Desde quando suas pequeninas mentes se atreviam a buscar, ou desde quando elas ousavam lembrar, havia o casarão, havia o grande mato, haviam as regras. Ninguém entrava no casarão, exceto o pai e uma velha cozinheira. Fora eles, o máximo que todos podiam chegar era ao pé da soleira da porta e ir embora. As crianças nem isso podiam. O máximo que podiam ir era até metade do campo que separava a modesta casa em que viviam e o casarão. Quando o pai saia, ficavam aos cuidados do restante do povo que morava e trabalhava na fazenda, em casas mais afastadas – a deles era a única que ficava perto do casarão –, e eles sempre se distraiam em suas importâncias. Por isso, as crianças foram criadas sempre com muita liberdade. A mãe um dia existira, sabiam disso, mas as lembranças dela se limitavam, basicamente, a um quadro na parede. An ia para escola nos dias da semana bem cedo quando o pai ia resolver os problemas na cidade e voltava na hora do almoço. Goy, um ano mais novo, ainda não estava em época de ir à escola, e passava as manhãs dormindo ou acompanhando a senhora Gabs, que era encarregada de coordenar tudo para que a fazenda funcionasse. O pai passava a maior parte das tardes fora. A cidade ficava a duas horas de distância, mas o pai cuidava das entregas para cidade e ia de manhã levar An e a filha mais velha dos Gomez - ela trabalhava em um escritório, elas não sabiam do que, mas voltava sempre a noite para fazer companhia para os pais já de idade –, assim como algumas encomendas matutinas, e à tarde ia novamente, com mais assuntos para resolver, mais coisas para levar e, às sextas, dava uma carona para a Sra. Pff - não sabiam o nome dela exatamente, porque ela vivia sempre calada, e apenas fazia o som de pff toda vez que as crianças chegavam perto - que visitava a filha em uma cidade vizinha. Ela estava na faculdade, o pai lhes dissera. Todo o tempo que tinham livre da vigilância de qualquer adulto, usavam para se desafiar para ver quem chegava o mais perto possível do Casarão.
O Casarão era um mistério, uma lenda viva que se soerguia por sobre a fazenda, imponente parecendo que iria devorar tudo, como um monstro de algum pesadelo. Os funcionários da fazenda também não sabiam o que havia de misterioso e assombroso naquele prédio. Há vários anos atrás, antes do pai e mãe se mudarem para a fazenda, há muito, muito tempo atrás, uma eternidade para crianças que tão pouco viveram, ele era um lugar com gente, com convidados, com festas eventuais. O patrão e a patroa pouco tempo passavam lá, preferindo o ambiente mais organizado das grandes cidades, mas um momento ou outro ficavam lá uma semana, se divertindo em um local de trabalho de tantos outros. Mas isso fora muito tempo antes das crianças nascerem, imaginavam até antes de seus pais nascerem.
- Quando ainda tinham dinossauros, vulcões e pirâmides – Dizia Goy sempre que buscava explicar o que era o Casarão.
Um monstro deveria viver lá dentro, pensavam as crianças. Os adultos pareciam não discordar, mas não ousavam dizer isso em voz alta, pois sabiam que os monstros que eles imaginavam viver lá dentro não eram os mesmos em que as crianças acreditavam, na maioria das vezes. De qualquer forma, continuava ele lá, misterioso, silencioso, como uma pedra gigante no meio do nada, um santuário de pedras – soneage, stoneage? – que as crianças viram uma vez em um livro de fotografias. Era também um desafio, o estranho limite que queriam ultrapassar.
- Porque ninguém entra lá dentro? – a Sra. Gabs não se surpreendeu com a pergunta do menino, já perguntara aquilo muitas vezes antes, e mesmo sem saber exatamente a resposta, sempre achava uma forma de desconversar. Mas o menino ficava cada vez mais esperto, cada vez mais difícil ludibriar.
- Porque não podemos. A casa não é nossa para entrarmos. Você entra na sua casa, mas não pode entrar na minha sem minha permissão.
- Mas então de quem é a casa?
- Ué, de alguém que não sabemos.
- Mas não poderíamos apenas ir lá e nos apresentar? – a Sra. Gabs andava meio apoiada em uma grande vareta de bambu enquanto caminhava e o garoto a imitava. Ela olhou ao longe enquanto pensava sem acher uma resposta fácil.
- Porque não queremos incomodar a pessoa.
- Mas ela não é dona disso daqui tudo, foi meu pai que disse, então ela deveria conhecer todo mundo por aqui.
- Mas talvez ela conheça todo mundo, mas prefere ficar quieta. Nem todo mundo gosta de barulho e bagunça.
- Mas a sinhôra não acha assustador ter alguém que sabe tudo de ti, mas tu não sabe nada dela?
- Achar eu acho, sabe, mas às vezes temos só que deixar de lado essas coisas, porque temos que seguir vivendo, né?
- Mas a senhora tá aqui há um tempaço, antes de meu pai ser menino, meu pai que disse, então deve conhecer bem as coisas aqui.
- Conhecê, conhecê eu conheço muitas coisas minino. Já entrei naquela casa, no tempo que morava gente que hoje mora em cova no cemitério, no tempo em que não tinha um descascado na tinta fresca da parede, nem nenhum destelhado no topo da casa. Mas isso foi há muito tempo. Hoje quem mora lá são outras gentes, e essas gentes não qué nada com a gente não minino. Então melhor tu faz em deixar essa gente em paz. - Ela continuava falando, mas Goy já tinha se perdido em seus pensamentos.
- Então quer dizer que a senhora já entrou lá dentro?
- Minino, tu não ouviu que que eu disse sobre deixar essa história em paz?
- Mas quero saber como é lá dentro, porque nunca vi lá.
- Ai, ai... Não tem nada demais aquele lugar não, é como casa de qualquer gente rica que vive nessas bandas de mundo. Por mais que a gente vagueie mundo a fora, gente rica é gente rica independente donde tu vai. Agora continua andando e para de pergunta que temos muito pra andar ainda.
- Mas se a senhora já entrou uma vez, porque não podemos entrar de novo sabe?
- Vai perguntar essas coisa pro seu pai minino, que ele que vive entrando lá dentro. Ele que deve saber dessas coisas, não eu.
Esse era um ponto tênue de conversa. An e Goy sempre tentaram fazer com que o pai dissesse o mínimo que fosse sobre o que tinha lá dentro - como eram as pessoas, porque ninguém podia entrar e tudo mais -, mas quando se tocava no assunto, a boca do pai virava cadeado, que ninguém abria a não ser o pai, com a chave. Às vezes o pegavam olhando para o casarão, com o canto de olho, meio triste, meio preocupado, e depois voltava a fazer as coisas. Todo dia, antes de sair pra cidade, ele ia cedinho no casarão, ficava uns dez minutos apenas, e saia. Quando voltava de meio-dia, era a mesma coisa. À noite demorava um pouco mais, quinze minutos. Às vezes as crianças ouviam alguma coisa lá dentro, e o pai corria abestalhado para ver o que era, independentemente de onde estava ou do que estava fazendo.
Um dia estavam saindo para escola, o carro já estava ligado e estavam começando a sair, quando se ouviu um som do lado de dentro. Era um grito ou uma gargalhada, não saberiam definir, mas ele correu o máximo que pode porta à dentro. Júnia, a filha dos Gomez, não tinha coragem de ultrapassar a porta, e esperava do lado de fora junto com An. An sentiu a mão se apertar na sua, e ficar apertada até que o pai voltasse. Apenas nessas vezes que lhes era permitido chegar mais perto do casarão. Demorou mais tempo para que ele saísse dessa vez, e saiu um pouco transtornado, com uma cara que nenhum dos filhos jamais vira. Passou reto pela entrada e ligou o carro, quase dando a partida e esquecendo das caronas que lhe acompanhavam. An se vangloriou ainda várias vezes de ter estado tão perto da cena.
– Juro que o grito não parecia humano, parecia um grito de monstro, com uma força gigante e feroz como um tiranossauro-rex. – ela ainda repetiria muitas vezes depois.
Nas noites em que não queriam dormir, culpavam o Casarão ao longe, que lhes atrapalhava o sono. O pai não acreditava, e mandava-os para cama de qualquer jeito.
- Não adianta dizerem qualquer coisa, pois já fui criança para saber dos truques – dizia o pai.
Mas nas noites realmente tenebrosas, evitavam de pensar no Casarão, fruto de inúmeros pesadelos dos mais variados, pesadelos que só a mente de uma criança ousaria pensar. Imaginavam monstros que faziam travessuras, que tinham sido aprisionados dentro daquele casarão, e guardavam um tesouro, como um dragão em um castelo, mas ninguém queria chegar perto, porque tinham medo do mal que as criaturas podiam fazer e repetiam: - Nem todo tesouro desse mundo vale o perigo de se arriscar lá dentro. Os mais nobres cavaleiros chegavam à soleira da porta, ouviam as gargalhadas que vinham de dentro, faziam o sinal da cruz, e iam embora, de olhar baixo repetindo: - Nem por Deus, nem pelo Diabo que ouso entrar nessa casa. Outras vezes imaginavam fantasmas e coisas do além, que assombravam cada canto do amaldiçoado Casarão. Nenhuma criatura que respira ousava se aproximar daquele que era o reduto dos mortos. Tremiam só de pensar nisso, criaturas do além, com os rostos deformados como cadáveres em decomposição – sabiam como era um cadáver, pois uma vez que o pai ficara fora até tarde e Júnia lhes servira de babá. Ficaram assistindo séries policiais que ela tinha trago em DVD, pois não pegava internet ou TV à cabo no fim de mundo onde moravam. As criaturas gemiam e se arrastavam pela casa, mas por alguma mágica, elas não eram capazes de sair do casarão – as crianças davam graças a Deus todas as noites por isso.
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