— Desculpa! Desculpa! Eu estava com muita fome e pulei a janela!
As palavras saltaram de sua boca com o mesmo pânico que agitava seus músculos, como se a própria voz pudesse servir de escudo, uma barreira frágil feita de sílabas tremidas.
— Segui o cheiro e vim parar aqui!
A confissão era desesperada, desajeitada e absolutamente verdadeira — e Amara esperava, com todas as forças, que isso contasse para alguma coisa.
Afinal, a munição parecia enfim ter acabado.
Quase.
A mulher, respirando rápido e com os olhos arregalados como se tivesse encontrado um fantasma e não uma jovem encharcada e faminta, girou sobre os calcanhares, vasculhando a cozinha em busca de algo mais pesado, mais sólido, mais… convincente.
Sua cabeça se movia em sacudidas curtas; cada mecha solta do penteado rebelde parecia vibrar com o nervosismo crescente.
E então ela o encontrou.
O rolo de macarrão.
Com a solenidade de quem descobre uma relíquia ancestral de guerra, a dona da casa o ergueu com ambas as mãos. A madeira polida brilhou sob a luz que atravessava a janela — e Amara soube, imediatamente, que aquele objeto tinha machucado muita massa ao longo dos anos e poderia muito bem machucar gente também.
— Não se entra na casa dos outros, cheirando a comida dos outros, comendo a comida dos outros!!
A voz da mulher subiu em três degraus de indignação crescente, cada frase mais aguda que a anterior.
— Eu sei, desculpa! — respondeu Amara, o medo e o arrependimento quase tropeçando um no outro dentro de sua voz.
Conseguindo algum controle sobre as pernas finalmente menos trêmulas, Amara começou a se levantar — ainda abaixada, ainda encolhida, mas agora apoiada nos próprios pés. O corpo inteiro permanecia tenso, pronto para esquivar, saltar, ou rezar, dependendo do rumo que aquele rolo de madeira tomasse.
Ela viu o braço da mulher erguer-se, o rolo levantado como se fosse um martelo de execução doméstica.
E por um instante, a cozinha inteira pareceu prender a respiração.
— De onde que você veio?!
A pergunta veio carregada de desconfiança, indignação e uma boa dose de medo.
A mulher esperava uma resposta — e Amara, ao observar o rolo de madeira suspenso, notou a firmeza daquele braço. As cenouras, a colher, o pão, a caneca… tudo tinha doído um pouco.
Mas aquilo?
Aquilo, se descesse, iria machucar. E muito.
— Hoshikai! Eu vim de Hoshikai!
A resposta saiu como um soluço comprimido, quase tropeçando na própria urgência. A palavra pairou no ar como um sino distante, conhecida demais, pesada demais para ser ignorada.
— O Monastério? — a mulher repetiu, incrédula. — E como que você veio parar aqui? O Monastério fica muito longe daqui.
— Eu corri! — a voz de Amara quebrou, como um galho frágil sob peso demais. A lembrança atravessou sua garganta como uma lâmina. — Eu fugi deles.
A expressão da mulher estremeceu.
Sua surpresa — antes vibrante, quase cômica — começava a se desfazer.
A raiva, antes impensada, se retraía.
Agora sobrava algo mais complexo: irritação contida, prudência, e um fio de medo cauteloso que serpenteava pelo fundo dos olhos.
— Fugiu deles? — ela insistiu, a sobrancelha arqueando, vincando a testa em linhas profundas. — Dos monges? Você fugiu dos monges?
— Não!
Amara balançou a cabeça, os cachos ainda úmidos chicoteando o ar.
— Fugi de quem os matou.
A frase não apenas atingiu a mulher — atravessou.
Como um trovão que não dá aviso, uma pancada seca que faz a alma piscar em branco por um instante.
O rolo de macarrão, que antes parecia prestes a cair sobre a pobre intrusa, baixou apenas alguns dedos, tremendo na mão da dona da casa. A respiração da mulher, até então ofegante por nervosismo, agora era tomada por um silêncio espesso.
Era como se, finalmente, os sentidos dela tivessem sido realinhados.
De repente, viu não uma ladra, não uma intrusa faminta, mas uma garota — encolhida, tremendo, com os músculos rígidos de medo, suja de terra, molhada, com feridas abertas por todo o corpo… e aterrorizada por um simples rolo de madeira.
O olhar da mulher desceu mais um pouco.
E então ela viu.
Amarrado ao quadril da jovem, parcialmente escondido entre tecido rasgado e sangue seco, repousava um pedaço longo de metal. Uma espada — pesada, sólida, trabalhada. Algo que jamais pertenceria a alguém comum.
Não era um enfeite.
Não era uma ferramenta.
Era um símbolo.
Um vestígio.
Um testemunho.
A presença daquela arma, somada às palavras pronunciadas pela garota, golpeou a mente da mulher com a força inegável da verdade.
E o rolo de macarrão, antes erguido como ameaça, agora parecia ridículo diante do que realmente estava diante dela.
— Levanta direito, garota.
A voz da mulher ainda carregava autoridade — dura, firme, moldada por anos de comandar uma casa e provavelmente algumas crianças — mas agora havia nela um tom diferente. Mais calmo. E, sobretudo, piedoso.
— Qual é seu nome?
— Amara… — a resposta saiu miúda, tímida, quase como se tentasse pedir desculpas só pelo som das sílabas. — Eu me chamo Amara.
Com esforço, a jovem endireitou a postura. O peito se ergueu num reflexo de disciplina antiga, aprendida nos corredores silenciosos do monastério. Mas a cabeça… ah, essa ainda hesitava, oscilando entre o chão manchado de caldo e a janela por onde saltara, como se cada direção oferecesse uma forma diferente de vergonha.
— Fique calma. Não vou lhe atacar… mais.
A mulher baixou o rolo de macarrão — não muito — apenas o suficiente para deixar claro que não pretendia usá-lo, mas também não o largaria tão cedo. Era seu cetro improvisado. Sua segurança emocional. Sua fronteira.
— Eu sou Agatha.
O nome pairou no ar como uma mudança de estação — ainda havia frio, mas era um frio que prometia derreter.
Amara respirou um pouco melhor. Só um pouco.
Seus olhos, antes travados no rolo erguido, deslizaram para o verdadeiro campo de batalha daquela cozinha: o chão.
E lá estava ele.
O cozido derramado, espalhado em uma poça irregular, deixando para trás o vapor que subia em espirais quase tristes.
O aroma delicioso ainda impregnava o ar — mas agora era aroma de perda.
Naquele instante, o arrependimento que apertou o peito da jovem não foi por haver roubado.
Não foi por ter entrado.
Nem mesmo por ter levado uma chuva de cenouras e utensílios domésticos.
Foi pelo desperdício.
Pelo banquete arruinado.
Pela chance de ter saboreado algo quente… desperdiçada no chão.
Uma sensação quase infantil lhe apertou o estômago, como se o universo tivesse feito questão de lembrá-la do próprio vazio.
E ali, entre Agatha segurando firme seu rolo e Amara com os olhos marejando sobre a sopa perdida, pendia um silêncio estranho — pesado, mas de alguma forma, humano.
A mulher respirou fundo e a observou por um instante mais longo do que Amara conseguiu sustentar. Então soltou, num tom que misturava irritação com um inesperado traço de preocupação:
— Você ainda está com fome?
Se antes as palavras de Amara haviam atingido Agatha como um raio, agora era a vez da pergunta retribuir o impacto. O rosto da jovem disparou para cima numa velocidade tamanha.
— Eu… er… eu—
— Está, não está?
A pergunta parecia mais uma afirmação. E era verdadeira. A comida mal havia tocado sua língua antes de se espatifar no chão, e aquela pequena porção roubada tinha sido o primeiro alimento decente em… quanto tempo? Amara assentiu com vigor, balançando a cabeça de cima para baixo, como se temesse perder a oferta caso demorasse um segundo a mais.
Agatha suspirou, resignada.
— Muito bem. Sente-se.
Dona Agatha apontou uma das cadeiras com a ponta do rolo de macarrão — ainda empunhado como símbolo de autoridade doméstica — e observou Amara hesitar por um instante, como se a cadeira fosse uma armadilha. Só então a jovem se aproximou e sentou-se devagar, segurando o ar por precaução.
A dona da casa se agachou, pegou a concha caída do chão, deu uma esfregada no avental (que definitivamente não a deixou mais limpa) e serviu uma porção generosa do cozido numa tigela que milagrosamente escapara de ser arremessada na cabeça de Amara minutos antes.
A garota lançou um olhar desconfiado à mulher — um olhar cansado, inquieto, mas também impregnado de gratidão — antes de desviar para o que realmente capturava sua alma naquele momento: a comida quente.
Estava ótimo, o sabor caia muito melhor com o senso de trégua que flutuava no ar, de gosto simples, caseiro, mas naquele instante parecia divino.
quase não mastigava, e vez ou outra parava para expelir vapor da boca.
— Depois de comer, você vai limpar essa bagunça.
A frase entrou por um ouvido e saiu pelo outro no primeiro momento — o cérebro dela estava ocupado demais comemorando a entrada de calor no estômago — mas pouco depois finalmente pousou em algum canto da consciência. Amara assentiu internamente, aceitando o destino com a serenidade culpada de quem sabe que tem toda a responsabilidade do mundo ali. Afinal, fora ela que entrara pela janela, derrubara o cozido e quase causara um infarto na mulher.
Depois de mais algumas colheradas apressadas, ergueu os olhos e perguntou com a boca ainda meio cheia:
— Onde é aqui? Onde você mora?
Agatha apoiou uma mão no quadril e respondeu seca:
— Esta vila é Khalo. Estamos no meio do caminho entre Hoshikai e Bruvi, a próxima capital.
Amara parou de mastigar.
Meio caminho para Bruvi?
Aquilo era… exagerado. Era longe demais.
Dois dias de viagem a pé, no mínimo. Como chegara tão longe do monastério? Quanto tempo ficara desacordada? Talvez o rio tivesse sido seu transporte involuntário, carregando-a pela correnteza como um pedaço de madeira perdida.
Bruvi ela conhecia apenas de nome — nomes ditos pelos Kenshi mais velhos, histórias que os alunos raramente tinham permissão de testemunhar por si mesmos. Kenshis em treinamento não abandonavam o monastério até a conclusão de sua formação.
Ela engoliu seco.
E não era por causa da comida.
— O que aconteceu com vocês no Monastério?
A pergunta à trouxe de volta à realidade, arrancando-a de sua pequena bolha de calor e segurança. Dessa vez, engoliu tudo antes de responder.
— Fomos atacados. Hoshikai foi invadido.
A voz trazia palpável desgosto nas próprias palavras pronunciadas por si, manchando o sabor do cozido.
— Um grupo de homens entrou lá e… massacrou a todos.
Agatha endureceu o olhar, mas não por descrença — e sim por choque.
Era a reação de quem ouve algo impossível e, mesmo assim, sabe que é verdade.
— Achava que seria difícil adentrar o Monastério sorrateiramente.
A frase veio junta a uma pontada no peito, mas sabia que Agatha estava certa.
Sim, difícil era pouco.
Hoshikai era um labirinto vivo, protegido por monges treinados, caminhos ocultos e disciplina quase sobrenatural. Era o último lugar do mundo onde alguém poderia simplesmente entrar.
E, no entanto… entraram.
— Pois é… — Amara murmurou, levando outra colherada à boca mais por reflexo do que por fome. — Não sei o que aconteceu
Mastigou devagar, olhando o vazio da madeira da mesa como se tentasse ver além dela, como se lá estivesse a resposta que o ataque levou embora.
— Parando para pensar agora, deveria ser alguém que soubesse como chegar lá, como entrar.
O pensamento cercava sua consciência como uma nuvem negra.
Para atravessar os caminhos até Hoshikai sem se perder…
Para entrar sem ser visto…
Para saber onde cada Kenshi treinava e descansava…
Para executar o ataque de forma tão eficiente…
Seria preciso um guia.
Um guia íntimo do monastério.
Um guia que conhecesse cada pedra, cada porta, cada passo.
Um Kenshi.
A noção se instalou em seu peito como veneno.
Silenciosa.
Letal.
E terrivelmente possível.

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