Por um descuido meu, Caroline olha de relance por trás da parede de blocos de concretos acinzentados se deteriorando se tornando hipnotizada pela coisa, seu corpo se torna frio e opaco como um verdadeiro cadáver fresco. Prendo o grito ao ver sua cabeça voar espalhando o líquido vermelho pelo chão, estou com respingos por todo o corpo, olho minhas mãos trêmulas pintadas com o líquido de Caroline. Sinto meu sangue fluindo quente por minhas veias, o coração acelerando e a queimação em minhas narinas, não tenho pensamentos concretos em minha mente e não consigo formular qualquer estratégia de fuga. Caroline se tornou mais um cadáver que terei que deixar para trás enquanto fujo daquilo. Calafrios invadem meu corpo, me esgueirei pelo chão em busca de uma saída enquanto me afasto do que antes foi minha irmã com vida. Eu sinto muito Carol. Tento não emitir sons, minha perna direita permanece dormente, mas não sei por quanto tempo essa dormência irá permanecer. O corte é profundo, logo vai piorar com a infecção e no pior dos cenários, terei que amputar. Como vou cuidar de uma ferida se não sei nem ao menos que remédio é bom para cortar a dor? Nem se eu fosse capaz de tal ato conseguiria evitar a infecção, os remédios estão na mochila de Caroline e não há coragem em mim o suficiente para voltar para perto da cabeça desprendida do corpo de minha irmã para pegar algum remédio que me daria mais alguns dias de vida.

Adentro uma pequena abertura entre as paredes, me espremendo conseguindo passar para o próximo cômodo, seguro a vontade de olhar para trás para saber o que houve com o que restou de Caroline. Sinto uma pontada aguda no corte, e percebo que o tempo que me resta está com os segundos contados. Forço meu corpo a se levantar para agilizar a fuga, não me alimento há dias, e meu cérebro vive em uma luta constante contra esses poderes misteriosos das coisas. Não olhe para trás, essa é a única coisa que lhe fará permanecer vivo, siga em frente e lute contra as vozes que te coagem a se virar. Consigo ficar em pé após tanta luta, dou pequenos passos lentos arrastando a perna machucada.

Ouço Caroline com sua voz doce se tornando cada vez mais próxima.

Não pense nisso Eleonor, siga sempre em frente, não pode...

- Escrevendo mais um livro de terror, senhorita Olive?

Sinto meu coração subir pela garganta.

- Não me dê susto desse jeito, Thiago! - Me viro olhando para o homem de cabelos castanhos quase loiro, sua feição cansada o entrega que não foi novamente para casa - Está querendo virar um panda?

Uma risada rouca é soltada.

- Não mude de assunto - ele esfrega suas têmporas - lhe avisei que a editora quer publicar um livro de romance e não mais um de terror!

- Não escrevo livros de romance, você sabe disso - me viro para a tela do computador procurando pelos arquivos - já chegou a ler algum desses esboços? 

Thiago se aproxima tomando conta de meu mouse e abrindo um dos arquivos, ele ajeita seu corpo para assim ler o início do manuscrito incompleto.

- Gosto dessa temática, deveria dar continuidade.

- Não minta Thi, isso é um horror! - me levanto da cadeira observando a pequena sala mal iluminada pelo abajur em cima de uma pequena mesa branca - Não consigo desenvolver um romance ou pelo menos fazer com que os personagens tenham química.

Nunca fui boa em lidar com sentimentos, passei a maior parte de minha existência fingindo estar bem com tudo e suportando, além de odiar mudanças. Thiago abre os braços e já sei o que fará. Um abraço apertado por músculos e cheio de perfume amadeirado me prendem. 

- Está na hora de deixar fluir seus sentimentos, Liv você não vive mais naquele lugar. Você cresceu, consegue fazer o que quiser em sua vida e está livre para expressar o que realmente sente. Não se deixe presa, sinta o que tiver que sentir e passe a transparecer. Ninguém vai te julgar por não gostar de algo ou amar outro. Se liberte para mudanças.

Thiago desfaz o abraço saindo da sala.

Respiro fundo tentando assimilar a confusão existente em meu interior. Se eu nunca levar a sério algo que nunca tento ir ao fim, não saberei se sou capaz de realizar. Volta a me sentar na cadeira, abro uma nova página digitando tudo que vem em mente. Mais e mais palavras inundam aquela página que antes estava branca. Descrições, diálogos e intrigas sendo criadas e juntadas em frases que se tornam cada vez mais longas. Não se vence uma guerra sem ao menos tentar, projetar estratégias e ter certeza de que se for cair, ao menos o seu máximo foi tentado.

Suspiro passando a mão pelo cabelo embaraçado, alguns fios enrolados enroscam se soltando de meu couro cabeludo e tornando se parte dos milhares fios que caem. 

- Preciso pensar em nomes para esses personagens.

Não é fácil nomear personagens, não quando você passa a vida usando as pessoas ao seu redor como base, preciso criar uma pessoa com personalidade na qual não convivi. É frustrante! O nome é a base para a criação da personalidade de um personagem, tem que ter um significado por trás, se eu usar algum que detenha consigo um plost twist renderá uma surpresa para meus leitores. Desta vez eu quero que tudo saia da minha zona de conforto.



***

Sinto um frio subindo da ponta dos dedos do pé até minhas bochechas, forço a abertura dos olhos ainda embaçados, a claridade é forte o suficiente para me forçar a fechá-los novamente. Dou um grunhido de insatisfação, me tornei uma viciada no trabalho. A persiana da janela está levantada, um sinal de que Thiago invadiu minha sala mais uma vez. Estico minha coluna na cadeira escutando estralos de ossos retornando ao devido lugar. Clico em uma tecla aleatória do teclado, o monitor se ilumina revelando ser sete da manhã de um domingo, o escritório está em um silêncio absurdo, um lugar ótimo para escrever e ter paz de uma rotina caótica. Preciso retornar para casa ou a polícia irá arrombar a porta do prédio a mandato de Merlinda. Chamo o elevador através do botão rosa com glitter que decidiram por votação que era algo útil que deveria ser colocado na empresa, o chefão não pensou duas vezes em colocar para que o escritório fosse um lugar para que a criatividade flua. Um elevador cheio de espelhos com luz led perfeitos para fotos corporativas, e o mais importante de tudo, ver as enormes manchas abaixo de meus olhos. 

- Ai meu pai amado, eu virei um panda! - Esfrego a parte de trás de minhas mãos em meus olhos esperando que magicamente essa atitude me torne menos panda -

Desde que me deram a missão de escrever um romance, minhas horas dentro da editora dobraram. Procurei pelos colaboradores ideias ou histórias pessoais de um romance, mesmo que tenha terminado em tragédia. O esboço do que deveria se tornar mais um sucesso de Olive Merquis é agora um surto misturado de uma adulta que teve um pico de energia em uma madrugada. Sou uma escritora e deveria ser capaz de criar novos mundos sem se importar com o gênero do enredo, mas a única coisa que sou boa o suficiente é criar terror e matar os personagens preferidos dos meus leitores. Sentimentos de paixão e romance não estão no meu programa de idéias, vulgo cérebro. Algo em meu bolso vibra, retiro vendo a tela do celular com a chamada da senhora que decidiu colocar meu nome por causa de um azeite de oliva. Saio do prédio da editora seguindo minha caminhada pelas ruas.

-

Oi mãe, por favor não me diga que a casa pegou fogo e preciso enviar dinheiro para a reforma - Estou cansada de sempre bancar uma família que nem ao menos me considera parte dela -

- Deveria ao menos dar um bom dia para a sua mãe, Olive - ela adverte como sempre faz -

- Bom dia - tento não demonstrar deboche -

- Seu irmão quer comprar um celular novo - ela grita algo irreconhecível para meu irmão -

- Direta e reta como sempre. Ele trocou de celular recentemente, não posso comprar um novo nem para mim no momento, ele que trabalhe e compre - Paro em frente do prédio em que moro -

- Para de ser ingrata garota! - Ouço ela estalar a língua, sinal de que está brava - Ele quer um celular gamer, estarei esperando o dinheiro cair na conta e quero isso hoje!

- Mãe, eu não vou te enviar dinheiro algum, se continuar me enchendo o saco, se tornará a terceira pessoa bloqueada dessa família! - desligo a chamada, com uma respirada profunda bloqueio ela -

Entro no apartamento me deparando com Linda deitada no sofá, me aproximo vendo a macha de chantilly seco. Linda e sua mania de consumir qualquer coisa que contenha açúcar para se acalmar, eu devia ter ao menos avisado. 

- Sinto muito, Meli - sussurro - Deveria ter mandado uma mensagem.

- Deveria mesmo - a voz falhada de quem ainda não acordou por completo surge da cozinha me fazendo cair de bunda no chão de susto - 

- Caralho! Você me assustou - ponho a mão no peito sentindo o bombear acelerado do coração -

- Eu mereço uma vingança melhor do que apenas te assustar - ela se senta no sofá - Não deu sinal de vida e nem voltou pra casa por dois dias! Liv você sabe o quanto fiquei preocupada? 

- Sinto muitíssimo minha doce irmã, fiquei tão enfiada na nova história que me esqueci completamente que havia... - coço a cabeça - Estou estagnada no romance, como vou escrever algo que seja diferente do terror? 

- Para tudo tem uma primeira vez - ela cantarola -

- Vou comer algo, devo ter restos de brigadeiro na geladeira - abro a geladeira me deparando com uma vasilha cheia de gosma verde - Meli, poderia me informar a procedência dessa gosma na geladeira?

- Oh - ela se aproxima pegando a vasilha - Minha nova receita de pastel - Meli sorri orgulhosa de sua receita -

A massa que deveria ser de pastel forma uma mini bolha que estoura em seguida, eu juro que vi o símbolo da morte subir.

- Vou fritar um pouco para você experimentar - ela sai a procura dos utensílios -

Se eu ficar, definitivamente irei dessa para melhor em uma mordida no pastel. Melinda é uma ótima estudante e amiga, mas para cozinhar devo dizer que faltou passar na fila que dá o dom de cozinhar coisas sem precisar enterrar quem degustou.

- Meli, eu adoraria comer o pastel que sei que será delicioso só de olhar, mas estou com vontade de comer um macarrão instantâneo apimentado - procuro pela carteira a colocando no bolso -

- Mas você não consegue comer comida apimentada sem passar mal - ela desliga o fogo que esquentava a panela cheia de óleo -

- Você sabe como é ter vontade de comer algo, eu sinto que dessa vez não passarei mal - Saio sem a deixar retrucar -

A loja de conveniência fica em frente ao prédio onde moramos. Adentrei o estabelecimento em direção a sessão de instantâneos, me encontrando em conflito eterno. Galinha picante ou calabresa com pimenta malagueta? Não há muitas opções além dos dois pacotes sobrando. Não recomendo nenhuma dessas opções, principalmente quando se não quer passar pelo menos horas dentro de um banheiro e praticamente parindo o que um dia era macarrão. O que fazer? Não quero comer a gosma que Melinda jura com os pés juntos que é massa de pastel. Isso me lembra que preciso comprar remédio para o estômago, tentarei amenizar os efeitos da pimenta para ao menos não precisar passar meu dia trancada em um cômodo. Saio de meus devaneios e vejo a prateleira que antes tinha dois macarrões vazia, viro minha cabeça em todas as direções a procura pelos meus preciosos. Um homem alto encapuzado anda com sua cesta percorrendo o corredor de doces, os dois últimos macarrões apimentados estão em sua cesta. Tenho duas alternativas para esses casos, pedir a ele um ou roubar um. Serei educada.

- Com licença - me aproximo, o rosto cansado do homem com olhos negros me encantam - eu preciso mesmo comprar um desses instantâneos apimentados e por uma coincidência do destino só haviam duas unidades e por um azar você pegou os dois, poderia me dar um por gentileza? - sorrio - 

- Eu vou comer os dois, não poderei compartilhar com você - talvez, eu digo talvez eu tenha me arrepiado com a voz. Foco Olive! -

- Não quero ser chata e nem nada...

- Se não quiser ser processada, oriento que portanto se afaste, você está fedendo. 

Vai se foder Nanami falsificado.

- Não que eu deva uma explicação da minha vida para você, mas saiba que eu tive um trabalho importante para fazer e por mais genial que eu seja, não consigo terminar e por fim dormi no escritório, no momento o que mais necessito é me intoxicar com um mísero pacote de macarrão instantâneo apimentado para não correr o risco de comer pastéis de gosma! - me exalto - me passa rapidamente esse macarrão antes que eu perca a paciência e faça você aprender a voar sem precisar de asas! - uso a voz mais gélida para o amedrontar -

- Tente - ele debocha dando as costas para mim -

1,2,3 conte Olive, não deixe de contar. 5,8, 9. Respira garota.

- Me solta solta sua louca! - o desconhecido gira tentando me tirar de cima de suas costas -

- Me dá um pacote!

- Você precisa ir para um hospício!

- Você precisa me dar esse macarrão!

Ele se sacode, me seguro em seu cabelo para não cair. O homem grita, mas continuo firme.

- Vou chamar a polícia!

- Pois chame, se você não me der um desses miojos vou ser presa por homicídio ao invés de perturbação - puxo com mais força o cabelo dele fazendo fios saírem em minhas mãos, fios não.Tufos de cabelo saíram. Me desequilibro caindo de bunda no chão, sinto a ardência subindo por meu quadril enquanto o falsificado me encara abismado com o que acabara de ocorrer. Ele joga um pacote em meu colo indo pagar no caixa silenciosamente, ele me olha pela última vez indo embora da loja de conveniência. Pelo menos no final eu consegui o macarrão. Ele não foi chamar a polícia não é mesmo? Corro no caixa pagando o bendito pacote apimentado sentindo que venci uma grande batalha, às vezes precisamos fazer o que fazemos para conseguir algo.