Os primeiros feixes de luz do dia batiam contra sua face quando seus olhos que ainda ardiam abriam. Greneva Scortera olhou pela fresta na cortina e… Não, não eram os primeiros raios de sol. Num impulso, levantou-se, mas parou qualquer movimento ao perceber o ruído que sua cama fizera. Levando sua mão à testa, lentamente virou sua cabeça à direita e viu que sua colega de quarto, Alseri, ainda dormia. Com os cotovelos colados ao corpo, aproximou-se da janela nas pontas dos pés e cuidadosamente afastou a cortina. O sol já havia nascido, apesar de não estar muito alto, e ela não havia ouvido o sino das seis. De acordo com suas estimativas, deveria ser entre seis da manhã e seis e meia. Tarde. Ela teria pouco tempo, se era realmente seis e meia ela mal conseguiria chegar ao seu destino, mas…
Seu corpo estava tenso. Ela soltou um suspiro. Dessa vez, dessa vez não importava. Talvez até mesmo fosse a última vez, lembrou-se. Fechou novamente a cortina e vestiu-se, abotoando as calças que aprendera a achar confortáveis com um descuido apressado. Sua blusa branca ainda estava mal ajustada em seu corpo quando vestiu os sapatos marrons e saiu do quarto, fechando a porta delicadamente. Usando-se dos corredores menos frequentados, caminhou aceleradamente à porta lateral da construção. Sem esperar a porta fechar-se atrás de si, começou a correr em direção à entrada da costa rochosa.
O mar, a água, rios, lagoas, eram sua paixão.
Ela havia estudado desde seus 11 anos, e até mesmo aprendera magia básica de água por acidente.
Agora que pensava sobre o assunto, deveria ter estudado mais quando pôde, ao invés de…
Uma voz feminina interrompeu seus pensamentos. Num reflexo, encostou-se contra o muro separando a costa e os campos de treinamento e sua mão buscou por uma haste que não estava lá. Ao perceber o ato fútil, segurou uma risada melancólica. Tentou acalmar sua respiração e concentrou-se na voz.
Havia alguém cantando. Ou tentando cantar. Não parecia ser nenhum de seus colegas…
Desde que ela havia visto um vulto longo e escuro nadando sob a água nessa costa há meio ano, ela suspeitava de que poderia ser um deles. Ela esperava que fosse um deles, e o fato da criatura estar cantando faria o processo mais fácil. Greneva continuou andando em direção à entrada da costa e espiou a região atrás dos muros.
Em uma das rochas mais altas em frente à costa, havia uma sereia, como esperado. Mas essa sereia era significantemente diferente das ilustrações dos livros. Olhando de relance, notou que as escamas prateadas, brilhando sob a luz do sol, cobriam até o começo de seu pescoço, seu comprimento parecia ser menor do que sereias comuns. Seria difícil definir se era uma sereia ou um tritão se não estivesse cantando.
Greneva voltou a encostar contra o muro e esperou que a canção começasse a surtir efeito logo. Sentindo seus batimentos acalmarem, fechou os olhos e reclinou a cabeça contra a parede, prestando atenção na música. A melodia… Não era uma melodia. O ritmo não era constante. A voz não machucava seus ouvidos, mas também não era aconchegante. Os sons de uma sereia deviam ser nítidos e altos, mas ela precisava se esforçar para ouvir a letra da música:
“…
Oh, as águas batendo gentilmente contras as rochas
Ainda são mais fortes que meu coração
E corretamente ainda mais corajosas
Que o trouxa pensando estar escondido,
Que está ouvindo essa canção”
Sim, a sereia, definitivamente, não estava levando a situação a sério. E o que ela quer dizer com “corretamente”?
- Não é permitido sereias cantarem perto de praias habitadas por humanos. - afirmou Greneva em tom autoritário, enquanto descia a escada coberta de areia - E eu não sou um homem.
- Ah, é? - retrucou a sereia com um sorriso sem mostrar os dentes e mergulhando no mar. Ressurgiu na ponta da costa, esticando seus braços sobre as pedras e apoiando seu queixo sobre as costas de suas garras, cujos dedos eram interligados por uma membrana - Desde quando? Qual distância limite? - ela não abria muito sua boca enquanto falava, fazendo-a difícil de ser entendida.
- Desde uns 500 e… alguma coisa… anos atrás… - desviou o olhar e começava a segurar a borda de seu cinto - E a distância… É bem mais longe do que a pedra que você estava. - reganhou sua compostura e aproximou-se, ainda a alguns passos seguros da parte rochosa, olhando fixamente os olhos verdes da outra, assim como os seus.
- Bem, - ela inclinou sua cabeça, seus olhos também fixos nos de Greneva - eu não pretendo parar. - fechou-os e começou a cantarolar.
- Ei, ei! - deu um passo à frente, colocando as mãos na cintura - Você está infringindo uma lei continental. Na frente de um campo de treinamento militar. - balançou a cabeça, enquanto a sereia continuava cantarolando - Se você for vista como uma ameaça pode ser morta.
- Eu sou uma ameaça - parou a canção, abriu os olhos e levantou a cabeça e uma garra, mostrando-a frente e verso - Faça a lei se cumprir, guerreira.
- Ugh… - soltou um suspiro - Não. Só… Nade de volta para sua colônia. - apontou uma mão aberta em direção a sereia - Qual o seu objetivo aqui? Está doida?
- Eu acho que nós duas temos o mesmo objetivo por aqui. - disse calmamente, esticando a mão em direção a Greneva.
- Q-qual?
- Não é algo que se diz em voz alta, não? Chegue mais perto.
Greneva hesitou, cética. Avaliou as feições da sereia, mas não viu nenhum resquício de um sorriso malicioso. Deu um passo à frente e parou, analisando qualquer mudança na face da outra, ainda não conseguindo observar nenhuma diferença. Balançou a cabeça e cruzou a linha entre a parte arenosa e a rochosa da costa, caminhou sobre as pedras até estar a centímetros da garra da sereia e agachou-se. A sereia parcialmente submergiu novamente, usando as guelras em seu pescoço para respirar e pegando impulso para subir à terra. Greneva sentiu a base de uma garra fria apoiando-se contra suas costas, evitando tocá-la com as pontas afiadas. Gotas de água respingavam em seu rosto ao que os lábios da sereia se aproximavam de seu ouvido para cochichar:
- Morrer.
Rapidamente, o frio nas suas costas sumiu e agora ela sentiu-o em seus tornozelos. Perdeu o chão no próximo momento, viu o azul do céu e então suas costas bateram contra as pedras. Soltou o ar de seus pulmões e fechou os olhos em reflexo. Sentiu as pedras arranhando suas costas e, então, seus calçados escorregando de seu corpo ao que o mar a tomava dos pés à cabeça. Sentiu garras pegajosas a segurando pelo braço e abriu os olhos.
Seus rostos estavam no mesmo nível. As feições da sereia estavam iguais, porém, sua boca estava deformada. Sua mandíbula estava projetada para a frente e dentes afiados se projetavam de sua boca para fora como presas. Essa sereia era como um tsunami.
Elas se observaram por longos segundos, sem reação. Então, ouviram distorcido o sino do campo. Greneva viu a sereia desviar o olhar do seu, seguido por uma das garras apertando contra sua carne, fincando as pontas em sua pele, e a outra libertou seu braço direito. Ao tentar usar o braço agora solto para livrar-se do aperto, sentiu algo cortá-lo e bolhas saíram de sua boca ao invés de um grito. A água tornava-se vermelha ao seu redor. Sentiu seu instinto de sobrevivência surgir. Num impulso, usou uma magia que era como um jato de água entre as duas. A sereia soltou-a e moveu-se para trás, observando-a atenciosamente com olhos arregalados, um receio de avançar. Usando-se da chance, Greneva usou o jato para impulsionar-se de volta à superfície. Sem jeito, caiu de costas na areia, atordoada.
Quando sentou-se, ao olhar para frente, percebeu que a sereia havia emergido e rastejava em sua direção. As pontas de sua garra direita estavam sujas de sangue e nadadeiras afiadas haviam surgido em ambos braços, a esquerda ensanguentada. Contendo um grito, levantou-se às pressas. Segurou o corte que começava a doer com sua mão esquerda. Subiu as escadas, quase escorregando, e corria de volta aos dormitórios femininos quando ouviu atrás de si um tom de desespero e preocupação:
- Viva!
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