[Qualquer um possui a capacidade de criar um universo, qualquer um possui a capacidade de se tornar um Deus, mas o que torna alguém um verdadeiro Deus é a capacidade de brincar com o sentimento de suas criações…]
Odoha Florence
Em uma casa bem escondida em cima de uma colina, uma mulher com características felinas observa o cair da chuva com um olhar solene. Ela estava contente por não ter pego aquela chuva, que poderia molhar seu longo cabelo rosa.
— Não acredito que viemos tão longe só para contar uma história. — Ela não demonstrou, mas estava um pouco irritada por ter que fazer uma parada em sua viagem.
Maria se dirigia à Bortoluzzo, um mercenário que aparentava ser bem velho por conta de sua barba que cobria grande parte do rosto, mas parecia combinar bem com sua estatura grande. Ele viajou muito tempo para se encontrar com uma escritora; queria contar e deixar registrado suas inúmeras aventuras. Nem mesmo a forte chuva conseguia tirar sua animação para contá-las.
— Não reclame, você sabe que precisamos deixar essa longa história registrada — tentou dar um longo sorriso inspirado, mas não deu muito certo, seus longos anos de jornadas haviam deixado seu semblante abatido, mas ele não gostava de parecer assim. — É algo muito importante para se fazer antes de continuarmos nossa jornada.
Maria Neko não perdia a oportunidade de reclamar, mas dessa vez não respondeu o mercenário. Continuou olhando a chuva com a cabeça baixa apoiada em seu braço, enquanto sentava em um confortável sofá perto da janela. Estava acompanhando ansiosamente um pequeno leito de água escorrendo pelo vidro. Sua orelha abaixou desanimada, ao notar que Bortoluzzo voltou a falar.
— Isso vai ser rápido, é claro que meus feitos são inúmeros, mas vou tentar resumir, acho que não levaria nem mesmo uma semana para contar tudo. — Bortoluzzo fez uma pose desconcertante.
Maria arqueou as sobrancelhas e o encarou por um tempo, logo em seguida voltou a olhar pela janela. Ainda não havia se acostumado com a animação sem propósito dele.
O mercenário falava sem perceber a aproximação de uma mulher de longos e delicados cabelos negros, que silenciosamente caminhou por trás dele, e parou. Era a dona da casa onde eles haviam entrado às pressas para se abrigar da chuva. Ela não se importou com a invasão em sua casa e foi muito cordial com seus convidados. Esperou pacientemente ele terminar de falar.
— Por favor, sintam-se em casa — sua voz era suave e delicada.
Bortoluzzo imediatamente se virou ao ouvir sua voz, se afastou e a olhou com desconfiança, estava pronto para reagir a qualquer coisa. A mulher apenas sorriu.
— Tudo bem. Eu os convidei, não precisa ficar assustado. Sente-se — ela fez um gesto com as mãos apontando para o sofá. — Aceitam um chá?
Ele ficou encarando a mulher com uma expressão de espanto, Bortoluzzo não sabia se respondia ou perguntava, não sabia se sentava no sofá ou ficava de pé. Maria não demonstrou reação, apenas ficou sentada no sofá olhando para ela, houve uma época em que se surpreenderia, mas não mais. Bortoluzzo suspirou, e finalmente se sentou. Após um tempo olhou para a mulher com um olhar sério.
— Então você é a famosa escritora — ele olhava ao redor, tentando disfarçar a confusão, não queria ter que fazer perguntas. — Estávamos a sua procura há muito tempo. Eu não imaginei que você vivesse em um lugar tão… reservado.
A mulher sentou-se em sua poltrona preferida, cruzou as pernas e serviu-se de uma xícara de chá que estava na mesinha de centro. A casa dela era bem organizada, tudo parecia estar em seu lugar e servia de um propósito, seja para utilidade ou simplesmente para decorar e deixar a casa bem hospitaleira. Ela deu um pequeno sorriso cordial.
— Vocês ainda não disseram se aceitam um chá — seus olhos estavam fitados no bule de chá, enquanto sua voz ecoou até os dois.
Eles recusaram, e logo Bortoluzzo voltou a conversa, tentando ignorar aquela cordialidade. Para ele, o chá não importava, não nesse momento. O mercenário ainda continuava sério desde que viu a mulher.
— Você disse que nos havia convidado — Bortoluzzo a encarou com um olhar de dúvida, embora ele não soubesse o porquê. — Não me lembro disso.
A mulher tirou o pequeno sorriso de seu rosto e substitui por um olhar sério, mas não amedrontador. Ainda que ela mantivesse uma expressão diferente, sua voz causava uma sensação de conforto.
— Eu os conduzi até aqui, então chamo isso de convite, embora não seja algo que eu faça regularmente. — Ela continuava encarando o bule. Tomou um gole de chá e prosseguiu — Prefiro me manter escondida, mas as vezes abro uma exceção.
Bortoluzzo não entendeu o que ela quis dizer. Continuou com a mesma expressão encarando-a, não a questionou. Talvez isso não importasse muito, ou talvez no fundo ele soubesse sobre o que ela estava falando. Maria sabia, mesmo assim continuou em silêncio apenas observando a conversa. Ele suspirou.
— Que seja. — Ele se encostou levemente no sofá. — Obrigado pelo convite.
O mercenário falou a palavra “convite” com uma entonação sarcástica, não era bem o que ele costumava fazer; na verdade, ele não sabia o porquê de ter dito dessa forma. Talvez estivesse irritado por não entender a resposta. A mulher apenas ignorou isso.
— Já podemos começar? Acho que precisaremos de… — Ele olhou para cima pensativo. Voltou o olhar para a escritora e continuou seu raciocínio. — Uma semana para eu contar tudo.
A mulher assentiu com a cabeça, mas antes de Bortoluzzo começar, ele fez uma pergunta, meio sem jeito. Na verdade, era algo que ele queria perguntar desde o começo. O mercenário esperava que ela não se ofendesse com a pergunta.
— Mas antes… — Ele olhou para baixo por um instante, depois de fazer uma pausa, ele a encarou. — Posso fazer uma pergunta?
— Sim. — A expressão da escritora não mudou, ela parecia saber o que ele perguntaria.
— Você é mesmo capaz de escrever? — ele perguntou sem pestanejar, era necessário, e caso a ofendesse, ele pensou que apenas poderia se desculpar.
A mulher não ficou ofendida; na verdade, essa era uma pergunta recorrente, feita sempre que ela ia escrever sobre a história de alguém. Ela era uma escritora famosa que havia feito várias histórias baseadas em relatos de outras pessoas. Todas as histórias eram verdadeiras, essa era sua paixão. Escrever sobre acontecimentos, entrar à fundo nos sentimentos das pessoas que contavam suas histórias, nadar em um mar de contos que seguia o fluxo das ondas do tempo. É assim que ela era, e assim adorava quando a questionavam.
Ela o encarou pela primeira vez e deu um pequeno sorriso de satisfação, levantou sua mão direita como se estivesse segurando uma caneta e sua mão esquerda como se estivesse segurando um livro. Seus olhos começaram a brilhar; era um brilho tão intenso e branco, como o luar. Nele era possível ver o reflexo de sua paixão, escrever — isso já havia respondido à pergunta de Bortoluzzo. — Após fixar seus olhos no mercenário por um tempo, se concentrando, um fluxo de energia passou de seu corpo para as suas mãos. Na mão direita uma caneta-tinteiro e na mão esquerda um livro se materializaram.
A caneta-tinteiro era muito bonita, possuía a cabeça de uma raposa no topo, e seu corpo descia pela base da caneta, até sua cauda chegar quase na ponta — Bortoluzzo se perguntava como isso não atrapalhava na hora do manuseio da caneta. — A raposa encrustada possuía um rosto solene e vazio, como se estivesse encarando sua alma e analisando-a, mas sem nenhum julgamento. Ela era metade preta e metade branca, e possuía um símbolo em sua testa. O símbolo eram duas linhas de cores opostas à sua metade se juntando paralelamente quase que formando uma galáxia. Era algo belo, mas ao mesmo tempo confuso. O mercenário reparou que existia uma máscara da mesma raposa pendurada do lado da lareira.
Ela finalmente falou com um sorriso arrogante em seu rosto. Não era uma arrogância que irritava, ela parecia saber o que estava fazendo, e esse sorriso era uma resposta comum para a mesma pergunta que sempre era feita a ela.
— Sou mais do que capaz de escrever. Agora, mercenário… — Ela continuava o encarando, agora seus olhos pareciam profundos. Essa visão, misturada com sua doce voz, causava uma sensação estranha, até mesmo em Maria, que se aproximou mais para encará-la. — Mostre-me a sua alma.
Bortoluzzo fechou os olhos e deu um sorriso calmo e solene — parecia ter se lembrado de algo, mas não tocou no assunto. — Estava bem animado por dentro, quase como se estivesse pronto para uma batalha. Relaxou, e enquanto a chuva caía serenamente lá fora, começou a contar toda a sua história que o levou até aquele momento.
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