Darl observou o novo rei de Hraelund sentar-se sobre seu trono.
Sob a extravagante coroa, seus olhos fecharam-se e suas sobrancelhas franziram-se. Seus ombros moviam-se inquietos, como se buscassem uma posição de conforto, mas não a encontravam. Não havia conforto àqueles que deviam assumir responsabilidades deixadas pelo legado de outrem.
Era como se o adorno sobre sua cabeça carregasse consigo, além de seu próprio peso, um fardo muito maior.
No salão principal, diante do trono, estavam reunidas figuras importantes da corte, todos rostos já familiares. Elas lá estavam para debater o futuro da guerra que travavam há décadas com Alken, reino rival ao sul.
Estranhamente ― porém, talvez, não surpreendentemente ― Darl também havia sido convocado. O garoto vivia apenas seu décimo segundo inverno, e pouco entendia de conflitos políticos, mas tinha um sólido palpite sobre a razão.
Ao seu lado, estava de pé Eirkia, a princesa, apesar de não haver sido convidada ao debate. Ainda assim, dada sua personalidade, era esperado que comparecesse.
Ela mantinha seus olhos sérios fixos no irmão assentado sobre o trono. Por mais que fosse, possivelmente, a pessoa que falava mais frequente e despreocupadamente do castelo, Darl não ouvira sua voz novamente desde a noite retrasada.
A noite quando a vida de seu pai, o antigo rei, encontrara um fim.
― Batemos nas portas de Alkerfell. ―, suspirou Hallerik, agora com os olhos novamente abertos. ― Mas fomos recebidos pelas forças de Elogrand. Já não restam forças suficientes nos acampamentos para invadir a cidade, nem tempo antes do próximo ataque dos aliados para bloquear as saídas até que morram de fome.
O jovem rei fez uma breve pausa e deixou escapar outro suspiro antes de prosseguir, agora com uma voz mais austera.
― Meu pai e eu já havíamos planejado nosso próximo movimento, e as novas tropas já estão organizadas para partir em três dias. Mas... Szeidung, Aston, Heisondr, quero conselhos seus.
― Até mesmo meus, vossa majestade? ―, Heisondr, o Arquimago de longas barbas brancas, retrucou em um tom que parecia fingir surpresa.
― Sim. Meu pai podia detestar a magia, mas você, mais uma vez, deve ser um protagonista no futuro deste reino.
― Sinto-me honrado.
O mago pôs a mão no peito e curvou a cabeça, em reverência.
Por alguma razão, após ter a companhia do velho homem por um tempo considerável todos os dias, Darl passou a compreender todo gesto de respeito seu como mero sarcasmo. Contudo, podia ser apenas resultado de sua imaginação e excessivas introspecções.
― Aston, sinto muito por retirá-lo de sua aposentadoria, mas quero que atue novamente como general por enquanto.
― Não se desculpe, meu lorde. Eu vivo e respiro para servir à coroa e ao reino.
O antigo, e novamente ativo, general repetiu o mesmo gesto de reverência. Por mais que sua atitude fosse igual à do Arquimago, em contraste, parecia haver honestidade em cada movimento que fazia.
― Ótimo. ―, assentiu Hallerik. ― Heisondr, para poupar-me de ler todos os relatórios que enviou ao meu pai, quero que me diga algo. Como Darldollum pode ser-nos útil?
Em resposta às palavras do irmão, Eirkia subitamente deu um passo adiante, mas se conteve e recuou outra vez. Sua expressão era perplexa, seus movimentos mostravam inquietude.
O garoto sobre o qual falavam, contudo, nenhuma emoção esboçava. Afinal, já sabia que planos estavam reservados para ele, e tentava preparar-se emocionalmente para quando o momento chegasse.
Ainda assim, por mais que estivesse ciente de que partiria para o campo de batalha, não sofria com a antecipação. Era como se seu destino estivesse tão longínquo que não pudesse afetá-lo no presente, ou soubesse o quão distante estaria seria sua consciência.
Ou, talvez, simplesmente nada mais o abalasse.
― Ainda não fui capaz de averiguar o limite de suas capacidades ―, respondeu o Arquimago. ―, mas ele pode produzir chamas conforme sua vontade. O suficiente para causar um incêndio, devo adicionar.
Ao que tudo indicava, o garoto dividia o corpo com um espírito capaz de criar e manipular chamas. Esse espírito, além de diversas outras coisas pouco compreensíveis, dizia ser um deus.
Ele, mesmo quando não desejado, várias vezes salvara a vida de Darl ― frequentemente ao detrimento de outras. Aparentemente, ele protegia seu "hospedeiro" para, assim, preservar a si mesmo.
O deus, uma vez, fizera uma promessa ao garoto, que chamava de "escolhido", e ao Arquimago. Tal promessa seria cumprida no dia de seu retorno.
Apesar de conviver, de muitas formas, com tal entidade há meio ano, o garoto pouco compreendia de suas palavras, mesmo quando as dizia em um idioma que entendesse.
― Isso pode provocar um caos generalizado na cidade. ―, acrescentou o general. ― Ou eliminar tropas inimigas posicionadas próximas umas das outras. Mas, antes disso, ainda devemos pensar em como entrar na cidade.
― O garoto pode voar. Além disso, como deve saber bem, visto o estado atual do nosso próprio muro, o portão de Alkerfell não ficará de pé.
Na noite retrasada, em um instante muito delicado e pouco pensado, Darl saltara do telhado do castelo para evitar a o destino da princesa que de lá caíra.
Possivelmente, sua consciência e corpo haviam sido tomados pelo deus, que salvara Eirkia, ao custo de ruir um trecho do alto muro de pedra que cercava o castelo.
― Por que soa como se ele pudesse tomar a cidade por conta própria? ―, questionou Szeidung, o gerente e conselheiro do antigo rei, assim como do atual.
― Porque ele pode. ―, sem hesitar, o Arquimago respondeu.
― Os gundordianos... ―, Hallerik parecia espantado. ― Eles possuem dúzias de armas como essa...?
― Não exatamente. ―, Heisondr ergueu um dedo. ― Veja, um espírito só pode usar magia de acordo com o quanto suas reservas restantes permitem. Quando elas exaurem-se, o hospedeiro é como qualquer outro humano, até que se regenerem outra vez. De outra forma, nenhum reino gundordiano ainda estaria de pé. No entanto, de todo modo, o espírito de Darldollum parece possuir reservas particularmente extensas, ao ponto que ainda não pude definir seu limite.
― Isso... parece perfeito. ―, o rei falava agora em um tom que parecia expressar alívio. ― Então já temos tudo que precisamos para acabar com a guerra... Já tínhamos há tanto tempo, mas não fizemos uso...
Eirkia, por sua vez, apenas parecia gradativamente mais inquieta. Ela tinha a mão em um dos braços, o qual apertava com tanta força que o tecido da manga de seu vestido talvez não se recuperasse da distensão.
Doía, sem dúvidas. Mas algo além de sua pele parecia doer mais.
― Talvez... ―, distante, continuava Hallerik. ― Talvez sejamos o reino khanlofiano mais poderoso... ―, até que retornou sua atenção àqueles diante de si. ― Posso contar com os dois para planejarem a melhor forma de combinar a força de Darldollum à dos soldados e magos de batalha?
Era curioso como todos ali faziam planos para o garoto, diante de seus olhos, sem sequer lhe consultar. Ainda assim, não era um sentimento estranho.
Seu futuro sempre fora decidido pela vontade dos outros.
― Há apenas um detalhe, meu lorde... ―, adicionou o Arquimago.
― Parecia bom demais para não haver um detalhe... ―, comentou o calvo conselheiro.
― Deixe que Heisondr explique, Szeidung. ―, o rei repreendeu antes de retornar ao velho mago. ― Qual é o problema?
― O espírito, em um dos últimos experimentos, exigiu que... deixássemos de abusar de seu poder. Ele agora recusa-se a manifestar sua magia quando pedimos.
Um desconfortável silêncio estabeleceu-se no salão. Nada era ouvido além do crepitar da grande fogueira que queimava em seu centro, atrás dos convocados.
Até que foi quebrado outra vez.
― Mas ele não o fez naquela noite? ―, indagou o rei.
― Como podemos fazer que coopere? ―, questionou o general.
― Ele fala?! ―, perguntou o conselheiro.
Todas as manhãs, após o desjejum, Darl acompanhava Heisondr a uma série de experimentos que, pelo que compreendia, tinham o objetivo de explorar os poderes do deus, assim como sua identidade.
Em uma das últimas ocasiões, quando fora instruído a tentar voar, o deus ordenada o garoto que comunicasse ao Arquimago que não mais utilizasse seus poderes aos próprios caprichos. Desde então, não haviam tentado sequer produzir uma pequena chama.
― Eu creio que o espírito tenha exigido tal por estarmos exaurindo suas reservas de Mana. ―, explicou o mago. ― É razoável. É também possível que esteja novamente restaurado até que cheguem ao cerco de Alkerfell. Mas mesmo assim não há garantia de que cooperará conosco.
― Então podemos simplesmente jogá-lo em meio aos inimigos ―, sugeriu Szeidung. ―, como os gundordianos fazem, não?
― Visto que eliminar nós quatro agora mesmo consumiria menos de sua força do que invadir uma cidade, não vejo esta como uma boa opção.
― Está dizendo que o espírito faria algo assim? ―, com os olhos arregalados, Hallerik questionou.
― Diferente dos casos que conhecemos dos reinos gundordianos, este espírito manifesta inteligência e vontade própria, além de se comunicar diretamente com o hospedeiro. Se ele julgasse-nos indesejados, não tenho dúvidas do que poderia fazer. Creio que ainda não se esqueceram de Lendal, não é mesmo?
Lendal era uma cidade ao sul, pertencente ao reino de Alken. Em suas redondezas, quando ainda viajava a Weidmar, cidade na qual reside no momento, Darl e o soldado que lhe acompanhava, Gundar, foram capturados.
O resultado dessa série de eventos eram memórias às quais o garoto não desejava retornar.
― Se ele pode nos ouvir ―, disse Aston. ―, então talvez possamos entrar em algum tipo de acordo?
― É uma possibilidade. ―, confirmou o mago enquanto alisava sua barba. ― Posso tentar estabelecer contato com ele em minha torre outra vez.
― De quanto tempo precisará? ―, perguntou o jovem rei.
― Menos de uma hora, acredito eu.
― Então nos encontraremos novamente aqui em uma hora. Estão dispensados.
...
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