— Todo mundo em posição, o espetáculo já vai começar! — anunciou Rodrigo enquanto terminava os preparativos de palco.
Liza terminou de calçar as botas com salto e enfim pôs a cartola. O resto de sua roupa era um pouco mais curto do que gostaria, e a meia arrastão também era bastante chamativa, mas Marcos dizia que isso atraía mais público, então ela aceitava as condições. Afinal, o Circo do Amanhã era sua família e onde havia crescido, e se pudesse fazer algo para beneficiá-los, assim seria.
Da mesma forma que usava seu dom em proveito deles.
As cortinas se abriram, e Marcos apareceu diante do público: carismático, sorridente, eloquente e com certeza um dos melhores apresentadores que existiam, na opinião da jovem. Não que ela conhecesse muitos outros, de qualquer forma.
— Quando eu era criança, meu pai gostava de falar sobre como ir ao circo era algo incrível — começou ele, sem saudações ou mesmo dar as boas-vindas. — Ele dizia que era um espetáculo mágico, “como se as cores do arco-íris decidissem se separar para dançar juntas”. Eu o ouvia falar e, particularmente, sempre me pareceu ser... bem, uma merda. — A mudança para um tom mais sincero tirou algumas risadas da plateia, e o sorriso de Marcos se alargou. — Mas então ele me levou a um circo. Um para maiores de idade, inclusive, um pouco diferente. Fez uma piada para o segurança e ele nos deixou entrar, mesmo que eu tivesse apenas sete aninhos. Um pouco do dinheiro amigo que lhe deu deve ter ajudado também, eu imagino. — Ele gesticulava e preenchia os espaços, tentando encarar vários pontos da plateia enquanto contava sua história, e esta retribuía, olhando-o com uma atenção divertida. — Mas, mulheres seminuas e corrupção à parte, a experiência de ir até o circo foi uma das melhores sensações da minha vida. As cores, o fogo, acrobacias, animais selvagens... me senti como se tivesse aberto um portal mágico para outro mundo. A vista de algo único e desconhecido, mas que me convidava e provocava a pedir mais. — Uma pequena pausa dramática, e Liza sentiu que todos prenderam a respiração por um instante. Então, Marcos retomou, com voz aveludada — E eu espero, senhoras e senhores, que hoje à noite vocês vislumbrem nem que seja um pouco do que minha versão juvenil viu anos atrás. Bem-vindos ao Circo do Amanhã! E aproveitem o espetáculo. — Uma explosão de confetes perto do teto da tenda, armados mais cedo por Rodrigo, acompanhou o fim do discurso, e o público irrompeu em uma salva de palmas. A música começou a tocar, alta, e a menina esboçou um meio sorriso. Sempre era impressionante como as histórias inventadas do apresentador conseguiam cativar as pessoas.
Fumaça começou a subir, e Marcos se dirigiu para trás das cortinas, onde estavam todos os artistas. No momento em que a viu, deu um sorriso e piscou para ela.
Era um hábito: contava com a jovem para que ela mantivesse tudo nos trilhos. Ela era a mágica do circo, mas em verdade fazia muito mais.
Num gesto com as mãos, a menina lançou um feitiço e todos os confetes se uniram e foram sugados para trás das cortinas, em direção a uma caixa de papelão nos fundos. Rodrigo acenou com a cabeça em um gesto de agradecimento, e ela sorriu em resposta.
Liza havia descoberto seus poderes quando tinha em torno de nove anos. Como Marcos a havia acolhido, foi a ele que correu para contar. Depois de ponderar bastante sobre o assunto, Marcos viu uma oportunidade para que ela fosse útil ao circo. Assim, Liza não só treinou para usar sua magia em apresentações, mas também para oferecer um “suporte invisível” quando algum artista precisasse. Salvar acrobatas caindo, domar feras que saíssem do controle... havia aprendido até mesmo um efeito para as palhaçadas de Cuscuz parecerem mais engraçadas (não que o tivesse avisado sobre isso, não queria ofender o orgulho de um palhaço).
Os outros executavam o espetáculo. Liza o fazia funcionar.
As apresentações começaram, e, um a um, os artistas iam além das cortinas fazer seus números para a plateia. A garota mágica vigiava por uma fresta para caso algo ocorresse. Felizmente, naquela noite, pouco saiu do controle, e todos estavam em um dia muito bom.
Então, chegou sua vez.
Liza sempre era a última, por ser a atração principal. Afinal, se tinha poderes de verdade, por que não os usar abertamente para o show? Diferente de outros mágicos de circo, sua apresentação não se resumia a meros truques com fundos falsos e jogos de espelho.
Rodrigo apagou as luzes, deixando o lugar em completo breu. A menina se dirigiu mais para frente, e aguardou até que um holofote fosse aceso em sua direção.
— Parece que é a minha vez — anunciou, com um artifício para ampliar a voz. Soava diferente de um microfone, mais “real”, e ela gostava que sua introdução fosse assim. Tirou a cartola e arremessou para cima, e esta explodiu em pequenos fogos no ar.
Então, começou uma série de demonstrações: flutuar, brincar com fogo, fazer chover cartas. O público sempre se impressionava, era inevitável: magia pura sempre encantaria as pessoas.
Liza passara nove anos treinando e aperfeiçoando seu poder com os mesmos truques, que hoje já realizava com certa destreza, estando mais à vontade para fazer um bom show.
Porém, foi seu último número que a pegou de surpresa.
Para finalizar não só sua apresentação, mas o espetáculo como um todo, Liza fazia uma mágica envolvendo Marcos, que era o mestre de pista e dono do circo. Ela o chamava, ele fingia surpresa, e então ela o amarrava a uma cadeira no centro. Em seguida, solicitava a ajuda de Rodrigo e alguns dos outros artistas, e eles penduravam algum objeto extremamente pesado acima de Marcos: um piano, uma bigorna, um sofá, coisas do tipo. Esse objeto era solto e, poucos instantes antes de atingir o chão, o homem na cadeira “desaparecia”. Ela o teletransportava para outro local. Fazia um drama, como se o feitiço não tivesse dado certo e ele tivesse sido esmagado, mas Marcos aparecia no final como uma grande surpresa e encerrava a apresentação. Foi um truque aperfeiçoado com anos de treino e muita confiança entre os dois.
O objeto escolhido da noite era uma grande banheira, que já se encontrava suspensa por algumas cordas. O dono do circo fazia seu teatro de sempre, com caretas de medo e olhares raivosos para Liza, que sorria e contracenava com ele, lhe garantindo que tudo ficaria bem contanto que aumentasse seu salário.
O público dava risada, mas seus olhares estavam atentos ao pesado objeto, e era exatamente o que a mágica queria. Tudo estava correndo muito bem.
Até a parte de soltar.
Quando Rodrigo o fez, cortando a corda e fazendo com que a banheira despencasse, Liza sentiu sua magia enfraquecer. Normalmente, ela começava a recitar o feitiço de teletransporte no instante em que o objeto era solto, mas dessa vez não se sentia forte o bastante para isso, como se tivesse algum tipo de bloqueio naquele momento.
Sentiu um enorme frio na espinha e, por reflexo, fez uma magia mais fraca, mas que seria eficiente para salvar Marcos.
Ela parou a banheira segundos antes de o atingir. No ar. E a deixou flutuando.
Houve um momento de silêncio no espetáculo. Depois de alguns segundos, a euforia. A plateia explodindo em aplausos e assovios.
A menina moveu a banheira para o lado, suando frio. Largou-a no chão e foi em direção ao homem para desamarrá-lo.
Quando se aproximou, ele a encarou com uma expressão indagadora no rosto, mas ela balançou a cabeça e devolveu o olhar, tentando dizer que também não havia entendido o que acontecera.
Marcos, é claro, agiu com normalidade para o público, e encerrou o espetáculo da noite.
Após as apresentações, era comum que parte dos que assistiram quisesse conhecer os artistas. Liza, porém, sempre deixava bem claro que não receberia ninguém. Dizia que “um mágico nunca revela seus truques”, apesar de a verdade ser apenas que ela não queria interagir com outras pessoas.
Por isso, foi surpreendida ao ouvir alguém bater à porta de seu trailer.
“Ah, Marcos deve querer saber o que aconteceu”, foi o pensamento que lhe veio.
— Pode entrar! — disse em voz alta, enquanto tirava as botas que tanto machucavam seus pés.
Mas a pessoa que entrou não era o dono do circo.
— Oi, Liza. Foi um belo show — declarou uma voz feminina, o que fez a garota erguer o rosto. Deparou-se com uma mulher, alta e loira, de jaqueta e calças de couro pretas e uma maquiagem igualmente escura.
— Não tô recebendo visitas — respondeu, desviando o olhar. Não queria o esforço de ter que interagir, muito menos com uma mulher tão chamativa quanto aquela.
— “Um mágico nunca revela seus truques”, não é? — indagou a mulher, irônica. — Bom, tudo bem se eu já conhecer seus truques então, certo?
Liza ergueu uma sobrancelha, divertida, e voltou sua atenção para ela novamente.
— Conhece meus truques, é?
— Não só conheço, como acredito que não dê pra esconder sua magia pra sempre desse jeito, menininha. — Nesse momento, o corpo de Liza gelou. Ela tentou organizar os pensamentos. Algumas pessoas já tinham achado os truques dela “impressionantes demais”, mas nunca alguém havia insistido muito no assunto, nem mesmo tido oportunidade de fazer isso.
— Minha magia?
— Não precisa se fazer de sonsa. Você levitou a porra de uma banheira. Sei que não faz meros truques de circo, e acho que deveria tomar mais cuidado.
— Por quê? — Liza já não sabia como elaborar uma boa resposta. Além de não ter o mesmo jogo de cintura de Marcos, aquela mulher estava mais do que convencida da magia dela.
E o fato de não estar errada a deixava nervosa.
— Se eu te achei, não vai demorar muito para que outros também te encontrem. Vai pôr não só sua vida, como a de todos desse circo em perigo.
— Outros? Que outros?
— Outros usuários de magia. — A mulher puxou uma cadeira e se sentou, sem tirar os olhos de Liza. Ela já havia parado de mexer nas botas e agora tinha uma expressão apreensiva.
— Existem outros? — Pela primeira vez desde o início da conversa, a mulher expressou surpresa. Encarava a menina do circo como se fosse um animal selvagem.
— Quantos anos você tem, garota?
— Dezoito.
— E você passou sua vida inteira pensando que não existiam outros usuários de magia?
— Bom — Liza começou, pensando sobre o assunto — quando você coloca dessa forma, pode soar estranho. Quer dizer, é claro que eu já pensei na possibilidade, seria muito esquisito eu ser a única no mundo, mas também nunca encontrei ninguém, então...
— E você sai do circo em algum momento?
— Não muito.
— E não aceita visitas.
— Bem...
— E suponho que não interaja muito com alguém além dos artistas daqui.
— Talvez.
— Acho que entendi. — A mulher se levantou, suspirando, e começou a ir em direção à porta. — Bom, só queria avisar mesmo. Nunca se sabe o que pode acontecer.
— Espera um pouco — disse Liza, quando a loira já estava abrindo a porta. — Como você...?
— Pense por dois segundos, garotinha — respondeu ela, dando as costas para a menina do circo. — Você sentiu o que aconteceu com sua magia durante a apresentação, certo? — Com a pergunta no ar, a mulher desceu os degraus do trailer, deixando para trás uma Liza confusa e sozinha a encarar a porta.
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