de longe, pareciam extremamente requintadas, mas que Hongyu não hesitou em atirar ao fogo, uma por uma.
—Hongyu, não acha que devia ao menos respondê-las? – Yahui tentou colocar um pouco de juízo na cabeça da amiga, sem sucesso. – Os anciões não irão aceitar isso, pode soar como falta de educação e arrogância para com as famílias.
Hongyu estava decidida a fazer o que fazia e não pretendia esconder aquilo de ninguém. Sua irmã mais velha, que estava ao seu lado, parecia preocupada, mas não o suficiente para tentar impedi-la.
—Pois eles que se preocupem em resolver isso. Tenho muito mais com o que me preocupar do que perder meu tempo respondendo solicitações de enlace político.
Os olhos de Zhen Ming brilharam e a cultivadora sentiu ainda mais admiração por Li Hongyu. A mulher não tinha medo de enfrentar os conselheiros do próprio clã, assim como não se importava com o que pessoas influentes pensariam sobre si, desde que pudesse defender seus ideais e proteger seu território.
—O que ainda estão fazendo aqui? Voltem aos seus afazeres! – A líder da seita comandou, batendo as mãos, o que assustou as meninas que haviam se reunido para assistir, fazendo assim com que se dispersassem. Ela parecia mais irritada do que de costume, porém, Zhen Ming não resistiu em provocá-la.
—A Jiejie não pretende se casar? – Indagou, se aproximando lentamente, quando o público já havia partido. Acenou em cumprimento às outras duas que acompanhavam Hongyu.
—Irei me casar quando eu quiser e com quem eu quiser. Não preciso que decidam por mim. – Labaredas refletiam nas íris castanhas e Zhen Ming não tinha certeza se eram da fogueira queimando a sua frente ou da fúria que Hongyu emanava. Um arrepio subiu pela espinha da menor, que achou melhor manter a boca fechada, pelo menos desta vez.
Assim que o fogo se apagou, a líder de seita pediu licença aos demais e se retirou, seguindo pelo corredor até a área restrita da seita. Zhen Ming soltou o ar que não havia percebido estar segurando, seus olhos cravados nas costas da maior, observando-a enquanto ela se afastava.
—Você parece bastante interessada na minha irmãzinha, Zhen Ming… certo? – XinYi perguntou, apenas para confirmar o nome da outra. A mais velha havia ficado no lugar, ao lado de Yahui, mesmo após Hongyu sair, observando atentamente a reação de Zhen Ming às palavras de sua irmã mais nova.
—A líder de seita é realmente incrível, senhora Xia. Quanto mais eu a observo, mais quero manter meus olhos nela. – O brilho no olhar da menor fez XinYi sorrir, ela podia sentir o calor naquelas íris, reforçando sua intuição.
—Você está atraída por ela, não é? – A pergunta direta e repentina fez os olhos de Zhen Ming se arregalarem em surpresa e suas bochechas ganharem um tom de rosa. A pequena sabia exatamente o que aquela pergunta significava. Parando para pensar, Zhen Ming não imaginava que poderia se apaixonar tão rapidamente por alguém e nem que outras pessoas perceberiam isso tão rápido quanto.
—Está tão visível assim? – Escondeu o rosto atrás de sua manga, tentando disfarçar o constrangimento. Tanto XinYi quanto Yahui riram baixinho, não de zombaria, mas por acharem a reação da pequena cultivadora extremamente adorável. Zhen Ming suspirou pesado, tentando se recompor. Seu olhar se tornou um pouco mais sério e ligeiramente apreensivo, apesar de ainda ter as bochechas coradas. – Vocês não se incomodam? Digo, por eu ser mulher e gostar de uma mulher...
—Sabe, Zhen Ming, – Desta vez foi Yahui quem falou – quando se cresce em uma seita onde a maior parte dos discípulos são mulheres, não é muito difícil encontrar garotas se beijando aqui e ali. O que quero dizer é que, lá fora esse tipo de relacionamento pode ser um tabu, mas aqui dentro, nós fazemos questão de que nossos discípulos se sintam livres para ser quem são e amar quem quiserem, desde que sigam as regras da seita e mantenham a compostura e a disciplina.
—Mas isso é algo recente – XinYi acrescentou – As coisas costumavam ser bem diferentes antes de Hongyu assumir.
Zhen Ming ficou curiosa com aquela afirmação, mas resolveu não perguntar, reparando no olhar distante e doloroso que havia tomado o lugar da expressão quente e sorridente de XinYi.
—Enfim, preciso pedir licença agora, tenho algumas pendências para resolver. – A médica interviu, quebrando o clima, demonstrando um semblante exageradamente cansado naquele momento e Zhen Ming imaginou que ela teria que tentar apaziguar a situação que Hongyu havia criado.
—Irei voltar para casa então. Não há muito mais que eu possa fazer aqui por enquanto. – XinYi se inclinou na direção das outras duas, em despedida, chamando suas crianças que corriam pelo pátio com um aceno. – Mantenham-me informada, por favor.
Zhen Ming e Yahui assentiram, fitando-a dar as costas e caminhar com os filhos até os portões da seita, onde outras duas discípulas seguiram seu passo, como guarda-costas.
—Por que não ajuda Hongyu com sua nova pesquisa? Imagino que ela vá precisar... – Sugeriu Yahui, percebendo a inquietação da mais nova.
—Você acha, Yahui?
—Claro! Como está machucada e ainda não pode sair por aí, é de melhor ajuda com os livros. – A médica piscou, acompanhando-a pelos corredores e despedindo-se ao deixá-la em frente ao escritório de Hongyu.
Zhen Ming não podia negar que estava com a cabeça fervilhando com tudo o que havia acontecido durante a manhã. Exceto sua irmã, não imaginou que teria o apoio de mais ninguém em relação a sua vida amorosa. Aquela era realmente uma seita diferente de todas as outras que ouviu falar e aparentemente isso tudo era graças a sua mais recente líder.
Bateu na porta e entrou ao ouvir a permissão. Estava tão distraída e cheia de pensamentos que nem mesmo provocou Hongyu, limitando-se a sentar e ler um dos livros da pilha que a líder de seita havia separado para si.
Hongyu estranhou completamente aquele comportamento. Já havia se acostumado com a agitação constante de Zhen Ming, mas vê-la entrar, pedir para ajudar em voz baixa, sem fazer qualquer comentário e simplesmente sentar em silêncio, deixou a mais velha preocupada.
—Sua perna está doendo? – Indagou, sem tirar os olhos dos papéis.
—Eu estou bem Jiejie, não se preocupe. – A mais nova respondeu com um pequeno sorriso, voltando a se concentrar em sua leitura.
Ou ao menos foi o que tentou transparecer, pois, com um olhar de relance, Hongyu percebeu a capa do livro virada para baixo. A líder de seita suspirou pesado, abaixando o que lia e encarando Zhen Ming com uma sobrancelha levantada.
—Se não está em condições, é melhor que vá descansar. – Sua fala saiu mais ríspida do que gostaria. Não tinha a intenção de expulsar Zhen Ming, mas não estava em um bom momento e muito menos era a melhor pessoa para consolar alguém.
—Desculpe, eu só... estou pensando em muitas coisas. – A fala insegura e o olhar hesitante de Zhen Ming apenas fizeram com que a mais velha cruzasse os braços em frente ao peito e arqueasse a sobrancelha ainda mais, como quem espera pela continuação sem muita paciência. A menor corou outra vez, coçando a nuca. – O que você pensa sobre o casamento entre duas pessoas iguais… como dois homens ou duas mulheres?
—É sobre isso que está pensando? – A líder de seita viu a outra assentir, meio encolhida. Hongyu soltou o ar, relaxando um pouco. – Eu não vejo problema. Para mim, pessoas são pessoas antes de serem homem ou mulher. Desde que se amem e se respeitem, não importa se são dois homens, duas mulheres ou um homem e uma mulher. E ninguém deveria se intrometer nisso.
—Oh. Você tem uma visão muito romântica! – Zhen Ming sorriu, apoiando o queixo em sua mão. – Por acaso já se apaixonou antes, Jiejie?
—Acho que te dei pouca coisa para fazer, para ter tempo de me encher com tantas perguntas desnecessárias. – Hongyu bufou, voltando a erguer seu livro. Aparentemente a cultivadora a sua frente havia voltado ao normal, o que a deixava um pouco mais tranquila, apesar de ter que suportar a provocação.
—Desculpe, desculpe, não pergunto mais. – A menor levantou os braços, em sinal de rendição, mas ainda sorrindo. Hongyu sentia que, bem lá no fundo, preferia assim.
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