31 de outubro – 02h13min
Em frente ao apartamento de Pascal um homem encapuzado observava do outro lado da rua. Silenciosamente analisando a fachada do prédio. Se pulasse de forma certeira em cima da enorme lixeira verde e depois para o topo da barraquinha de cachorro-quente ele provavelmente conseguiria o impulso para agarrar na sacada mais baixa e escalar dali. Pascal morava no segundo andar, o que dificultava um pouco para o homem encapuzado. Mas com um esforcinho ele chegaria lá. Depois da primeira sacada agarraria na horrorosa lateral do prédio revestida com grossos tijolos expostos. O detalhe mais escroto que um arquiteto poderia ter pensado em colocar naquela área da cidade. Não dava nada além de um aspecto de velho e sujo para o lugar, mas isso ajudou a baixar os preços dos alugueis e assim um jovem estudante de Publicidade e Propaganda podia alugar uma residência perto da Universidade que ficava uns 500 metros dali. O homem encapuzado respirou fundo. Correu para pegar impulso e pulou.
Do lado de dentro Pascal escutava música enquanto sorria sem parar. Estava apenas de cueca, era uma noite relativamente quente para outubro. Ele virou de bruços colocando a tela do celular ainda mais perto do rosto para poder ver a mensagem recebida mais uma vez. Sorriu ainda mais forte até as bochechas doerem. Poderia beijar o celular, mas seria um ato patético demais até pra ele, então se contentou em apenas sorrir ainda mais.
Cansado de fazer nada ele levanta, aumentando o volume na caixinha de som, o saxofone de In Your Eyes do The Weeknd explode no quarto. Os vizinhos provavelmente iriam se incomodar, mas ele não liga. Pascal pega um robe de seda rosinha que comprou em um desses sites chineses super baratos por causa de mão de obra explorada de forma desumana. De novo: ele não ligava. Tinha uma peça de roupa super bonita e confortável para se sentir um pouco mais rico do que era e o preço valia a pena a ilusão sobre a realidade de crianças miseráveis que provavelmente costuraram o robe em um porão sem janelas.
Ele apenas vestiu sem amarrar na cintura. Admirando seu corpo no espelho perto da cama. Pascal era um homem extremamente narcisista, ele tentava justificar para si mesmo essa obsessão pelo próprio corpo com: eu gastei horas da minha vida na academia, não tem problema gostar de me ver. Um pouco acima do umbigo do lado esquerdo do abdômen definido ele tinha um desses anjinhos renascentistas tatuados. Era meio cafona, mas ele gostava de pensar que foi uma tatuagem irônica e não algo impulsivo que fez quando tinha 15 anos e um pouco de dinheiro guardado da mesada dos pais. Ele virou de lado, puxando o tecido para ver a própria bunda e riu de si mesmo por ser tão idiota. Desta vez amarrou o robe como deveria ser. Foi até a cozinha pegar um copo d’água enquanto procurava o nome de Daria na lista de contatos. A amiga atende com um “Oi” meio mal humorado e seco do outro lado da linha.
“Adivinha o que eu fiz hoje!” quase grita Pascal animado e pulando na cama. Sentia-se com 17 anos de novo.
“Algo produtivo? Pra você me ligar essa hora da noite sem mandar mensagem antes deve ter dado...” resmungou Daria do outro lado da linha bocejando.
“Acertou.”
“Por favor, não se exponha sobre isso no Twitter, é difícil não me encolher de vergonha com a quantidade detalhe que você sempre posta pra desconhecidos.”
“Tarde demais, já fiz e tem pelo menos uns três arrobas pedindo link da sex tape. Gays são tão previsíveis, né?”
“Botou um GIF engraçado pelo menos? Ou sei lá um estático da Inês Brasil?”
“Coloquei aquele vídeo constrangedor da Hillary Duff dançando em algum morning show.”
Ela ri do outro lado da linha, o que faz ele se sentir bem. Durante todo o tempo que se conheciam, Pascal procurou aprovação de Daria. Ela era facilmente a pessoa mais interessante que ele conhecia. Então, mesmo que não percebesse, sempre havia uma expectativa em suas interações. Uma eterna sensação de apreensão na espera das reações dela. As migalhas de atenção dadas por Daria poderiam o alimentar por meses, no fundo todo menino extremamente bonito é inseguro. Por mais tempo que passasse na academia ou cuidando do cabelo com as pontas cuidadosamente descoloridas e arrumadas, nada era comparável a ser REALMENTE legal. Ele não gostava de pensar na possibilidade de ser um padrãozinho vazio sem nada para oferecer e Daria parecia não ligar nem um pouco para a aparência dele, então o foco sempre mudava com ela, queria que a amiga gostasse muito dele por ele. Era meio cansativo e até obsessivo, já que para Daria, nada disso importava e ela genuinamente gostava da companhia de Pascal. Mas mesmo assim, ele continuava se esforçando demais.
“Ai, sério, era pra ser só uma fodinha de aplicativo, mas ele era super simpático e a gente conversou por horas.” ele adicionou com cuidado com um tom de deboche, flexionando as palavras para a frase ficar mais engraçada do que realmente era.
“Conte mais...”
Mais migalhas, mais satisfação.
“Advogado... Tem o próprio escritório...”
“Chique, deve ter bastante dinheiro.”
“Alto, muito cheiroso... Viu meu pôster de Evil Dead e começou a falar sobre o Bebê de Rosemary que é o filme favorito dele.”
“Ótimo já que amamos homens cultos.”
“Aí a gente transou e ele foi embora já que trabalho cedo amanhã... MAS TROCAMOS NÚMERO.”
“Ah fofo, a beleza do relacionamento moderno.” ela parecia cansada do outro lado da linha, Pascal pode ouvir o barulho de gelo sendo mexido no copo. Provavelmente estava bêbada. Daria tinha esse hábito de ficar bêbada sozinha. Era preocupante, mas ele não falaria isso para ela, não queria irritá-la e talvez ser menos gostável por chamar atenção da amiga pela bebedeira. Então só se contentava em franzir a testa e fingir costume.
“Ele mandou mensagem quando chegou em casa, pediu pra gente se ver de novo. Vamos sair semana que vêm. Acho que estou apaixonado.”
“Espera pelo menos o terceiro encontro pra pensar isso, agora você só tá com os níveis de serotonina um pouco mais altos que o normal.”
“Faz sentido. Enfim só ligando já que queria contar pra alguém e mensagem parecia informal demais.”
“Como sempre, um homem preocupado com registros importantes. Mais alguma coisa? Tava revendo o piloto de Glee pela terceira vez esse mês e você interrompeu meu momento.”
Ele não queria desligar, conversar com ela era fácil e sempre muito agradável. Estava carente, mas não queria ligar para o advogado, pareceria desesperado demais.
“Qual sua fantasia? Eu sei que é pra ser surpresa, mas to curioso.”
“Donna Sheridan, esse ano fiquei com preguiça, era só arranjar uma jardineira. Eu não sou loira, mas a gente pode fingir.” respondeu Daria com um bocejo.
“Lily James ou Meryl Streep?”
“Você que decide, meu amor. E a sua?”
“Alicia Florrick. Deu um certo trabalho, viu...”
“Meu Deus, você é uma bixa mesmo! Eu to ansiosa pra ver!”
Pascal sorriu virando para encarar a peruca e as roupas dobradas sobre a cadeira. Seria sua obra-prima. Seu legado. Todos passariam anos falando sobre a melhor fantasia de Halloween que alguém já usou no rolê.
“Vai amar, to falando sério. Consegui um terninho igual o que ela tá usando no Hitting the Fan. Vou até me barbear, olha o compromisso.”
“Pascal eu te ODEIO!” Daria gargalha do outro lado da linha e ele consegue sentir o coração ficar mais quentinho.
“Boa noite, amor.” ele fala finalmente, já era o suficiente de atenção por hoje e ele dormiria igual um bebê.
“Boa noite.” ela responde com um tom de voz bobo e possivelmente sorridente.
Eles desligam.
Pascal joga o celular sobre a capa e volta a se encarar no espelho. Agora a caixa de som Bluetooth toca Pretty Please da Dua Lipa. Ele abre o robe e volta a se olhar, mas antes de poder pensar em qualquer coisa percebe o rosto estranho e encapuzado atrás dele. Uma ardência forte atravessa suas costas até o peito e ele pode ver a ponta da faca furando o rosto de seu anjinho de dentro pra fora. Sangue escorre. Pascal não grita. Está surpreso demais para isso. Ele apenas encara a ponta afiada saindo de seu abdômen.
Puts... Uma facada pelas costas... Clichê.
A faca sai e agora ele se vira para olhar o agressor. As duas mãos ensopadas de vermelho cobrindo o ferimento. É um homem alto, vestido de preto da cabeça aos pés. Luvas de couro cobrindo a mão que empunhava a longa e afiada faca de açougueiro, agora coberta com o sangue de Pascal.
Ele piscou algumas vezes tentando identificar o familiar rosto entre o capuz do moletom escuro que o agressor usava, mas antes de qualquer conclusão o homem com rapidez chutou Pascal com força. Ele caiu sobre o espelho sentindo os cacos furarem sua pele. A dor era tanta que parecia se misturar com o calor daquela noite. Ele não sentia nada além de surpresa. Não conseguia falar, nem produzir qualquer som. Abriu a boca, mas apenas cuspiu sangue. O homem se posicionou exatamente em cima dele e se abaixou. Agora Pascal podia ver o rosto com clareza. Era uma máscara de látex de Pazuzu, aquele rosto pálido com olheiras vermelhas e uma boca cheia de dentes tortos que aparece em O Exorcista. Pascal adorava o filme, então sorriu para a máscara. Onde será que ele tinha comprado? Provavelmente no mesmo site chinês do robe rosa de seda completamente ensopado de sangue.
O homem posicionou a faca no peito de Pascal e com o peso do joelho foi furando até ele parar de se debater.
Comments (1)
See all