Quando voltei ao Bar das Fadas, este estava quase vazio. Para além de um ou outro cliente solitário, encontrava-se lá um grupo de cinco criaturas, do qual Alice fazia parte. Ela chamou-me e pediu-me que contasse aos outros o que tinha visto.
Enquanto contava, mais uma vez, o que vira na casa dos Cerqueira, observei os meus novos companheiros. Um deles, um homem, devia ser da mesma raça de Alice, pois tinha o mesmo cabelo branco, pescoço comprido e olhos felinos que ela. Outro, era pequeno, mal me chegava à cintura, e possuía uma pele amarela e laranja. Em contraste, a seu lado, encontrava-se uma mulher muito alta e esguia, de pele azul e olhos grandes, com vários desenhos negros na cara que não consegui perceber se eram naturais ou tatuagens. Por fim, numa mesa próxima, sentava-se uma diminuta criatura que se assemelhava muito à ideia popular da fada. Nas costas, cresciam-lhe asas semelhantes às de uma libélula, e pequenas escamas multicoloridas cobriam-lhe a parte de trás do pescoço e dos braços.
Quando acabei a minha história, todos prontamente concordaram em ajudar a libertar os trasgos. Em seguida, Alice liderou-nos até uma das portas que levavam aos túneis onde os das suas raças habitavam. Desde que descobrira o bar, que os queria visitar. Só gostava que as circunstâncias tivessem sido outras.
A porta, após uma curta passagem, desembocava num túnel largo e alto com chão calcetado, paredes de granito e teto arqueado. Chamas azuis, que pareciam não emitir qualquer calor, ardiam em nichos nas paredes e iluminavam tanto ou mais do que luzes elétricas. Uma miríade de portas despontava em ambas as paredes.
Durante o nosso percurso, passámos por várias curvas e bifurcações. Quanto mais avançávamos, maiores ficavam os túneis e maior era multidão que os percorria. Na superfície, só durante o Verão se via tanta gente. E nunca com aquela diversidade. Perdi a conta ao número de raças diferentes com que me cruzei.
Finalmente, descemos uma escadaria até uma enorme câmara retangular. Esta era atravessada, no seu centro, por uma vala que se ligava, em ambos os estremos, a túneis maiores do que qualquer um pelo que tínhamos passado.
Juntamente com outras criaturas, esperámos naquela plataforma. Uns dez minutos depois, uma luz surgiu no fundo de um dos túneis. Pouco depois, deste saiu uma gigantesca criatura, da altura da vala, e comprida o suficiente para ocupar todo o comprimento da câmara. Assemelhava-se vagamente a uma centopeia, com um corpo vermelho acastanhado e uma miríade de patas delgadas. Contudo, não possuía antenas, e a sua face tinha traços humanos. Sobre as costas da criatura, alinhavam-se seis carruagens de madeira.
Através de uma tábua, subimos para uma destas carruagens e instalamo-nos nos bancos de madeira e ferro. Pouco depois, partimos, entrando no outro túnel alto que desembocava na câmara. Afinal, Braga tinha metro. Os habitantes da superfície é que não o conheciam.
Desembarcámos uns quinze minutos depois, numa câmara muito semelhante àquela onde entrámos. Subimos escadas e voltámos para um sistema de túneis. Este era muito mais pequeno do que aquele junto ao Bar das Fadas, com muitas menos portas e bifurcações. Por fim, chegámos a uma porta de metal guardada por uma criatura alta e musculada, que nos deixou sair. Estávamos, agora, numa exígua caverna natural, a qual só consegui percorrer caminhando de lado. Instantes depois, mais à frente, surgiu uma luz prateada. Após passar uma moita, que disfarçava a entrada, chegámos ao exterior.
Foi com alguma surpresa que, sob o luar, me apercebi que estávamos no vale dos Cerqueira, junto à fronteira entre este e o monte, não muito longe de uma das paredes da quinta. Seria por ali que Henrique acedia ao mundo escondido debaixo de Braga?
Sem perder tempo, a pequena fada voou sobre o muro. Regressou uns cinco minutos depois.
- Os trasgos já estão a trabalhar - disse–nos. - E não estão sozinhos. Os Cerqueira têm Ogrons como capatazes.
- Quantos são? - perguntou Alice.
- Não sei ao certo, mas não são muitos.
- Então, vamos.
- Espera - disse eu. - Qual é o plano?
- Entrar ali e empatar os capatazes enquanto os trasgos fogem - respondeu Alice, sem parar. - Anda.
O muro que circundava a Vila Marta e os seus campos era de granito e tinha mais de dois metros de altura. Fossemos todos humanos, teríamos tido alguma dificuldade em subir. Felizmente, um dos meus companheiros tinha garras retrácteis, pelo que chegou ao topo com relativa facilidade. Depois, ajudou-nos a passar para o outro lado.
Não havia iluminação naqueles socalcos, e era uma das últimas noites de quarto minguante, pelo que estava escuro. Não conseguia ver nada para além das silhuetas difusas dos vinhedos e dos postes que a suportavam.
- Não vejo nada - disse aos meus companheiros.
- Nós vemos - disseram a fada e a criatura que nos ajudara a entrar quase em uníssono.
- Vamos - disse Alice.
Comigo a seguir os outros cegamente, subimos até ao primeiro socalco. Escondemo-nos atrás de um muro circular, que devia pertencer a um poço, e olhámos atentamente para cima. No socalco seguinte, conseguíamos ver várias silhuetas por entre as vinhas, a maioria pequenas, mas uma delas excecionalmente grande, provavelmente o capataz.
Alice pousou-me uma mão no braço.
- Tu não vês bem no escuro, por isso vais ajudar-me com aquele capataz. Os outros tratam dos socalcos mais acima.
Prontamente concordei. Agachados, subimos a rampa de terra que levava ao socalco seguinte. Então, eu e Alice separámo-nos dos outros. Tentámos aproximarmo-nos sem ser vistos, usando os postes como esconderijos, porém, a visão noturna do capataz também devia ser melhor do que a minha, pois prontamente emitiu um temível urro e avançou para nós.
Alice puxou-me e, juntos, lançámo-nos contra ele. A princípio, o ser resistiu à nossa investida, mas acabámos por atirá-lo ao chão. Enquanto mantínhamos o capataz preso contra o chão, Alice gritou, na direção dos trasgos:
- Fujam! Saiam daqui!
As criaturas hesitaram um momento, mas logo se puseram em fuga, descendo a parede que suportava o socalco como se fossem gatos.
O ogron continuava a debater-se e a gritar. Alice deu-lhe um murro e, quando este não resultou, outro e mais outro e ainda outro. A criatura continuava a mexer-se, pelo que não tinha perdido a consciência, mas já não se debatia.
- Acho que já podemos ir - disse Alice.
Quando chegámos à rampa por onde havíamos subido, vimos as silhuetas dos nossos companheiros a correr vindos dos socalcos mais altos, acompanhados por pequenas formas que só podiam ser trasgos. Atrás deles, ouvi a voz de Henrique e de passos pesados. Tínhamos sido descobertos e estavam a chegar reforços.
Corremos de volta para o muro, os trasgos, na sua ânsia por liberdade, ultrapassando-nos e chegando ao exterior antes de nós começarmos sequer a trepar.
Depois de deixarmos o terreno dos Cerqueira, não vimos nem ouvimos mais nenhum sinal de perseguição. Ainda assim, só parámos de correr quando entrámos nos túneis que levavam ao comboio vivo. Para onde tinham fugido os trasgos, não sabíamos, nem se tínhamos conseguido libertar todos. Também não valia a pena pensar nisso. Depois daquela noite, os Cerqueira iam ficar de sobreaviso. Nunca mais íamos conseguir salvar mais ninguém da sua quinta.
Comments (0)
See all