Nuvens negras e cinzas, retorcendo-se em suas reentrâncias, com o vento forte as acelerando e deformando, uma espécie de caleidoscópio monocromático, prestes a ganhar cores azuis elétricas. As nuvens cobriam o céu de horizonte a horizonte. Toda a extensão de água, de leste a oeste, norte a sul, água abaixo, água, prestes a cair, acima. O vento que criava e desfazia as formas das nuvens fazia o mesmo com o mar, as ondas ferozes subiam vários metros. Pelo menos parecia que subiam. O escuro da noite que tomou o dia tornava o mundo escuro e desconhecido. As lanternas cobertas do navio eram somente suficientes para iluminar o convés, o interior e o quarto do capitão.Os marinheiros corriam para abaixar as velas e recolher os suprimentos. Puxavam as cordas com força, lutando contra o vento e o balançar da embarcação. Gritos atravessavam o convés através do barulho do vento, encontrando forte resistência. Então começou a chover. A água caiu forte e intensa, encharcando os marinheiros rapidamente, dificultando o trabalho. A cortina de chuva ofuscava a visão. Os gritos tornaram-se sussurros. As ondas elevavam o navio, do alto, tudo o que se via era chuva e ondas enormes. A tripulação já não podia mais fazer nada por ali. Desceram e se abrigaram da terrível tempestade. No convés inferior, os homens amarravam os suprimentos e se asseguravam de que não rolariam e acertariam alguém. Outros descansavam, estavam cansados de lutar contra o vento acima. Alguns rezavam pelo fim da tempestade, enquanto uns clamavam ao Mar que se acalmasse e permitisse a volta à casa, outros rogavam ao Céu que abrandasse os ventos, recolhesse suas nuvens negras e mandasse uma corrente que os guiasse para casa.
Mar e C ́eu eram deuses irmãos e viviam brigando. Seus confrontos resultavam em tempestades, os ventos agitavam as águas, que se retorcia e escapava do aperto dos ventos, trazendo consigo os raios e trovões. O Mar, guia dos marinheiros, provedor de liberdade e emoção, guardião de segredos infindáveis, o Céu, guia dos viajantes, carruagem da natureza, aquele que alcança tudo e toca tudo. Agora guiando marinheiros para os segredos das águas, contra suas vontades. O embate dos deuses se deu por horas que pareciam infinitas. Raios coloriam tudo de azul, seus trovões compunham uma sinfonia assustadora e violenta. Os pobres marinheiros, tão absortos em sobreviver a tempestade, esqueceram-se, ou foram incapacitados, de manter a rota.
O céu estava completamente escuro, as nuvens cobrindo-o, não sabia-se se era dia ou noite, apenas que estava escuro. Os homens saíram para o convés superior como animais observando se ainda havia algum predador por perto. Lentamente estavam todos sob a luz fraca da lanterna. Eles trocaram olhares, então palavras, precisavam manter a rota, mesmo com a chuva. Correram para a cabine do capitão, gritaram que podiam estar saindo da rota, mas não houve resposta. Mesmo nessa situação ruim, seria pior entrar sem a autorização do capitão em sua cabine. Partiram para fazer o trabalho eles mesmos. Em um esforço coletivo, olharam um mapa e se atentaram aos ventos. Descobriram que haviam saído da rota estavam indo para o sudoeste, sofreram uma volta quase total, perderiam dias de viajem se a tempestade não cessasse logo e os suprimentos não bastariam sem reabastecimento. Os marujos se entreolharam desanimados, mas ainda tentavam com todas as forças girar o navio de volta à sua rota. Alguns deles se amarraram firmemente com cordas na balaustrada do navio e estavam olhando ao redor tentando encontrar algo com a luz que os relâmpagos providenciavam. Com tantos relâmpagos naquela tempestade, não era difícil ver o que se escondia na escuridão. Foi assim que avistaram uma ilha. Na verdade, uma pequena faixa de terra, com vários rochedos na costa, o que era mortal. Desesperados, voltaram a bater na porta do capitão freneticamente, mas ainda sem resposta. Rapidamente, então, o imediato correu até o manche e tentou controlar o navio para desviar das rochas, mas a violência que as ondas chacoalhavam a embarcação tornava a tarefa quase impossível. Ele conseguiu desviar dos primeiros rochedos, mas conforme se aproximavam da costa, mais rochas menores apareciam, até que foi inevitável a colisão.
O navio chocou-se violentamente em uma sequência de rochas e jogou os marinheiros pelo convés, de um lado para o outro. os que se prenderam a cordas foram arremessados para fora, em direção às águas agitadas e aos rochedos pontiagudos e afiados. Alguns foram segurados pelas cordas, outros, tiveram elas rompidas ou atingiram os rochedos. Depois de alguma colisões, a embarcação ficou presa entre duas pedras mais largas, o casco arrebentado, a quilha partida, água entrava e tomava a carga. Os marinheiros que ficaram no convés inferior correram para socorrer, salvando o máximo que podiam. Os que estavam no convés superior estavam se reorganizando, ajudando os caídos e aqueles que se machucaram com o impacto. Foi então que viram a imagem mais estranha, bela e confusa que jamais sonhariam ver: luzes na água. Eram luzes coloridas, vibrantes, oscilavam com o movimento do mar, cintilavam na escuridão, alternavam-se em vibrantes azuis, violetas, verdes e vermelhos. Se movimentavam se uma forma muito peculiar pela superfície, como se as águas estivessem vivas. Os marinheiros ficaram estarrecidos e ao mesmo tempo maravilhados. O imediato não prestou muita atenção e foi correndo até a cabine do capitão e arrombou a porta, deparando com uma cabine absolutamente bagunçada, mapas e papéis espalhados por todo o chão, as ferramentas de navegação caídas e quebradas. Em meio a todo aquele caos, o capitão sentava à mesa, com suas roupas de dormir, a mesa vazia exceto por um livro aberto. Era um livro mofado que encontraram em um caixote à deriva no mar, dias antes. O capitão encarava o livro com olhos arregalados, a boca entreaberta, uma das mãos sobre a mesa, sem nenhum movimento, mas o mais desconcertante eram os olhos. Estavam em abertos, molhados de lágrimas e alguma outra coisa úmida e viscosa, eles brilhavam em um tom fraco e claro de verde, iluminando a mesa e o livro com a luz. Finalmente o capitão percebeu a presença do imediato. Tudo que fez foi erguer os olhos brilhantes,fazendo escorrer lágrimas e aquele líquido viscoso, tremer e dizer algumas palavras bem baixo, rouco, como se algo estivesse prendendo sua garganta. O imediato se aproxima lentamente e pede para repetir
- As águas estão vivas... As águas estão vivas... Elas estão vivas... estão nas águas... Nós não estamos... Mas logo estaremos...
O imediato se encheu de pavor com aquelas palavras e correu para o convés.
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