O céu estava um suave tom de azul, de um dia tranquilamente ensolarado, e nuvens que não passavam de meras pinceladas pouco acima do horizonte.
— FIUN!
Vultos cortavam o ar, percorrendo ao longo de uma planície, por entre arbustos frutíferos, até chegarem a um bloco de feno, coberto por um pano, procurando acertar o meio da marcação de um alvo no tecido.
Ao parar de seu voo, confirmava-se que se tratavam de flechas, e distante e desfocada, a arqueira que as disparou.
— FIUN!
Mais
uma flecha chegava, e se ia ultrapassando o alvo por cima.
O vento balançava o tecido de seu quíton, e o rabo de cavalo atado em seu cabelo, junto da franja e mechas soltas nas laterais do rosto. Mas seu corpo permanecia firme, como uma estátua em meio ao jardim, segurando um arco feito de madeira laminada sanduichada em fibras de carbono.
Seu olhar afiado refletia a imagem do alvo no qual disparava suas flechas, uma por uma, com uma leve pausa entre cada seta solta.
— Tch-fiun!
Alcançava a aljava, puxando uma nova flecha e levando-a até o apoio do arco, deslizando o corpo da seta enquanto puxava a corda até os braços do arco rangerem, na mesma precisão que o mecanismo de um relógio ao trocar das horas.
— TCH-FIUN!
A flecha era solta e tomava seu rumo como outro vulto, cortando os ares do bosque até chegar ao alvo, tomando um assento por dentre as outras flechas disparadas, ainda um tanto distante do centro da marcação.
Novamente, a arqueira gira seu braço a puxar uma nova flecha, armando o ar no apoio do arco, e puxando a corda vazia...
— Hm?
Percebia só então, que estava sem mais flechas disponíveis em sua aljava.
A afiação de seus olhos dissolvia em um rosto tranquilo, e ela atravessava o braço por entre a corda e o arco, o descansando em seu corpo.
Caminhava, seus passos deslizando por cima das lâminas de grama, nenhum ruído sequer sendo feito em seu trajeto até cada seta perdida no encravo ao solo, arrancando-as e lhes devolvendo para a aljava.
As flechas restantes, encontrava no alvo, as juntando com ambas as mãos para retirar todas de uma só vez, limpando suas pontas na grama e guardando.
Todas? Quase todas. Uma ainda restava, a que passou por cima do alvo, a arqueira logo avistou, cravada nas margens de terra úmida de um quieto riacho que percorria em torno da planície.
O chão ainda gramado se tornava macio ao pisar, remexendo como se fosse gelatina, com o orvalho ainda restante molhando os pés da arqueira.
Ao chegar até a seta afastada, alcançava sua mão a removê-la, mas algo borrado ao canto de seu olho fisga sua atenção.
Uma mão, aberta, de um braço estendido para fora da água do córrego.
A arqueira travou, engolindo seco, lentamente arrancando a flecha ao se erguer.
Com passos que pareciam lhe arder as pernas com agonia comparável a uma terrível câimbra, ela se aproxima, apontando a flecha para o braço estático.
Seu olhar vez em quando saltava para os arredores, mas logo retornando ao braço, até que a distância dela até o corpo estranho reduzisse o suficiente para cutucá-lo com a ponta da flecha.
— Tuc!
A tensão da arqueira logo dissolve em um pesado suspiro, na tranquilidade de perceber que a mão era feita de pedra, fazendo parte de uma estátua que estava submersa nas águas. Cujo rosto estava coberto de algas e musgos, além de indecifrável em erosão.
Ainda assim, a arqueira pressiona o olhar, tentando reconhecer a figura esculpida. Sem ter sucesso, ela se afasta, tomando o caminho de volta pelo bosque.
Em seu retorno, o entardecer também chegava, na subida de um morro, e curva de um vale, já se ouviam as vozes.
O terreno se abria a revelar a presença de casas de concreto espesso, e casas de madeira, interligadas por uma rede de fios pendurados em postes, formando um vilarejo, o qual, por um monólito gravurado que se encontrava ao lado do caminho de sua entrada, era chamado. — Linha Castanha.
Através dos caminhos dentre as casas, haviam várias figuras a trafegar e conversar, trazendo em suas mãos, cestas e bolsas com variadas farturas, como velas, cristais, joias, ornamentos metálicos, e pequenas esculturas.
— Blém! Blém! Ble-ghém!
O sino tocava, em uma casa distante, ecoando através do vale, fisgando a atenção de todos os moradores.
O sino tocava, e uma marcha se iniciou, de passos tranquilos em direção a origem de seu som.
O sino tocava, e a arqueira se apressa a chegar até um casarão, encontrado ao centro do vilarejo, cuja porta se abre antes mesmo dela alcançar a maçaneta, revelando a presença de uma figura alta e coberta em uma armadura, feita de sucata como placas de trânsito e chapas de máquinas. Trazia consigo, um grande e pesado machado.
— ! — A arqueira trava, recuando.
— Lídia. — A figura diz, abaixando o machado. — Aqui.
Escorando a arma na moldura da porta, alcançava uma bolsa que estava sobre uma mesa próxima, lhe entregando.
— Vamos, já vai começar.
— Certo, Líder Amora.
A figura pega o machado novamente, e uma cesta, a qual leva consigo, descendo o terreno em direção ao sino.
O sino tocava. Lídia segura a bolsa, e a pendura por cima do ombro, fechando a porta do casarão, para acompanhar a figura armadurada.
O sino tocava, ao topo de uma torre encontrada no telhado de uma casa na baixada do vilarejo, próxima a um córrego, cujas paredes eram feitas de várias camadas de concreto brutalmente armado,
Só parando seu badalar, embora o ressoar ainda pudesse se ouvir, quando todos os moradores chegaram ao suposto santuário.
Um rapaz soltava a corda do sino, e caminhava a permanecer ao lado de uma senhora, ambos apenas em um canto do templo.
Não haviam cadeiras, mas o chão era forrado por um extenso carpete, no qual os moradores se ajoelharam, dando sua atenção ao altar, nenhuma palavra mais era proferida depois que entravam.
Iluminada por duas fogueiras, cinzelada em uma laje de pedra, estava o relevo de uma figura, triunfante em meio a órgãos humanos como o cérebro e o coração, acompanhados de seus respectivos sistemas fisiológicos, nervos e vasos sanguíneos, além de outros organismos e circuitos que a cercavam, ao fundo do relevo, uma tempestade feroz.
A esta figura, que os itens que os moradores traziam eram dados como oferenda, inclusive por Lídia, que de sua bolsa, retirava um prato, e uma vela.
Acendendo a vela com uma das fogueiras, a colocava ao centro do prato, e a circulava com outros itens, como ossos de animais, flechas quebradas, e frascos de um fluído escuro.
Por fim, ela entrega o prato ao altar, e se afasta, logo saindo do santuário.
Ao subir novamente em direção ao casarão, Lídia para ao meio do caminho, e olha em direção da entrada do vilarejo.
A noite já se fazia plena, e intensamente estrelada, com Lídia caminhando através do bosque, seu caminho iluminado pela luz de uma pequena vela.
Largando seu arco e aljava na beira do rio, adentrou as águas do córrego, para chegar até a estátua, vendo sua mão erguida e aberta.
— ! — Ela olha sua bolsa. — Droga, eu não trouxe nada para oferecer!
Reclamou em sussurro, olhando em redor, e notava, por entre as folhagens, o brilho da vela, refletido nos frutos dos arbustos próximos.
Caminhando até as plantas, coletava seus frutos. — Ouch! — Vez em quando sendo cutucada por espinhos.
Novamente retornando a estátua, entregava os frutos em sua mão.
— Isso é para você. — Ela diz. — Seja lá quem for.
Das rasuras dos espinhos em sua pele, uma gota cai, escorrendo pelas frutas.
Recuando da estátua, Lídia inspira, segurando o fôlego e fechando os olhos.
A partir da mão da escultura, rachaduras laranjas brilhantes surgem, percorrendo de seus palmos e dedos, pelo braço, até o corpo submerso.
As águas borbulham, e a figura rochosa se move, começando a flutuar afora do córrego, seu corpo ganhando vividez, a descascando a revelar uma pele escura, similar a terra vermelha, coberta por um manto branco encardido, e longos cabelos lisos e laranjas, como lava ardente.
— ..? — Lídia exala e abre os olhos, notando a presença da entidade.
As duas se encaram por um instante, enquanto a figura recém-encarnada paira até seus pés afundarem na água, seu corpo perdendo o brilho flamejante, mas permanecendo com as cores que realmente tinha.
— AJUDA!
Gritou uma voz distante, divergindo a atenção das duas figuras na direção do vilarejo. Um vulto surge em meio aos céus acima do morro, para logo mergulhar e sumir de novo.
Lídia imediatamente atravessa o córrego até chegar na beira, onde deixou seus pertences, os agarrando. A aljava tinha um par de ganchos, os quais Lídia prendeu na área de sua cintura. E para levar o arco, o colocava atravessado em seu próprio corpo.
Assim que os firmou, virou-se para a entidade vermelha, mostrando um pequeno sorriso.
— Desculpa, tenho que ir.
— Se cuide. — A entidade proferiu.
A autointitulada caçadora não conseguiu esconder o avermelhar de seu rosto enquanto saía do bosque, gradualmente pegando velocidade conforme descia para fora do casarão, e seguindo o caminho principal do vilarejo em direção ao tumulto.
No meio do trajeto, quando a estrada de terra se juntava a outra, vinha também Amora, ainda em sua armadura.
— Mas, o que...
— O que é, aquela coisa?!
Vários aldeões cercavam, com bastões, pedras e facas em mãos, suas expressões flamejando, gritavam, avançavam e recuavam. Durante isso, em passos calmos, a entidade vermelha caminhava por entre as casas desocupadas, avistando a criatura qual causou o alvoroço.
Era mais escura que a noite, como puro carvão, uma serpente de corpo espesso como o tronco de uma árvore, de pelugem grossa, e asas com capacidade de voar, tinha a cabeça de um lobo, mas no lugar do focinho, um bico com dentes deformados.
Os caninos frontais superiores como os de um guepardo, mas os molares traseiros inferiores como os de um javali, condenado apenas pelos olhos, humanos, escurecidos por marcas de estresse, mas reluzentes pelo marejar de lágrimas.
Navegava pelos ares, sendo contornada pela multidão, seu olhar saltando dentre cada aldeão rapidamente, as mãos armadas chegavam cada vez mais perto.
Dentre tantas provocações, uma que se aproximou demais foi atendida, com a criatura avançando na direção de um rapaz que tentou lhe atacar com um longo bastão.
Mas o medo tirou o melhor de ambos, os repelindo um do outro, acertaram ao nada, e a criatura ergueu voo, se afastando das casas.
— Ah, fala sério. — Bufou Amora, vendo a criatura estava fora do seu alcance. — Você lida com isso aí enquanto vou ver se alguém se feriu.
A arqueira apenas assentiu, e logo armou seu arco e preparou uma flecha, acompanhando os movimentos da criatura voadora conforme se posicionava ao longo do terreno.
Os moradores logo perceberam a situação, muitos deles sorrindo pela presença de Lídia, voltavam para perto de suas casas.
Respirou, e ao sentir seu corpo firmar, soltou a seta para que fizesse seu trabalho.
Direto, e sem um sequer ruído, o projétil perfurou uma das asas da entidade, deixando fugir do bico, um grito, desproporcional a dor, uma voz quase viva, mas distorcida por uma textura metálica.
Após o choro, a criatura fixa sua atenção a arqueira, que se apressa a buscar mais uma flecha para pôr no arco.
Conseguira o armar ao fim de seu tempo, soltando a segunda flecha quando a criatura estava a pouquíssimos metros.
Acertou o bico do pássaro estranho, mas a seta é repelida por sua dureza.
E por fim, a mordida da criatura conectava, prendendo os dentes no corpo do arco, o qual Lídia utilizou para bloquear. Uma surpresa até para o próprio bichinho, já que não conseguia se soltar.
Pousando seu corpo serpente sobre a estrada onde estavam, disputou a força com Lídia, batendo suas asas para tentar se soltar.
— Fhuum!
A entidade vermelha surgia ao lado de Lídia, pairando a poucos centímetros do chão, alcançando sua mão na criatura que se debatia, uma leve aura flamejante surgindo. O brilho lhe trazendo uma leve calma.
— … Está com, fome. — Diz a entidade, sentindo a pelugem do bicho. — Aqui.
Estendendo e abrindo sua outra mão, mostrava frutos para a criatura, que, ao parar de tremer, conseguiu se soltar do arco, e mordiscar do palmo da entidade.
Afastando-se, a criatura se joga para os ares ao usar seu corpo como uma mola, abriu as asas, planando, mas caindo, em direção ao lago que ficava na grande descida do vilarejo.
Mas assim que ganhou velocidade, cambaleou pelos ares até sumir por entre as florestas e morros.
Aos poucos, os moradores suspiravam no alívio de que a criatura havia ido embora, comemorando ao erguer o que quer que estivessem segurando.
— Certo. — Lídia se vira para a entidade. — Eu agradeço sua ajuda, e te dispenso.
A entidade para, e ergue uma sobrancelha. — Perdão?
— Está dispensado, ué. — A arqueira deu de ombros. — Podes retornar a seu mundo.
— Eu meio que, não posso fazer isso. — Respondeu. — Primeiro, eu preciso encontrar meus outros dois irmãos.
— … Oh.
— Ai ai, finalmente, cama!
Bradou Lídia ao entrar em seu quarto, adentro do casarão.
Ela trazia consigo um colchão, e prontamente o colocou ao lado de sua cama, aproveitando para guardar seu arco e flecha embaixo, e depois ir a um dos armários do quarto pegar outros mantos, os colocando por cima do colchão.
A entidade entrou logo depois, a observando.
— O que… Era aquela coisa? — Perguntou.
A garota rachou um sorriso presunçoso.
— Imaginei que você saberia algo sobre. — Disse Lídia, enquanto arrumava a roupa da cama. — O pessoal urbano os chama de “estreis”, embora sejam grandes e feiosos, não são diretamente hostis.
— Pera, tem mais de um?
— Vários, mas em outros lugares.
O rapaz olha para um ponto ao meio do nada por um momento.
— Iremos para a cidade em breve, talvez lá você vai poder encontrar seus irmãos.
Apontando para a cama, a entidade lhe acompanhou, deitando-se nessa e cobrindo-se com os edredons.
— Enfim, você cuida da janela que eu cuido da porta, boa noite.
Lídia terminou, ao se aconchegar no colchão, já com os olhos fechados e prestes a dormir.
Aos poucos, o vilarejo finalmente caía no sono, uma por uma, as lâmpadas desligavam, com a escuridão inundando o interior das casas, ansiosas pelo dia seguinte.
— Ooh, quentinho. — Sussurrou a entidade, pouco antes de também cair no sono. — Mas, o que é uma cidade?
Comments (0)
See all