Eu não lembro de como iniciou. Eu deveria ser apenas uma criança. Nos últimos anos, passei de comunidade em comunidade, sem me apegar ou criar raízes. As coisas não ficaram melhores quando entrei para a academia do Esquadrão Alpha, uma equipe que surgiu quando a sociedade ruiu.
Foram 10 anos de treinamento até me tornar um membro efetivo. A gente não tinha muitas regalias ou salário, mas só o fato de ter um teto sob a minha cabeça já era uma vantagem e tanto.
Atualmente, habitamos uma vila próximo a cidade de Porto Alegre. O lugar ficou uma bagunça quando os mísseis foram disparados. Você deve estar se perguntando o que aconteceu com o mundo, né? Um vírus aconteceu. O vírus das profundezas do inferno, na real, o nome científico era Vírus L, em homenagem à Lauriete Fishburn, a cientista americana que descobriu sua origem.
De um dia para o outro, os mortos-vivos voltaram à vida e o mundo entrou em colapso. O Brasil foi o último reduto, mas, claro, que a doença chegaria aqui. Não temos noção de quantas pessoas estão vivas ou mortas. Voltamos à idade das trevas. É um resumo do que aconteceu, pode ter certeza que viver tudo isso foi muito pior.
Não estou com bom humor. Tive uma discussão com o meu pai. Ele acredita que eu tenho a missão de comandar o Esquadrão Alpha, mesmo tudo tendo acabado há anos. Afinal, o atual presidente do esquadrão é o Coronel Afonso Ferreira, mais conhecido como papai.
Como eu disse, durante os primeiros anos da pandemia, o papai ficou responsável por levantar o maior número de recrutas possível. Por esse motivo, a gente não parava quieto em um único lugar.
Só que viajar ficou uma coisa perigosa. A cada dia, mais pessoas sucumbiam ao vírus das profundezas do inferno e voltaram como mortos-vivos, que apelidamos de zumbis. Atualmente, existem três categorias de zumbis: atletas (zumbis recém transformados), idosos (zumbis que não conseguem correr devido ao tempo) e explosivos (zumbis que ficam inchados e explodem em uma gosma de sangue e tripas).
Enfim, só tenho a agradecer ao maluco que soltou esse vírus maldito que destruiu a população mundial. Cresci em um mundo apocalíptico e não sei se vou passar do dia seguinte. Cada passo errado pode significar vida ou morte e, cara, isso não é nada legal.
A vila de São Jorge é um dos poucos redutos do Brasil. Além de nós, existe um navio cargueiro que viaja pelo mundo para aumentar o número da resistência. Recentemente, os nossos batedores também descobriram a existência de uma organização chamada de Instituto Brasileiro de Doenças Tropicais (IBDT).
Até agora, não tivemos contato com nenhum membro da IBDT, mas um quartel-general foi descoberto em Santa Catarina, só que sem sinal de atividade. Será que eles foram exterminados pelos zumbis? Espero que não.
A Vila de São Jorge é um lugar tranquilo. É um conjunto de casas cercado por um muro enorme. Somos cerca de 20 famílias que convivem neste ambiente seguro. Não muito longe de nós, Coronel Afonso construiu duas bases militares, que comportam mais de 100 soldados. Aos poucos, nós conseguimos montar um ambiente bom para viver.
— Bom dia, Juliomar. — desejo, quando passei por um dos guardas, que estava em cima de uma torre de vigilância.
— Boa dia, Cristian. Vai caçar? — ele questiona ao me ver carregando uma arma e mochila.
— Sim. Me deseje sorte. — pedi, entrando no estábulo e olhando para Luna, a minha égua.
No mundo apocalíptico, a primeira coisa que "morreu" foram os meios de transporte modernos (carro, moto, avião, etc...). Voltamos à idade antiga e a forma mais comum de locomoção se tornaram os cavalos. A Luna está na família há cinco anos. Ela é uma égua dócil e obediente. Às vezes, prefiro os animais do que os humanos. Afinal, ser o único diferente da comunidade é complicado.
Normalmente, nós caçamos em grupos, mas tem alguns anos que eu caço sozinho. Ninguém quer caçar ao lado do gay. Sim, além de viver em um universo recheado de perigos biológicos, eu sou gay. Ganhei na loteria da vida. Iupi!
Passo a mão na crina de Luna, que relincha. Creio eu que em alegria ao me ver. Revejo os meus pertences. Qualquer deslize significa virar um zumbi. Sou muito bonito e jovem para andar me arrastando pela floresta. Preciso fazer tudo direito para compensar o fato de que eu curto um pênis.
O clima está agradável hoje. De acordo com o meu pai, viajamos pelo mundo até encontrar a estrutura que se tornaria a Vila de São Jorge. A minha família é do Maranhão, inclusive, o papai é o único com sotaque nordestino do grupo. Eu não peguei o sotaque, pois fui criado ao lado de pessoas de todas as partes do Brasil.
A ideia de escolher o Sul foi pela temperatura. Eles queriam um lugar que o clima cooperasse, afinal, não temos mais energia elétrica. De acordo com os mais velhos, o mundo contava com aparelhos que criavam uma temperatura artificial. Coisa louca, não é? Queria ter vivido na sociedade antiga. A vida era mais fácil.
Armas? Ok. Água? Ok. Cordas? Ok. Estou pronto para a primeira caçada do dia. Geralmente, a busca por comida dura dias. Por algum motivo estranho, os zumbis não se alimentam de animais. Eles preferem cérebros de humanos. Será que é gostoso? Posso experimentar qualquer dia.
As áreas próximas à Vila de São Jorge são marcadas com fitas vermelhas, ou seja, o lugar já foi "limpo" e está livre de zumbis. Cavalgar com a Luna é muito tranquilo. Vamos trotando até o portão e anuncio que vou à caça. A equipe de vigilância anota o horário de saída e libera o portão de metal.
Respiro fundo e sigo com a Luna. No caminho, encontro alguns trabalhadores da vila. Estamos expandindo a área das casas. O papai continua na esperança de encontrar novos moradores. Cada um contribui como pode, mas, no ano passado, perdemos o Doutor Heitor, um dos últimos médicos vivos. Atualmente, o consultório é comandado pela enfermeira Lidiane e o estagiário Luiz, um fofo.
Aumento a velocidade e ultrapasso a área segura. Durante um bom tempo, não vejo sinais de animais ou zumbis. Alcanço uma clareira e encontro um lugar para deixar a Luna. Pela posição do sol deve ser quase meio-dia. Caminho pela floresta atento, presto atenção nos meus passos e seguro a rifle com força. Aprendemos a guardar balas, apesar de contarmos com uma equipe que faz munição, não podemos desperdiçar tiros.
De repente, um coelho passa saltitante sobre mim. Aqui pelas redondezas é mais fácil encontrar caças pequenas como coelhos, capivaras, tatus, furões e preá. Certa vez, um grupo de caçadores conseguiu uma onça, mas não conseguia levá-la sozinho. Sigo o coelho, que, inicialmente, não me vê, mas acaba fugindo quando um estalo ecoa pela floresta.
— Droga. — digo, olhando em volta para verificar o perímetro.
O suor desce pelo meu rosto. Que barulho foi esse? Resolvo não ficar parado e continuo em frente. Outro estrondo, porém, o chão treme dessa vez. É um terremoto? Uma bomba atômica? Eu já vi fotos de uma bomba atômica em um livro de história. Isso não é um bom sinal.
Outro estalo, um galho de árvore quase cai em cima de mim, mas consigo rolar para o lado oposto. Um corpo despenca e quebra mais uns galhos de árvore. Droga, eu fico com o rifle em punho. Aparentemente, é um soldado e está usando uma roupa tática com um padrão que eu nunca vi antes.
Me aproximo com cautela e o cutuco com o pé. Eu que não vou vê-lo. Eu já testemunhei pessoas morrendo por muito menos. Qual é a coisa mais prudente a se fazer? Virar e seguir o meu caminho.
— Me... me ajuda. — balbucia o homem, sua voz está trêmula e a respiração ofegante, mas eu continuo o meu caminho. — Por favor.
Respiro fundo e me amaldiçoo, porque volto para ajudá-lo. Deixo a arma perto, qualquer gracinha e o cara vai virar patê de zumbi. O viro em minha direção e fico sem fôlego. Esse é o homem mais bonito que eu já vi na minha vida. O seu rosto está com algumas escoriações, que não camuflam a sua beleza.
— Por favor... ajuda... — o homem desmaia em meus braços.
— Droga, e agora? — penso ao ver a pessoa que definhava na minha frente. — Isso é burrice, Cris. Isso é burrice.
Aproveitei a quietude do lugar e levei o homem para até a Luna. No começo, ela ficou agitada com a situação, mas o coloquei na cela, meio que deitado, e sentei um pouco mais atrás. Foram os 15 minutos mais tensos da minha vida. Uma vez que eu não fazia ideia sobre quem era aquele homem.
Na minha cabeça, fazia isso porque se tratava de uma vida, mas, no fundo, eu sabia que algo em seus olhos havia chamado a atenção. A Luna está em sua velocidade máxima. O último trecho é sob um lago artificial que construímos, pois os zumbis não são os melhores nadadores. Eu paro por alguns minutos para levantar a ponte. Essa é a regra de ouro por aqui. Deus me livre de desobedecer o meu pai.
O galope da Luna anuncia a minha chegada. Os guardas do portão estranham a presença de uma pessoa desmaiada, mas uma das regras do papai é: nunca dar as costas para um possível membro da vila. Como eu disse, quanto mais pessoas agregam para o trabalho coletivo, melhor pode ser o resultado da construção de uma nova sociedade. São palavras do Coronel, não minhas.
Não desço no estábulo. Guio a Luna até o prédio da enfermaria. Paro de qualquer jeito e peço ajuda para alguns curiosos. A enfermeira Lidiane está tratando de uma garotinha, tem uns dias que ela não se sente bem, mas toda a sua atenção se volta para o desconhecido. Com uma habilidade ímpar, Lidiane checa os sinais vitais e a pressão do homem.
— Sinais estáveis e pressão ok. O que aconteceu com esse homem? — ela pergunta, pegando uma faca e cortando a farda dele para ter acesso aos outros ferimentos.
— Ele, ele caiu do céu. — balbucio sem ter outra coisa para falar.
— Os ferimentos são superficiais. Aparentemente, ele não está desidratado ou abaixo do peso. — comentou Lidiane, pegando sua inseparável caderneta e fazendo anotações sobre o desconhecido.
Cacete. Esse homem é ainda mais gostoso sem roupa. Fiquei até com vergonha do meu corpo magricela. Não demora muito e o meu pai aparece, quer dizer, o Coronel Afonso. Ele me enche de perguntas sobre o estranho. Então, conto com detalhes de tudo o que aconteceu na floresta.
Em primeiro lugar o estrondo. Em seguida, os galhos caíram no chão. Outro estrondo, porém, dessa vez, o chão tremeu. E, por fim, o gostoso caiu do céu como um anjo. Se bem que os anjos possuem asas, né? Ele caiu como um mamão maduro. Pego a roupa rasgada do bonitão e mostro para o papai.
— Essa farda. — papai solta, enquanto analisa a logomarca. — Lidiane, você pode tratá-lo, mas o coloque na cela da prisão. Não podemos confiar neste homem.
— Mas, pai, digo, Coronel, ele está...
— Não interessa, Cristian. Esse homem pode ser um risco maior que os zumbis. — afirma papai, sem se importar com a minha opinião.
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