Iwaki - 11 de Março¹, 2011 (Sexta-feira)
Já faz 16 anos desde que o terremoto destruiu com a minha vida, não só a minha como também a de Youko. Às vezes, pergunto — até grito — aos céus: se aquele tremor não tivesse derrubado a nossa casa, será que eu não estaria sozinha agora?
Não posso... Não posso pensar nessas coisas... Só quero esquecer, por favor me deixe... Me deixe ser vazia por dentro.
Meus pais morreram quando completei um ano de idade e nunca sequer lembrei um resquício de suas vozes, então meus avós criaram eu e a Youko, minha irmã minutos mais nova, e após as suas mortes e o julgamento de Youko sinto que a lembranças de todos aqueles que amei estão se esvaindo. Não posso pensar nessas coisas... Só quero esquecer... Beirar a insanidade é a última coisa que preciso agora, basta a Youko. Ver ela há menos de um mês sendo sentenciada a morte foi a gota d'água para mim poder acreditar que existe alguma esperança nesse mundo.
Contas, colégio, trabalho, advogados, solidão... Preciso me levantar e tentar ir para o colégio, só mais um dia. O último dia para o último ano². Fazer as provas finais e passar, tentar esquecer da minha vida, fingir outra e seguir vivendo.
Quais os meus sonhos? Os meus objetivos? Sempre quis ser médica, pois desde criança sempre cuidei dos machucados da Youko e queria poder continuar cuidando dela e de outras pessoas — se possível. Mas não foi e nunca vai ser.
Drim! Drim! Drim!
Desligo o alarme, preciso voltar à realidade.
Visto o uniforme, prendo o cabelo. Tento esconder as olheiras e por o óculos que acredito que seja o suficiente. Não como nada, pois não sinto fome e vou andando de bicicleta ao colégio, pois acabei pensando demais e perdi o horário.
7:10 a.m.
Passo pela Butterfly que está posicionada na entrada da escola e espero o seu diagnóstico.
Analisando perfil...
Cidadã Watanabe, Mizuki. 16 anos.
Efeito borboleta: incolor, em situação...
Analisando...
Fora de risco.
Então, entro na escola e passo pelos corredores até finalmente entrar na sala de aula. Por sorte, o professor ainda não tinha chegado e consigo me posicionar até a minha mesa e ajeitar o material que vou usar na prova de hoje.
— Ei, achei que não vinha hoje, Mi... — escuto a voz por trás de mim.
— Por favor, Ichiro. Já disse para não me chamar de Mi! — Olho para ele — E a escola, infelizmente, ainda é um compromisso. Tenho que acabar com isso de uma vez.
— Sim, perdão. Mas somos vizinhos desde que vocês se mudaram para cá, achei que pudesse...
— Não. Não pode, não somos nada.
— Ok... — diz meio decepcionado e pausa — Enfim, — fala mais baixinho — você soube alguma coisa de Yo...
— Por favor, não se intrometa assim na minha vida. Sei que vocês eram namorados, mas olha... Sabe... Eu não quero falar disso, com licença. — Digo um pouco irritada, tentando não ficar vermelha de raiva pelas memórias que até então eu sempre tento ignorar, mas que sempre estão lá me assombrando.
— Turma, cada um em sua mesa. Vou começar a distribuir as provas. — Diz o professor enquanto entra na sala.
Assim, Ichiro volta para sua mesa sem reclamar ou me indagar com a sua inconveniência e a prova começa. Um dos únicos momentos que senti um pouco de felicidade foram por coisas supérfluas como essa: em plena sexta feira as últimas provas eram de Artes, História e Geografia. Por mais que ela tivesse sido interdisciplinar e englobou todos os conteúdos do Ensino Médio, pois os professores acreditavam que isso servia como um preparo para o vestibular que iria acontecer em Junho, era um exame final tranquilo de fazer e muito fácil de associar os eventos — por mais que sejam mais de 1000 anos de história.
Consegui finalizar tudo em pouco tempo, contudo, tive que permanecer até o horário mínimo de permanência na sala de aula e enfim fui embora, antes disso o professor me chama.
— Senhorita Watanabe — diz ele em tom de pesar e já sei o que vem — sinto muito pelo que aconteceu, qualquer coisa que precisar o colégio estará a sua disposição para lhe ajudar no que precisar.
— Obrigada, Senhor Hashimoto. — me curvo e saio.
Ao deixar a porta da sala de aula, cruzo por um grupo que estava saindo também. Eles olham para mim dos pés a cabeça e viram para si na roda, tento andar na frente deles, mas escutar os cochichos é inevitável.
— Então é ela? — diz uma das vozes.
— Shhh... Não fala alto. — dispara outra um pouco mais baixo.
— Imagina ter aquela irmã? Ainda igualzinha? Será que não é só isso que é igual também?
— Nossa, coitada. Eu já teria me matado se fosse ela.
— Eu também.
— Eu também o que? — fala outra voz que se intrometia no meio da roda.
Olho para trás e era o Ichiro.
— Acho que só dela se manter em pé, após tudo isso, e não se importar com gente vazia que faz fofoca dela, a Mizuki é a pessoa mais forte entre todos vocês que não tem mais o que fazer. — Os nossos olhares se encontram e ele pisca para mim.
— Vocês todos poderiam se retirar dos corredores? Está havendo uma prova caso ainda não tenham percebido. — Interrompe um dos coordenadores que passava pelos corredores.
Todo mundo se desculpa e o grupo se dispersa pela vergonha que passaram. Sigo o caminho normalmente para pegar um refrigerante numa das máquinas que têm no pátio do colégio e sento num dos bancos que há. Dou um gole e tento relaxar olhando para o céu.
Fecho os olhos e as únicas coisas que consigo ver além da escuridão é o sangue que encontrei quando cheguei em casa, ligando imediatamente para a polícia no momento que pisei na sala, logo ao cruzar no corredor, encontrasse o meu avô estrangulado na poltrona de frente à TV e chegando atrás de mim a Youko chorando, dizendo que a vovó tinha matado ele e depois se enforcado, mas... Em seus olhos não havia mais o brilho que antes tinha nos olhos da minha irmã, em compensação em suas mãos tinham sangue e uma faca santoku³.
— Uko... Por favor — entristeço a voz — o que é isso?
— Eu tô cansada, Mizu... — lágrimas não paravam de escorrer de seus olhos, ela limpa uma com o braço que está manchado de sangue — Preciso acabar com isso — disse enquanto chegava mais perto de mim.
— Não... Youko... — digo assustada — Por favor, fique aí, vamos resolver isso... Por favor... — começa a sair lágrimas dos meus olhos, mas eu não as sinto como deveria.
— Perdão...
— NÃO, YO-...
Dou um pulo do banco quando escuto um "MI-ZU-KI" bem alto e uma mão pesada tocando no meu ombro esquerdo. Não sei se fico alegre por ter sido despertada desse transe ou irritada por ter sido obrigada a emergir dos meus pensamentos.
— Ichiro! — digo irritada — Eu não quero ser indelicada, mas você já está sendo insuportável.
— Você... — baixa a cabeça e fala de forma um tanto triste — não é a única que está sofrendo com isso, Mizuki.
— E você sabe o que estou passando? — Levanto e fico de frente para ele, olhando no fundo de seus olhos e ver que eles estavam marejando.
— Desculpa... — ele tenta conter as lágrimas e fica difícil que escutar o que tá dizendo. — E-eu só queria alguém pra conversar e eu achava que você estivesse precisando também.
Consigo me acalmar um pouco — Ichiro... Por favor...
— Desculpa, Mi... Quis dizer, Mizuki. — Ele fala tentando respirar fundo sem soluçar — Me sinto destruído e você é a única coisa que me restou, sem a Youko nada mais é igual.
— Eu sei como é a sensação, mas não age como se fosse o único a ter que suportar essa dor. Esqueça que teve essa vida que é melhor para todos. — Digo a ele de forma rígida, ainda com resquício da raiva que nutri por ele durante a manhã — Aliás, não preciso que ninguém me defenda também.
— Mas... — ele me olha — Você realmente não entende, Mizuki? — começa a ficar vermelho e a falar mais alto — VOCÊ NÃO ESTÁ SOZ----
Não conseguimos terminar a discussão, pois sob os nosso pés a terra começa a tremer e quando vemos o prédio da escola, ele está balançando. Ichiro entra em choque e quando olho a máquina que está atrás dele ameaçando cair, subitamente o puxo para mim. Antes que essa situação se tornasse vergonhosa, ele pega da minha mão e me faz correr até o pátio, onde nada pudesse nos machucar.
— ICHIRO! — Grito assustada — Esse é o mais correto?
— Sim, eu acho. É o mais coerente! — Ele aperta a minha mão. — Não larga, por favor!
— O que está acontecendo? — Tento não chorar pelo medo que me consome.
— Eu não sei, Mizuki...
(fim da parte 1)
Notas:
1.
No dia 11 de Março de 2011, na região de Tohoku, houve o Grande Terremoto do Leste do Japão de sismo de magnitude de 9,1 M/w (escala de magnitude de momento), gerando um alerta em mais de 20 países e de acordo com as autoridades, houve 15 894 mortes confirmadas e mais de 2 500 desaparecidos. O sismo causou danos substanciais ao Japão, incluindo a destruição de rodovias e linhas ferroviárias, assim como incêndios em várias regiões, o rompimento de uma barragem e, aproximadamente 24 horas depois do primeiro sismo, a explosão da Central Nuclear de Fukushima I, que apesar do colapso da contenção de concreto da construção, a integridade do núcleo interno não teria sido comprometida.
2.
O período letivo japonês diferentemente do que se conhece no Brasil começa em Abril e termina em Março do ano seguinte, sendo contemplados com 3 férias diferentes: as férias de inverno, férias de primavera e as férias de verão, sendo esta a mais longa — durando cerca de 6 semanas. Já os vestibulares ocorrem em dois momentos do ano: Junho e Novembro.
3.
A santoku é uma faca usada largamente na culinária, principalmente a japonesa, pois ela é considerada muito prática por conseguir cortar, fatiar e picar carnes, vegetais, legumes, frutas e outros alimentos.
Comments (1)
See all