Aproveitando que estava a passar as férias de Natal com a minha mulher e filha em casa dos meus avós, em Viana do Castelo, decidi explorar outra das entradas do diário que encontrara.
Desta vez, a minha curiosidade incidiu sobre um local importante da minha infância. Desde pequeno, ouvi o meu pai e o meu avô contarem histórias sobre as ruínas do convento de São Francisco. Entre elas, destacava-se um já antigo rumor de que o local era usado para estranhos rituais popularmente conhecidos como macumba. Nunca tinha encontrado nenhumas provas de tal, nem sequer alguém que dissesse ter assistido, até que, ao ler o diário, encontrei uma entrada que referia um culto que se reunia no convento.
Como habitual, a timidez do meu antecessor não lhe permitira assistir a todo o ritual, e ele apenas vira uma pequena parte através das grades do portão.
Usando de novo a desculpa de que ia visitar um velho amigo, na noite da primeira segunda-feira após o Natal, dia da semana em que o diário dizia que o culto se reunia, encaminhei-me para o convento. Quando era miúdo, este ficava no meio do monte e era preciso uma longa caminhada para lá chegar, pelo que fiquei surpreendido ao ver que agora havia urbanizações quase até ao primeiro portão.
Estacionei nas traseiras de uma destas novas casas, liguei a lanterna e encaminhei-me para o monte. Após passar uma área de terra revirada, certamente um resquício da construção da urbanização, cheguei ao portão que, em tempos, protegia o caminho que subia até ao convento. Deste apenas restava parte do portal, já que uma das colunas havia caído ou sido derrubada.
Mal o atravessei, vi-me rodeado por eucaliptos, austrálias e o ocasional pinheiro. A floresta, agora, tinha ali o seu início.
Comecei, então, a subir o caminho. A tosca calçada, formada por pedras grandes e irregulares, não era fácil de subir, mesmo com a ajuda da lanterna. Tropecei várias vezes. Felizmente, já não chovia há algum tempo, ou as lisas pedras estariam impossivelmente escorregadias.
A meio da subida, pouco antes de uma curva apertada, encontrei um velho cruzeiro. Este mostrava sinais de cinzas e fumo. Se estes se deviam ao culto que eu estava ali para investigar ou a uma causa mais mundana, não sei dizer.
Finalmente, depois da curva, cheguei ao troço final da subida. Pouco depois, a minha lanterna iluminou o alto portão do convento propriamente dito. Um arco suportando as estátuas de três santos albergavam-no, e uma parede com mais de dois metros partia dele. A um visitante casual, pareceria não haver forma de entrar, pois um cadeado fechava o portão, mas eu não era um visitante casual.
Ao lado do portão, havia uma subida muito íngreme, quase vertical, onde alguém havia amontoado pedras e escavado degraus. Subi-a sem grande dificuldade e entrei num estreito carreiro que penetrava a vegetação cerrada. Avancei durante algumas dezenas de metros, a parede do convento à minha direita. Aqui e ali, havia pequenas falhas, mas nenhuma grande o suficiente para eu passar.
Finalmente, cheguei ao local que procurava: uma segunda entrada que dava acesso a uma escadaria que descia até ao terreiro do convento. Em tempos, devia ali ter existido um portão, mas este seria anterior às minhas primeiras visitas.
Entrei e, por fim, desci até ao convento propriamente dito. Com a lanterna, varri os edifícios em volta. Embutidas na parede que separava o terreiro do terreno elevado e do carreiro, encontravam–se duas pequenas capelas. Não tinham porta e estavam vazias, a não ser por trepadeiras e mato, e os seus telhados de pedra estavam partidos e esburacados. No lado oposto, erguiam-se as ruínas dos edifícios principais do convento: a igreja e as áreas de habitação e trabalho.
Contudo, não entrei de imediato. Primeiro, dirigi-me à base do cruzeiro no centro do terreiro. A cruz em si já lá não se encontrava, mas a base vagamente piramidal formada por quatro camadas de pedra sim. Segundo o meu antecessor, era nela que o culto realizava os seus rituais. De facto, as marcas estavam lá. Havia manchas vermelhas escuras por todo o lado. Aqui e ali, viam-se penas, certamente pertencentes a galinhas usadas em sacrifícios.
Com provas tão claras de que realmente se passava algo ali, entrei nas ruínas dos edifícios em busca de um local para me esconder e esperar pelo aparecimento dos cultistas. Segundo o diário, eles só apareciam depois da uma da manhã, pelo que ainda tinha bastante tempo. Aproveitei para visitar o local e ver o que tinha mudado desde a minha anterior visita, mais de vinte anos antes.
A primeira coisa que me saltou à vista foi que os resquícios do soalho do andar superior, que eu ainda vira em criança, tinham apodrecido completamente. De facto, o único sinal de que alguma vez houvera um andar superior eram as escadarias que não levavam a lugar nenhum e as paredes parcialmente ruídas, mas anormalmente altas para um edifício térreo.
Após visitar a antiga cozinha, com a sua enorme lareira e pia decorada de calcário, encaminhei-me para a igreja. Esta já há muito perdera o telhado, embora o enferrujado candelabro, preso às paredes por cabos metálicos igualmente corroídos, ainda se mantivesse no seu sítio. Do altar nada restava, assim como de qualquer outro elemento decorativo. Tive alguma dificuldade em atravessá-la até à entrada principal. As lajes tumulares que, quando eu era miúdo, cobriam o chão tinham sido arrancadas, deixando enormes buracos difíceis de transpor.
Quando cheguei ao pequeno adro de terra batida, encontrei as lajes amontoados num canto, algumas inteiras, outras partidas, nas quais ainda se conseguiam ver gravados os nomes e as datas de morte e nascimento dos sepultados.
Passei, então, para o claustro. Como os soalhos de madeira já haviam desaparecido, este encontrava-se totalmente a descoberto. No seu centro, o pequeno espaço reservado para o jardim dos monges estava, agora, cheio de silvedos. Algumas das colunas que o delimitavam e que outrora seguravam o teto tinham tombado, se por ação dos elementos ou vandalismo, não tenho como dizer.
Foi, então, que avistei o sítio perfeito para me esconder: a velha torre sineira. Do interior, não havia maneira de lhe aceder, pois a porta ficava no segundo andar junto a um chão que já lá não se encontrava. Saí para as traseiras do convento, onde se encontravam os acessos ao monte e aos campos, alguns pequenos edifícios de apoio e, claro, a base da torre. Depois de a circundar, encontrei uma pequena entrada secundária com menos de um metro de altura. Tive quase de me arrastar, mas acabei por conseguir entrar.
Como acontecera aos soalhos, as escadas haviam–se desintegrado. Felizmente, a torre era estreita, pelo que, pressionando as costas, os pés e os braços contra as paredes, consegui, com muito esforço, chegar ao topo. Tinha, agora, uma visão privilegiada de todo o convento, principalmente do terreiro onde o culto supostamente se reunia, e duvidava que alguém me avistasse ali.
Desliguei a lanterna. Ainda não era sequer meia-noite, mas temia que os cultistas aparecessem mais cedo ou que vissem a luz à distância.
Já estava à espera há quase duas horas, quando comecei a ouvir um cântico vindo do fundo do caminho que me levara ali. Pouco depois, detrás da curva, surgiu uma luz alaranjada. Fixei lá o meu olhar, pois sabia que estava prestes a ver o que tinha ido ali procurar.
De trás da curva, surgiu uma fila de pessoas, todas elas segurando candeias. Algumas também traziam sacos de pano, no interior dos quais algo se movia.
Confesso que fiquei surpreendido e até algo desiludido. Talvez por influência do cinema e da televisão, esperava figuras encapuçadas com longas vestes negras. Contudo, tratavam-se de pessoas normais envergando roupas do dia a dia.
Os cultistas subiram até ao portão e, então, tomaram o mesmo carreiro que eu usara para entrar. Passado pouco tempo, estavam todos no terreiro, em volta da base do cruzeiro. Não se ouvia nada, a não ser os cânticos e o cacarejar das galinhas nos sacos.
De repente, as vozes silenciaram-se. Um dos cultistas, um homem de cabelo longo e desgrenhado, subiu ao altar improvisado e começou a entoar um novo cântico, desta vez a plenos pulmões. Ao fim de alguns minutos, um dos outros cultistas abriu o saco e passou uma galinha ao sacerdote. Este, com uma pequena faca que tirou do cinto, cortou a garganta ao animal e deixou o sangue escorrer sobre as pedras.
Isto repetiu-se durante uma meia hora, até que todos os sacos se encontraram vazios. Depois, os cultistas emitiram um grito em uníssono. O chão começou a estremecer. Aos poucos, uma falha abriu-se no chão em frente do altar improvisado. Um brilho vermelho alaranjado projetava-se dela. Era como se se tratasse de uma passagem para o próprio Inferno.
Os cultistas olharam para ele, como se hipnotizados, durante alguns momentos, até que um gigantesco punho vermelho, maior do que uma pessoa, saiu dele. Perante o olhar expectante do culto, a mão abriu-se, libertando cerca de uma dezena de estranhos seres humanoides. Estes eram pequenos, com cerca de meio metro de altura, e estavam cobertos por uma curta pelagem negra. Dois diminutos chifres coroavam-lhes a cabeça, que também apresentava focinhos afiados e dentes pontiagudos.
Com grande entusiasmo, os cultistas correram atrás destes mafarricos, apanhando-os e enfiando-os nos sacos onde tinham trazido as galinhas. Ao mesmo tempo, a mão desapareceu, voltando ao abismo, e, assim que o último mafarrico foi apanhado, a falha fechou-se.
Satisfeitos, os cultistas voltaram pelo mesmo caminho por onde tinham vindo, desta vez em total silêncio. Nem os mafarricos, enfiados nos sacos, faziam qualquer ruído.
Deixei a luz das candeias desaparecerem atrás da curva no caminho e ainda esperei uma meia hora depois disso antes de descer do meu esconderijo e voltar para o carro.
Apesar de ser a primeira entrada do diário que eu investigava que envolvia humanos, foi provavelmente uma das que me deixou com mais perguntas. Quem eram aqueles cultistas? Que iam fazer com os mafarricos? A quem pertencia a mão que os trouxera?
Fui a pensar nisso até casa e até perdi o sono nessa noite. As possibilidades causavam-me arrepios. Só obteria as respostas muito depois, mas estas superariam tudo o que conseguia imaginar.
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