As árvores da floresta sob o sopro fresco da primavera, e o vento carregava consigo o perfume delicado das flores recém-abertas que pontilhavam a vegetação, estalando sob o peso de criaturas pequenas. A paleta ia do amarelo pálido ao laranja queimado, passando por tons de marrom que denunciavam o ciclo constante de vida e decomposição.
Troncos — vivos e mortos — serviam de palco para musgos que expandiam suas colônias como tapetes verdejantes, e pequenos cogumelos brotavam em agrupamentos tímidos, perfurando a madeira com sua insistência silenciosa, roendo sua superfície à sua maneira infinitamente pequena. Cada centímetro daquela floresta estava vivo de uma maneira própria, movendo-se num ritmo quase imperceptível para olhos apressados.
Aqui, também, os pássaros sobrevoavam a maré verde, à procura de sua próxima refeição e cantando melodias que ecoavam entre os galhos, enchendo o ar de uma sinfonia natural. Os vermes faziam de si difíceis de encontrar.
Uma lebre se esgueirava entre as moitas,tremia num compasso rápido — um para cima, dois para baixo — fuçando algum broto tenro, alguma folhinha fresca que a tentasse ao primeiro mordisco.
Mas o mundo, às vezes, muda num piscar de olhos.
E mudou para ela.
Sem aviso algum, uma haste cor-de-marfim ergueu-se ao seu lado, brotando do musgo como se a floresta tivesse acabado de criar um novo dedo para tocar o céu. Não vinha das raízes, não vinha de uma árvore caída, não vinha de planta alguma conhecida.
A lebre deu um salto tão rápido que deixou um pequeno borrão de poeira no lugar onde estivera um instante antes. Fugiu em pânico, seu instinto — aquele radar ancestral que protege os pequenos — berrando dentro dela: corra.
Aos olhos selvagens ao seu redor, era irreconhecível, mas para uma mente dotada de razão…
Para alguém capaz de decifrar formas, volumes, proporções…
Para alguém capaz de distinguir o que pertence ao mundo vivo e o que pertence ao mundo morto…
Aquilo era, sem sombra de dúvida, um braço.
Um braço — mas completamente errado.
Não havia carne.
Não havia músculo.
Não havia pele.
Era apenas osso.
Um esqueleto descarnado, pálido como marfim à luz da manhã.
Mas mesmo isso não era tudo: do osso brotavam vinhas.
Espessas, finas, verdes, emaranhadas como serpentes gentis abraçando um cadáver.
Musgos antigos cobriam parte da superfície lisa, tomando o lugar que um dia fora tecido vivo.
Pequenas folhinhas vibravam ao menor sopro de ar, como pelos vegetais tentando nascer de algo que jamais deveria florescer.
E então os dedos se moveram.
Devagar, muito devagar — a princípio como se estivessem testando a própria existência.
Depois mais firmes, mais conscientes.
Curvaram-se, esticaram-se, flexionaram-se numa sequência inquietante, quase aracnídea, como as pernas frágeis e precisas de uma aranha albina que acabara de despertar de um sono profundo demais.
Só que não eram pernas.
E não era uma aranha.
Era uma mão.
Uma mão de osso.
Enroscada em vida vegetal.
E ela estava acordando.
Logo mais, aquela mão ossuda e viva foi acompanhada pelo surgimento de um tórax inteiro, que se ergueu como alguém empurrando uma pequena montanha de folhas acima de si. Por entre a camada espessa de matéria orgânica, o peito esquelético emergiu, rangendo baixo, o som ecoando como madeira antiga sob pressão.
As costelas, todas expostas, eram mantidas unidas não por tendões, mas por vinhas grossas e firmes — como se a própria floresta tivesse decidido substituir o que a vida um dia tecera ali. Entre elas havia trechos de musgo acumulado, pequenas flores tímidas que se abriam ao sol filtrado, e raízes finas que serpenteavam entre os ossos como nervos vegetais.
Placas irregulares de madeira se misturavam à estrutura: pequenos escudos naturais que a mata colara ao corpo com a delicadeza de um artista eterno. Eram fragmentos de casca, camadas de tronco, pedaços retorcidos de galhos mortos que agora se moldavam ao seu peito como armadura viva — ou talvez morta. Ou talvez… algo entre os dois.
Um detalhe a mais nessa criatura que desafiava rótulos.
Algo que ia além de vida.
Além de morte.
Além da compreensão simples das coisas terrenas.
Mortitude?
Se essa palavra existisse, talvez servisse. Talvez não.
De qualquer forma, a sorte era da própria criatura — ou da floresta — que naquele instante não havia nenhum ser pensante ali, nenhuma mente racional para testemunhar aquela fusão impossível entre esqueleto e planta, nem para se perguntar que tipo de magia, tragédia ou milagre havia dado forma àquilo.
Felizmente, ninguém estava ali para tentar entender.
A floresta, silenciosa, apenas aceitava.
E não poderia deixar de ser notada: acima da caixa torácica, no topo de uma pequena torre de vértebras que estalavam enquanto se alinhavam, erguia-se o crânio.
Ele emergiu com a lentidão solene de algo antigo demais para se apressar.
A face — se é que podia ser chamada assim — estava coberta de terra escura e úmida, o mesmo solo que o havia guardado por sabe-se lá quantas estações. A sujeira preenchia fendas do osso, deixando-o com aparência de algo recém-desenterrado… ou recém-cultivado, como uma raiz que finalmente decide mostrar-se ao sol depois de meses no subsolo.
E sobre aquela cabeça inumana, uma coroa se formava — não de metal ou joias, mas de galhos retorcidos, brotos verdes e pequenos fungos alaranjados que brotavam como ornamentos naturais. Era uma coroa viva, feita da própria floresta, cada galho encaixado entre as fissuras do crânio, cada broto pulsando com um brilho sutil, quase respirando.
Mas nada chamava mais atenção que aquilo dentro das cavidades oculares.
Ali, no centro do buraco oco, brilhava uma luz.
Uma pálida luz vermelha, fraca, mas teimosa.
Cintilava do mesmo modo que a chama de uma vela agitada pelo vento — às vezes forte, às vezes diminuindo, nunca se apagando por completo.
Era um brilho manso, hipnotizante, que denunciava presença.
Consciência.
Despertar.
E, por um instante, toda a floresta pareceu prender a respiração.
O esqueleto coroado de vida vegetal fitava o mundo com aquele fogo rubro solitário, como se tentasse lembrar… ou aprender… ou simplesmente ser.

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