Ezra estava aproveitando seu dia de folga. Como Anjo da Guarda ele só tinha uma folga no mês, então queria que seu dia fosse perfeito. Ele estava em seu lugar favorito — a Biblioteca Central — tomando um café, lendo seu livro favorito pela milésima vez e admirando um rapaz bonito.
O rapaz não tinha nada de extraordinário, era o que Ezra pensava — altura mediana, pele morena, cachos escuros para todos os lados e um sorriso muito lindo, quase angelical. Apenas um mortal comum, claro. E não era nem o humano que Ezra deveria estar de olho, mas algo o atraía até ele e Ezra queria descobrir o que era.
‘Hoje não.’ Ele pensou. Pois era seu dia de folga e ele não queria desperdiçá-lo pensando em coisas complicadas demais. O dia deveria ser perfeito. Mas aparentemente o Universo tinha outros planos para ele.
“Mas que diabos!” Ele ouviu um dos rapazes que trabalhava na biblioteca dizer enquanto raspava um papel estranho com uma moeda. Ele estava apoiado na bancada da lanchonete na biblioteca. Uma senhora que estava passando fez cara feia e o repreendeu.
“Ei! Para de chamar coisa ruim!”
O rapaz apenas revirou os olhos e voltou para o papelzinho que estava raspando.
Ezra, que estava observando a cena, apenas suspirou e disse para si mesmo “Quanta besteira!” e voltou a atenção para seu livro.
E foi aí que as coisas começaram a desandar.
Ezra sentiu um vento frio em sua orelha e um arrepio percorreu sua espinha. Ele se segurou para não dar um pulo quando uma voz familiar disse:
“Alguém chamou?”
Ele podia sentir que o dono daquela voz estava sorrindo, mas se virou para olhar de qualquer forma. E lá estava ele, o diabo em pessoa. Bem, não exatamente O Diabo, apenas um demônio. E como Ezra suspeitava, ele estava com um sorriso travesso no rosto.
Vendo que Ezra aparentemente não teve muita reação com a sua chegada, o demônio disse “Não parece muito feliz em me ver, Ezra.”
A questão é que ele não sabia se estava feliz ou não. Não é comum para anjos e demônios serem amigos, mas não era incomum para Ezra. Kai era praticamente o único amigo que ele tinha. Era é a palavra certa.
Acontece que, anos atrás, Kai desapareceu sem nem deixar um recado e Ezra soube que ele tinha dado no pé através de terceiros, quando vieram lhe perguntar se sabia onde Kai tinha ido. Ele obviamente não sabia. Não sabia nem que Kai tinha ido. E depois de alguns anos ele cansou de esperar e resolveu seguir sua própria vida.
Agora Kai estava de volta e Ezra não sabia como deveria estar se sentindo. Mas sentiu um nó na garganta como se estivesse prestes a chorar, então respirou fundo e perguntou o que importava, tentando parecer o mais calmo possível.
“Por onde esteve, Kai?”
“Ah, você sabe,” o outro deu de ombros e se sentou ao lado do anjo no sofá “tirando umas férias.”
Ezra nunca sentiu uma vontade tão grande de soca-lo quanto naquele momento. ‘Quer dizer que enquanto eu estava aqui morrendo de preocupação, esse cretino estava tirando umas férias?’ Ele pensou e então disse em voz alta, um pouco impaciente demais.
“É claro que estava.”
“Você parece um pouco pra baixo.” Kai disse e fez uma expressão pensativa. “Por que não fazemos algo para te animar?"
E Ezra sabia que ele estava prestes a dizer algo que não ia agradá-lo, pois Kai ainda estava com aquele sorriso travesso no rosto.
“Já sei!” O demônio disse depois de alguns segundos. “Vamos fazer uma aposta.” Bingo!
“Não, obrigado.” Ezra disse e tentou, inutilmente, voltar a atenção para seu livro.
“Você está lendo ‘Satellite Call’ de novo?” Kai disse inclinando para ver melhor a capa do livro. “Quantas vezes já leu?”
O anjo abriu a boca para falar, mas foi interrompido com Kai colocando a mão na frente dele.
“Espera, não me conta.” E então fez aquela expressão pensativa de novo e então disse confiante. “Aposto um café que foi cento e trinta e duas vezes.”
“Está alguns anos atrasado.” Ezra zombou, na esperança de que o outro se sentisse ao menos um pouco culpado por tê-lo deixado, mas não pareceu ter tido qualquer efeito. “Duzentas e quarenta e nove.”
“Uau!” Foi o que Kai disse, levantando as sobrancelhas de modo teatral. “Eu acho que já está na hora de começar a ler outros livros.”
‘Não tão cedo.’ Ezra pensou consigo mesmo. Para ele era óbvio o motivo de ler ‘Satellite Call’ tantas vezes. Era seu livro favorito. Uma obra prima! Ele conhecia o livro de trás para frente. Não precisava se preocupar com o que estava por vir pois ele já havia decorado cada palavra. Então, sempre que ele queria algo seguro e sem surpresas desagradáveis no final, ele relia ‘Satellite Call’.
“Está me devendo um café agora.” Ezra disse e voltou o olhar para o livro, então acrescentou. “Sem açúcar, por favor.”
Mesmo sem olhar ele pode sentir que Kai fez uma careta, pois ainda se lembrava que o outro odiava café, ainda mais sem açúcar. No quesito doce, Kai era uma formiguinha e parecia que ao menos isso não havia mudado.
O demônio se levantou, deu uma olhada para Ezra e suspirou antes de se virar e ir em direção a lanchonete. E é claro que a pessoa com quem ele iria falar seria o rapaz em que Ezra estava de olho. Kai pareceu ter dito algo engraçado, pois os dois começaram a rir.
Por algum motivo, Ezra se sentiu desconfortável, mas ele obviamente tentou ignorar. Então o rapaz começou a preparar o café e Kai olhou na direção de Ezra e sorriu. O anjo desviou o olhar e voltou para o livro, tentando se distrair.
Alguns minutos depois Kai voltou com uma xícara de café para Ezra e um suco para ele mesmo. Ezra deixou o livro de lado e pegou o café.
“Obrigado”. Ele disse sem conseguir evitar dar um sorriso triunfante e tomou um gole. Mesmo sem olhar, ele sabia que Kai estava sorrindo também.
A verdade era que Ezra adorava fazer apostas com Kai, e era melhor ainda quando ele ganhava. Obviamente Kai sabia disso muito bem e também sabia como fazer Ezra entrar no jogo. Não é como se fizessem apostas sérias. Eram sempre coisas bem infantis, na verdade, pois Ezra não poderia interferir muito na vida dos mortais. Era uma das regras dos anjos para evitar causarem muita papelada, e um dos motivos deles, os anjos, odiarem demônios — interferiam demais e causavam papelada demais.
Os anjos não eram criaturas divinas. Eram poderosos, mas não divinos (bem, Ezra não era tão poderoso assim). Há milênios o trabalho deles era garantir que os escolhidos cumprissem seu destino e eles os guiavam em missões heróicas. Eles gostavam das missões heróicas, davam um propósito para a vida. Isso até descobrirem que essas missões eram apenas uma forma dos anjos escolherem alguém para limpar a bagunça que eles não queriam limpar. Hoje em dia eles apenas guiavam as almas dos mortais para o pós-vida e cuidavam de muita papelada.
O papel de Anjo da Guarda era dado geralmente aos anjos mais novos, para saberem como os mais velhos faziam as coisas antigamente. E não eram todos os mortais que possuíam um Anjo da Guarda, apenas os humanos, pois eram os mais frágeis. E entre eles, não eram todos que possuíam um também, apenas alguns selecionados, pois existiam muitos humanos para os anjos tomarem conta. Não era como se os anjos realmente se importassem com o que acontecesse com os humanos, a menos que isso os desse horas extras e mais papeladas para cuidar.
Ser um Anjo da Guarda era tedioso. Ficar observando os mortais não era algo que os anjos gostavam de fazer. Mas Ezra não se importava muito, ele gostava de observar os humanos. Eles eram livres para fazer o que quisessem e a maioria era ignorante sobre as criaturas fantásticas que existiam bem debaixo do nariz deles.
“Ele é seu humano?” Kai perguntou olhando para Ezra e depois para o rapaz no balcão. Aparentemente ele o estava encarando sem perceber.
“Não.” Ele engasgou com o café. “E hoje é meu dia de folga. Você está atrapalhando.”
“Então por que você fica encarando?” Kai deu uma risadinha. “E estava sorrindo agora mesmo.”
“Eu não estava—”
“Estava sim! Como se…” E então ele assumiu uma expressão genuinamente surpresa. “Ezra, você está… Não, não é possível.”
Ezra franziu as sobrancelhas e se encolheu um pouco.
“Ezra!” Kai se virou para ele e segurou seus ombros. “Não acredito!”
“O que?!” O anjo tentou se soltar, impaciente.
“Você está…” ele virou a cabeça para olhar na direção do rapaz e depois olhou para Ezra novamente. Limpou a garganta e novamente estava com aquele sorrisinho ridículo no rosto. “Você está interessado naquele garoto? Tipo, romanticamente? Você está apaixonado?”
Ezra congelou no lugar.
‘Ah, então era isso?’ Era a única coisa que ele conseguia pensar. ‘É claro que eu precisei que alguém me dissesse que eu estava apaixonado. Que idiota!’
Quando Ezra voltou a si, a biblioteca já estava fechando. E lá se foi seu dia de folga.
“Você está bem?” Kai o perguntou quando eles pararam no sinal.
“Não.”
“Já sei o que pode te animar!” Kai se virou para Ezra, e o anjo já sabia o que o outro estava pensando antes mesmo de ele abrir a boca. “Vamos fazer uma aposta.”
“Não quero.”
“Ezra!” O demônio se inclinava na direção do outro e estava prestes a passar o braço ao redor de seus ombros quando alguém passou correndo entre os dois, os separando. O sinal acabara de abrir para eles.
“Ah, desculpa!” O garoto se virou rapidamente na direção dos dois e depois voltou a atenção para uma garota do outro lado da rua. “Amanda, me espera!”
“Ei, não é o seu garoto?” Kai disse e Ezra revirou os olhos.
E então o rapaz atravessou a rua correndo para alcançar a garota e do nada um carro descontrolado surgiu indo em sua direção.
“Eu aposto que não consegue—” Kai começou a dizer, mas ele não precisava dizer muito para que Ezra corresse na direção do rapaz e impedir que ele fosse atropelado.
Ezra voou com o rapaz até o outro lado da rua onde a garota estava. Ela parecia horrorizada e o rapaz estava tremendo em seus braços ainda tentando entender o que havia acontecido.
Kai chegou ao lado deles em alguns segundos.
“Do mesmo jeito que apareceu ele sumiu.” Os dois olharam na direção em que o carro deveria ter ido. Não havia nada.
“Você—” A garota começou a dizer, mas parecia não conseguir formular uma frase.
O rapaz olhou para algo atrás de Ezra e ele teve conciência de que suas asas ainda estavam à mostra. Ele as guardou e olhou para Kai, como se perguntasse “E agora?” e Kai entendeu e se aproximou.
“Vocês estão bem?” Ele perguntou e os outros dois acenaram, ainda hesitantes. “Então por que não esquecem sobre isso e vão para casa?”
Os dois piscaram. O rapaz se levantou de uma vez e os dois começaram a andar como se nada tivesse acontecido.
“Achei que fosse seu dia de folga.” Kai olhou para Ezra com um sorriso travesso.
“Agora não, Kai.” Ele olhou novamente na direção em que o carro deveria ter ido. A rua estava deserta. “Você não acha estranho que—”
Então uma pomba branca passou voando por eles e deixou um envelope aos pés do anjo. Kai olhou para o envelope e depois para Ezra novamente.
“Isso não pode ser coisa boa, né?” Ele diz e Ezra franze as sobrancelhas ainda sem saber o que fazer em relação àquele envelope. Kai pegou o envelope no chão e abriu, ficando sério, mas logo deu um sorriso. Dessa vez um sorriso nervoso. “A boa notícia é que você vai estar de folga amanhã também.”
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