Eu era somente um pequeno elfo de Candara quando o vi pela primeira vez.
Naquela determinada data, embora os gritos fossem aterradores, o cheiro de carne queimada misturado ao odor de sangue nauseasse e meus olhos ardessem por causa da fumaça, eu não temia por minha vida.
Sentia-me intocável.
Sendo muito pequeno para compreender a magnitude do que ocorria, do alto da encosta contemplei a batalha que se espalhava por toda linha da praia. O mar bebia o sangue dos derrotados, as ondas revoltas lambiam os corpos dos mortos, e, muito em breve, o céu obscurecido desabaria suas lágrimas pelas vidas tomadas.
Mas tudo o que eu via era grandiosidade dos seres alados comandados por meu irmão mais velho e que lutavam para defender parte de nosso território élfico.
Dragões do norte.
Belos e ferozes, implacáveis e fascinantes.
Um grito com meu nome alastrou o desespero de quem o clamava — o mentor de meu irmão havia me avistado.
O chamado repercutiu como se levado pelo vento, impactando meu irmão. Entre defesas e ataques de sua espada, os olhos dele procuraram por mim até me encontrarem.
Recuei alguns passos, incerto se deveria ficar ou correr de volta à segurança. E ao me virar, me depararei com um dragão do sul.
Meus olhos esbugalharam e retrocedi um passo, apavorado pela noção de que atrás de mim só havia um abismo. Escutei outro grito ultrapassando os ruídos das explosões. Meu irmão. A última vez que escutaria a voz dele chamando meu nome.
Se naquela dia ele tivesse ignorado o perigo que eu corria, não o culparia por virar as costas para mim. Mas, na ocasião, eu me apavorei.
Gritei por ele, implorei para que não me deixasse morrer.
Tremi diante da figura monstruosa que arreganhava a mandíbula para me destroçar. Ao dar o passo que me levaria a uma queda fatal, garras se fecharam em meus ombros e suspenderam meu pequeno corpo. Muito acima do chão, as batalhas e a destruição foram ficando menores. Alarmado, olhei para cima. A besta que alçara voo comigo era um dos magníficos seres sagrados que eu admirava tanto.
O próprio semideus.
Um baque desestabilizou o imenso dragão que me carregava. O dragão do sul ainda me perseguia e o atacou em investidas contra seu dorso. As garras que me seguravam afrouxaram, meu corpo escorregou e fiz a única coisa que uma criança apavorada poderia fazer.
Gritei.
Um aperto mais forte rasgou meus ombros e chorei.
O semideus me largou no chão ao alcançarmos um vasto campo. Aos tropeços, tentei manter meu equilíbrio, mas acabei caído de joelhos. Minha camisa estava aos farrapos e ensopada do sangue que vertia dos rasgos profundos em minha carne.
Apoiado sobre minhas mãos trêmulas, levantei o rosto ante o impacto do pouso feito. Meu rosto sujo de poeira, borrado pelas lágrimas, ganhou um sorriso. Eu podia vê-lo por inteiro, bem diante de mim, destroçando o pescoço do outro dragão.
Quando a ira pareceu ter sido aplacada, o arfar pesado do semideus foi o único som que permaneceu ao redor. Suportando a dor, me levantei e reverenciei a criatura, vocalizando meus agradecimentos. Ele se aproximou até ficarmos frente a frente. Nunca me esqueci o momento em que encarei aqueles olhos virulentos que, sem qualquer palavra, me recriminaram.
Disseram-me que perdi os sentidos. Ao recuperá-los, meu irmão já havia partido para longe na busca para vencer a grande ameaça ao nosso mundo. Eu fui deixado para trás, para a minha segurança e para que meu irmão não tivesse que se preocupar mais comigo.
Concluí que por tê-lo distraído e feito com que renunciasse ao seu mais forte aliado para me salvar, eu interferi no resultado para que todo o mal fosse evitado. Muito tempo depois, o mentor me explicou que nada do que meu irmão fizesse naquele dia poderia mudar o curso de seu destino.
Ele cumpriria sua missão e não voltaria nunca mais.
Aprendi, dessa forma, o que era a verdadeira dor. Vi o mundo que eu conhecia ser manchado de vermelho pelas mãos daqueles que deviam suas vidas ao meu povo.
Vários anos se passaram e muita coisa mudou. Às vezes, pesadelos ainda me abalam durante a noite. Por mais que eu tente esquecer, os olhos do semideus continuam a me assombrar, a repreender meus atos.
Por aquele olhar que jamais esqueci, hoje tomo com afinco a responsabilidade de prosseguir com um único intento.
Voltar a encontrar o semideus e trazer de volta a honra roubada dos fantasmas de meu passado.
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