Levantou-se sem pressa, porque, afinal, não tinha compromisso com o tempo. O mundo ao redor parecia mover-se em ciclos lentos e eternos, e ele — seja lá o que fosse — fazia parte desse mesmo compasso paciente. Cada vértebra se alinhou com um estalo suave, cada vinhas que o sustentavam se esticaram como músculos despertando de um torpor antigo.
Observou a si mesmo.
Seu olhar — aquela chama vacilante — percorreu cada detalhe do próprio corpo: o osso pálido, as placas de madeira aderidas aos flancos, o musgo que se agarrava como pele verde, as vinhas que serpenteavam entre suas costelas como artérias vivas. Era um ser costurado pela floresta, costurado por vida e morte, equilibrado numa dança que a própria natureza ainda tentava entender.
Depois, observou a vida fora de si.
Os caules altos erguidos ao céu tremulavam suavemente com a brisa, como se estendessem as mãos para tocá-lo. As folhas vibravam com tons de verde que pareciam saudá-lo — ou examiná-lo. Havia mais vida naqueles troncos do que em muitos seres que respiravam, e ele sentia cada gota dela como se pudesse ouvi-la pulsando.
E então viu a lebre.
A mesma pequena criatura que fugira antes agora espreitava entre duas plantas, apenas parte de seu corpo visível, como se o instinto lutasse entre pavor e curiosidade. Os olhos castanhos, grandes, brilhavam com pupilas dilatadas; nelas havia ansiedade, receio… e uma centelha de fascínio.
Por um longo instante, ambos se encararam — a lebre, toda carne viva e tremor; ele, todo osso, madeira e luz trêmula. Um encontro improvável entre dois tipos de vida que jamais deveriam se compreender.
A criatura esquelética inclinou levemente a cabeça, num gesto lento, quase estudado.
Mas o desinteresse da lebre foi maior, e saiu para tomar seu rumo entre a floresta tão larga.
O cadáver animado deu então seus primeiros passos no mundo, marcando o solo macio com pegadas finas — quase delicadas demais para uma criatura feita de osso e madeira. Cada passo era um gesto hesitante, como se ele ainda estivesse aprendendo a própria existência, testando o peso, o equilíbrio, a gravidade que o puxava.
Inusitadamente, ao se mover, alguns brotos mais frágeis acompanharam o gesto.
Pequenas hastes verdes, recém-nascidas, ergueram-se do chão como se tentassem imitá-lo. Seguiam seus movimentos de maneira imprecisa, se inclinando na mesma direção que seu corpo tomava, esticando-se na tentativa de acompanhá-lo. Era como se a própria floresta estivesse aprendendo com ele, respondendo ao seu caminhar.
Mas conforme ele se distanciava, os brotos desistiam.
Vacilavam.
Curvavam-se.
E acabavam por tombar de volta ao solo, incapazes de acompanhar aquela marcha estranha que levava consigo o eco de algo antigo e novo ao mesmo tempo.
A natureza reagia ao seu redor — pulsante, inquieta, desperta.
As folhas tremularam com intensidade incomum, como se sopradas por um vento que ele mesmo trazia.
Galhos se arqueavam levemente em sua direção, quase reverentes.
E a terra sob seus pés parecia vibrar com uma nota grave, sutil, como o som abafado de um tambor enterrado profundamente no mundo.
O movimento dele não era apenas físico.
Era impacto.
Era presença.
Seguiu seu caminho sem trilha, abrindo passagem entre arbustos e folhas caídas que se afastavam sob seus pés finos. Foi então que escutou um som diferente — um ruído grave, constante, uma vibração funda que se espalhava pelo solo antes mesmo de alcançar seus ouvidos. Um chamado sem palavras. Quanto mais andava, mais o som crescia, expandindo-se num murmúrio poderoso.
E então descobriu um elemento novo.
Água.
Muita água.
Diante dele, a terra escura se abria para revelar uma corrente viva, descendo com força e propósito. A água se chocava contra pedras, envolvia raízes expostas e alimentava o verde ao redor, transformando tudo em um mosaico úmido e vibrante. O rio serpenteava pela floresta como uma criatura antiga, traçando seu próprio caminho, sem pedir permissão a ninguém.
E havia vida dentro dele.
Pequenos peixes riscavam a superfície com movimentos rápidos, quase invisíveis.
Algas ondulavam em fitas esverdeadas, dançando ao sabor da corrente.
Minúsculos crustáceos rastejavam pelas margens, arrastando partículas e restos que alimentavam aquele ecossistema secreto.
Cada forma viva era um mundo em si mesma.
E ele observava tudo com a chama vermelha em sua órbita vazia, imóvel, silencioso, absorvendo a existência daquela força líquida, contemplando algo sagrado.
Decidiu acompanhá-lo.
O rio seguia pela floresta como uma criatura viva e inquieta, arrastando folhas, refletindo a luz entre as brechas do dossel, murmurando segredos que só a própria água parecia entender. Sua pressa era evidente — corre sabendo exatamente para onde vai e não pode perder tempo admirando o caminho.
Ainda assim, havia algo sedutor naquele movimento contínuo, algo que puxava a atenção de CalciFlora como um ímã invisível.
Talvez o rio apreciasse uma companhia por alguns instantes.
Talvez se alegrasse em ter alguém percorrendo consigo um trecho minúsculo de sua longa jornada até o mar… ou até algum lago escondido que ele faria questão de encontrar.
Mas CalciFlora jamais saberia.
Ele caminhava sem compreender a música líquida que o cercava. Por mais que o rio borbulhasse, rugisse, rodopiasse e cantasse com todo o vigor de uma coisa viva, nenhuma de suas mensagens se transformava em significado. Para CalciFlora, era apenas som — um som que vibrava nas plantas presas ao seu corpo, nos fungos em sua madeira, nas folhas que decoravam sua existência.
E o rio, por sua vez, não se importava.
Não parava.
Não explicava.
Ele apenas seguia, incansável, fiel ao seu próprio destino.
Assim, CalciFlora caminhou à sua margem, acompanhando a pressa da água com a calma, não conhecia urgência. Seus passos eram silenciosos, mas deixavam pequenos rastros de folhas movidas, musgos perturbados, marcas que logo seriam tomadas de volta pela floresta.
Enquanto o rio fluía para algum lugar distante, a criatura caminhava ao seu lado tentando aprender a ler o mundo com os olhos muito abertos — e um espírito silencioso.

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