— Não, eu não vou te apresentar pros meus pais.
Kai franziu o cenho, expressando sua frustração. Ele e Stilla estavam namorando já fazia quase seis meses, mas ela insistia que não estava pronta para apresentá-lo para seus amigos e familiares. Tinha medo de que eles não o aceitassem e fossem contra o relacionamento deles.
O receio de Stilla, porém, era bastante justificável: afinal de contas, Kai era humano, algo que ela mesma tinha aprendido o que significava havia não muito tempo.
— Você não acha que ficar adiando é pior? Quer dizer, não vou me transformar em nada sobrenatural só porque esperamos mais tempo.
— Você é a coisa sobrenatural aqui, Kai — retrucou a menina, encarando os olhos dourados dele. — Não é só uma questão do que você faz ou não da vida. Somos de espécies diferentes. É como se eu apresentasse um dragão pro meu pai e depois dissesse que é meu namorado.
— Eu não sei como me sinto com essa comparação. — O rapaz suspirou, virando o rosto em direção ao extenso mar diante deles. O lugar em que haviam se conhecido, e onde se encontravam na maioria das vezes desde então. — Olha, nós dois somos praticamente adultos. E já estamos namorando escondido. Se sua família não me aceitar, as coisas só não vão continuar como estão?
— Não sei se você entende. — Stilla também encarava o oceano, porém com uma expressão mais cabisbaixa. — Meu povo é tudo pra mim. Somos uma civilização extremamente unida, funcionamos em conjunto. E não dá pra sustentar um relacionamento desse jeito pra sempre. Se em algum momento eu tiver que decidir entre você e as pessoas que sempre estiveram comigo... — A menina deixou a frase no ar, mas sabia que Kai havia entendido a mensagem, pois se virou para ele e viu parte do brilho em seus olhos se esvair. Estavam de mãos dadas e Stilla sentiu o garoto apertar com um pouco mais de força, como se estivesse com medo de que ela fosse embora a qualquer momento e não retornasse mais.
Ficaram mais alguns minutos em silêncio, observando o mar e o sol começando a se pôr. Para a surpresa da garota, foi Kai quem quebrou o silêncio.
— Tenho que ir. Vou ajudar meu pai com o estoque da loja — declarou, se levantando e soltando a mão da namorada.
— Tudo bem, tenho algumas coisas pra fazer também. Vejo você amanhã? — Stilla agora também se levantava, sacudindo as roupas e dando tapas na própria perna para limpar a areia da praia.
— Claro que sim, amor. — Com isso, Kai se aproximou e lhe deu um beijo de despedida. Lento, afetuoso, mas também com certa tristeza. Apesar de ficar preocupada, Stilla sabia que não podia ajudar muito. Afinal, estavam discutindo aquele assunto havia dias, e não tinham chegado a nenhuma conclusão.
Depois de afastar o rosto, o garoto direcionou um último olhar para a menina, e finalmente se virou para ir em direção à outra ponta da praia: o lugar onde ficava a loja de pranchas de seu pai. Ele, inclusive, já conhecia Stilla, embora não entendesse completamente o que ela era. Se perguntassem, diria que era uma elfa, uma associação devido às orelhas pontudas, mas a verdade é que nada de mitologia ou de histórias da cultura humana poderiam descrever.
nOS. Esse era o nome da espécie dela, um povo com tecnologia bastante peculiar, contato com elementos únicos da natureza e dons muito além do que o senso comum de Kai compreendia.
Dessa forma conheceu Stilla. Enquanto surfava, se deparou com ondas não condizentes com os ventos. Remando na prancha para ir até o local investigar, a encontrou usando seu dom: enquanto fazia movimentos, dançando literalmente em cima da água, evocava ondas e controlava o mar à sua vontade. Os movimentos, a ligação com o oceano e sua beleza definitivamente exótica atraíram o rapaz de um modo que nenhuma outra garota humana havia conseguido.
A lembrança em sua mente foi interrompida quando chegou à loja e seu pai logo começou a reclamar do horário e dar ordens. Teria que se preocupar com seu namoro mais tarde.
Stilla e sua família jantavam
silenciosamente à mesa. Quer dizer, ela e seus pais estavam em silêncio,
enquanto ouviam sua irmã, Ayana, falar sobre seu dia, como sempre gostava de
fazer. Apesar de não ter um dom elemental como Stilla, a menina mais nova era
muito ligada a engenhocas e invenções tecnológicas. Mesmo ainda não tendo idade
para se tornar uma aprendiz, já sabia mais do que a maior parte das pessoas da
cidade, e sempre buscava aprender algo novo. Normalmente, durante o jantar,
contava o que havia aprendido no dia, ou sobre o processo enquanto tentava
aprender.
A irmã mais velha, porém, não prestava muita atenção dessa vez. Comia, mas sua mente estava em outro lugar. Sua mãe foi a primeira a perceber, e não hesitou em cortar a mais nova para perguntar.
— Algo que queira compartilhar conosco, Stilla? — indagou, sem demonstrar muita preocupação no seu tom de voz. A menina nunca sabia quando a mãe estava preocupada com ela ou com as consequências do que ela pudesse ter feito.
— Ah, não, me desculpa. Eu só estou um pouco cansada — respondeu, voltando sua atenção para o ambiente. Era o centro das atenções agora, e até Ayana a encarava curiosa, nem um pouco incomodada de ter sido interrompida.
— Dia cheio? — Dessa vez, a pergunta veio do pai, num tom um pouco mais sereno. Era mais comum para Stilla sentir afeto da parte dele.
— Algo do tipo. Tenho certeza que vou me sentir melhor depois de uma boa noite de sono — concluiu, voltando a comer sua janta, dessa vez um pouco mais rápido. Não sabia se a família havia acreditado na desculpa, mas logo a irmã voltou a falar, e ela quase suspirou de alívio.
Ayana bateu na porta do quarto
da irmã um tempo depois que já haviam terminado de comer. Como um ser
extremamente curioso, queria muito saber o que se passava na cabeça de Stilla,
que normalmente era tão focada e talvez a única que sempre entendia o que ela
falava durante os jantares em família.
A porta se abriu, revelando a irmã já de pijama, mas sem demonstrar cansaço algum.
— Posso entrar? — perguntou a mais nova, mesmo já sabendo da resposta. Stilla sorriu, e fez um gesto, convidando-a. Ayana sorriu de volta e deu um passo à frente, ouvindo a porta se fechando atrás dela logo depois.
Ficaram alguns segundos em silêncio, até que a mais nova voltou a falar.
— Então... quer me contar o que é mais interessante do que o vaporcípede que estou desenvolvendo? — indagou, com certo deboche, se virando para a irmã. Esta, porém, não parecia muito animada.
— É só cansaço, como eu já disse — disse Stilla, mas que já era interrompida pela mais nova fazendo um gesto negativo com o indicador.
— Já te vi cansada, e você nunca demonstra tão abertamente. Você tem algo em mente. O que é?
Ayana observou enquanto a irmã pensava, hesitava por um instante, pensava novamente e por fim formava uma pergunta.
— Se... — Ela fez uma pequena pausa, como se ainda não estivesse segura de que perguntar era o melhor a se fazer. — Hipoteticamente falando, você fosse fazer algo que a mamãe e o papai desaprovassem. Na verdade, não só eles, mas talvez ninguém que você conhecesse aprovasse. Você ainda o faria?
— Bom, isso é difícil. Quer dizer, o olhar de decepção da mamãe ainda me dá calafrios — respondeu Ayana, o que provocou uma risada fraca na irmã. Então, ela continuou. — Mas eu acho que perguntaria pra você o que eu deveria fazer.
— E se eu também desaprovasse? — A pergunta deixou a mais nova pensativa por alguns instantes. Precisava ser sincera quanto a isso.
— Eu hesitaria, com certeza — começou ela, dando uma leve pausa antes de terminar. — Mas eu avaliaria. Talvez em critérios. Dois, principalmente.
— E quais seriam os seus critérios?
— Primeiro: o quanto eu quero fazer isso? Segundo: é realmente errado fazer isso? Avaliaria eu mesma.
— E se você não soubesse?
— Você não sabe? — indagou a mais nova. Stilla se virou e começou a morder a ponta do dedo, claramente ansiosa. Ayana estava quase explodindo para perguntar da situação, mas se ela não havia dito até agora, não diria se perguntasse mais uma vez. Naquele momento, o foco era conseguir ajudá-la.
— Olha eu... — começou a mais velha, mas foi logo cortada.
— Stilla, olha pra mim. — O tom da fala da mais nova saiu mais autoritário do que pretendia, tanto que a irmã até se assustou a princípio. Porém, ela tentou se manter séria para concluir seu raciocínio. — Ninguém é perfeito. Pessoas têm opiniões sobre coisas e decisões que não necessariamente refletem a verdade, o certo ou o errado. É claro que pessoas nos influenciam, mas no final apenas nós vivemos a nossa vida. Pense por si, aja por si. Arque com as consequências que forem necessárias depois, mas viva de consciência limpa de que você tomou a decisão que queria tomar, e não foi a opinião de outra pessoa que te impediu de fazer isso. É o que eu acho. — Depois de concluir a fala, Ayana piscou algumas vezes, processando o que ela mesma havia dito, um pouco surpresa. Talvez fosse uma questão que já havia passado na cabeça dela mais vezes do que se lembrava.
Stilla ficou um tempo pensativa, também absorvendo o que havia sido dito. Por fim, ela abriu um sorriso.
— Esses são os raríssimos momentos em que eu esqueço que você é mais nova.
— Só dois anos, e como assim raríssimos?? — indagou Ayana, o que fez a outra rir, e ela acabou rindo de volta. No final, se sentia bem por ter ido conversar com a irmã.
— De qualquer forma — começou Stilla, ignorando a pergunta — você realmente ajudou. Obrigada.
— E você vai me falar o que de tão absurdo você quer fazer? — Os olhos de Ayana brilhavam, mas sua irmã já estava abrindo a porta do quarto e sinalizando para que saísse.
— Talvez eu fale, mas outro dia. Agora eu preciso dormir, e você também.
Ayana foi até a porta, batendo o pé fingindo frustração, o que fez Stilla sorrir. Se tudo desse errado, sabia que podia contar com a irmã.
— Boa noite — disse a mais nova, já saindo do quarto.
— Boa noite — respondeu a mais velha, com um sorriso no rosto, e fechando a porta.
Kai encontrava com Stilla quase
todos os dias na praia, no mesmo horário. Como as tecnologias da espécie de
cada um não batiam, eles tinham que combinar com antecedência se iriam ou não
se ver. Quando acontecia algum imprevisto, normalmente viviam um momento bem
estressante.
Na hora marcada, o menino aguardava enquanto a namorada não aparecia. Às vezes ela atrasava alguns minutos, porque tinha responsabilidades de manhã cedo e às vezes elas se estendiam um pouco. Porém, naquele dia, passaram-se dez, quinze, trinta minutos, e nada de ela aparecer. O garoto começou a ficar preocupado, e estava andando de um lado para o outro.
Então, depois de cinquenta minutos, ela surgiu no horizonte, vindo em cima de uma onda. Carregava algo que o rapaz não conseguia reconhecer. Tinha um banco de bicicleta em cima, mas parecia ter um motor a vapor atrás.
Esperou alguns segundos até que Stilla finalmente chegasse à praia.
Ela apoiou a coisa na areia, e foi de encontro a ele, abraçando-o. Depois, se beijaram brevemente, como um cumprimento.
— O que aconteceu? — perguntou Kai, curioso pelo motivo do atraso, e desconfiando que tinha alguma coisa a ver com o “treco” que ela havia trazido.
— Ah, eu tava arrumando as coisas, preparando terreno. E aquilo ali é mais pesado do que parece — respondeu a menina, apontando para o dito cujo.
— E pra quê serve aquilo mesmo? Aliás, preparando terreno pra quê?
— Vou te apresentar pra minha família — disse ela, abrindo um grande sorriso. — Mas é muito longe pra ir surfando. Aquilo é um vaporcípede, uma espécie de transporte a vapor. É uma invenção da minha irmã. Se não explodir, pode te levar facilmente até lá. Ou, se preferir, eu posso te carregar.
Kai ainda estava processando todas as informações que Stilla simplesmente jogou em cima dele, enquanto ela parecia toda animada. Porém, apenas uma pergunta passou por sua cabeça.
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