Darl corria.
Ele corria sem destino, fugia porque temia o que deixava para trás. Horrorizava-se pelo que seus olhos haviam visto, e desesperava-se por não acreditar neles.
Era uma noite fria e com ventos fortes, mas seu peito fervia.
Ofegante e trêmulo, apoiou-se a uma árvore próxima entre muitas outras. Pressionou os dedos contra seu caule, como se se agarrasse com todos as forças restantes a qualquer objeto que lhe trouxesse de volta ao mundo que sempre conhecera.
Podia sentir a textura da madeira tão vividamente quanto se visse pela palma da mão. Além das sólidas lascas vegetais, algo pegajoso parecia prender-se a seus dedos. Darl ergueu a mão ao seu campo de visão.
Havia sangue nela.
Sua cabeça latejava, pulsava junto ao coração que reverberava como se quisesse abandonar seu peito.
O garoto podia ouvir apenas o farfalhar das folhas, as batidas de seu coração, e a sua própria ofegante respiração, mas sentia como se seus ouvidos fossem romper-se.
Virou-se para trás.
Distante, por entre os pinheiros e arbustos, na escuridão, cintilava um fraco brilho avermelhado. Ele marcava o local onde queimava seu lar, onde chegava ao fim a única vida que conhecera por toda sua breve existência.
Pensou em retornar. Para todas as demais direções havia apenas escuridão, mas o mundo diante de seus olhos podia guardar alguma esperança. Talvez todos estivessem lá, respirando, seus corações a bater.
Sua família; seus pais — as únicas pessoas que viviam neste bosque, escondidas do exterior.
Talvez fosse recebido com um abraço, e suas lágrimas enxugadas como todas as vezes que tivera medo.
Talvez vivesse mais invernos diante de uma aconchegante lareira ouvindo histórias de seu pai, mesmo que com medo de a comida acabar antes da primavera.
Talvez vivesse mais verões coletando frutas do arbusto que crescia atrás da cabana com a mãe, até que seus galhos perderem a cor com o outono.
Mas este foi seu último dia em seu pequeno lar.
Ouviu algo. Um ruído, um rosnar. Sua fonte não estava distante.
Darl rapidamente virou para o lado, e lá estava um par de olhos reluzentes, no escuro, a alguns passos de distância. O garoto conhecia aqueles olhos — estava diante de um lobo.
Ele estava diante de uma fera, sem qualquer proteção. A revelação fora rápida demais para que tivesse a chance de temer pela própria vida.
O animal caminhou lentamente, com passos curtos. Não se movia em direção ao garoto paralisado, mas mantinha a mesma distância a todo momento. Circundava-o.
Apenas quando estava entre Darl e seu distante lar, cessou seus passos.
O garoto já estivera na presença de lobos antes, mas apenas sempre também na companhia de seu pai, que afugentava os animais com fogo. Neste momento, entretanto, estava por conta própria, e a única chama à vista estava distante, fora de alcance, atrás da fera com presas à mostra.
Seus pés pareciam presos ao chão como as raízes de um velho carvalho, mas seus joelhos tremiam como os galhos de um ressecado arbusto ao vento invernal. Ele precisava deixar aquele local.
Devia correr, mesmo que seu único caminho fosse a escuridão.
Conseguiu mover um pé, que remexeu a terra e as folhas no chão. Porém, como em resposta ao movimento, o lobo levou uma pata adiante.
Darl correu. Não olhou para trás, mas sabia que está sendo seguido.
O vento congelava seu rosto de dentes cerrados e secava suas lágrimas.
Tentava mover um pé mais rápido do que podia manter o equilíbrio com o outro. Desviava-se, com as mãos, das árvores que apareciam em seu curto campo de visão.
Apesar do empenho, também se preparava para receber garras às costas e presas à nuca. Podia acontecer a qualquer momento.
Aconteceria a qualquer momento.
O garoto tentou olhar para trás, mas apenas teve a vista desviada antes de avistar seu perseguidor. Todo o mundo pareceu girar.
Em um piscar de olhos, tinha terra e folhas secas em seu rosto.
Desprovido de qualquer senso de orientação, tentou pôr seu peso sobre os braços, mas o céu e o solo pareciam alternar de posição a todo instante.
Sacudiu a cabeça e levou os braços para baixo do peito. Sentiu que seu perseguidor podia saltar sobre suas costas a qualquer momento. O mero pensamento trouxe um frio horripilante à sua espinha coberta de suor.
Quando se levantou, a primeira coisa que seus olhos viram foi uma longa haste de madeira.
Era um forcado. Seus dentes prendiam a uma árvore uma figura cujo peito perfurava.
Era uma pessoa.
Foi a primeira vez que Darl tivera a chance de ver um ser humano além de seus pais, pelo que podia lembrar-se. E este alguém já estava morto.
Seja lá quem fosse a pessoa, não mais respirava, de toda forma. Por quem fora assassinada de pouco importava. Não era hora para luto
Porém, ainda podia exercer alguma função após sua morte.
Sem ter convicção na coerência de seus pensamentos, e sem sequer olhar para trás e checar a distância de seu perseguidor, Darl segurou a longa haste de madeira do forcado com ambas as trêmulas mãos.
Temendo não ter força o suficiente nos braços para cumprir o que talvez fosse sua última tarefa em vida, apoiou um pé no peito do que um dia fora um homem e puxou a ferramenta.
A força exercida, contudo, foi consideravelmente maior do que o necessário, e o forcado deixou o corpo facilmente demais. O jovem perdeu o equilíbrio novamente e seu corpo caiu para trás.
Um odor podre parecia tomar o ar, mas Darl não podia preocupar-se com o que sentiam suas narinas. Tentou levantar-se o mais rápido possível, mas não conseguiu. Era como se algo segurasse seu corpo.
Antes de registrar qualquer dor, teve a impressão de ter a perna sacudida.
Não havia tempo para pensar, nem a necessidade. Uma mente desesperada é todo incentivo que um corpo em apuros precisa.
Quando se deu conta, Darl já estava sentado no chão e, sobre seu pé ensanguentado, havia um lobo com quatro dentes metálicos fincados no torso.
Seu corpo sofria espasmos, suas pernas sacudiam como se tentassem correr, mesmo que suas patas não tocassem o chão.
Apenas quando seus olhos aceitaram a cena diante de si, uma dor terrível tomou o tornozelo do garoto.
Respirava rápida e pesadamente. Sentia como se seus pulmões desejassem por mais ar do que era possível respirar.
Largou o cabo de madeira.
Puxou o pé com o tornozelo ferido para perto. Sem qualquer coragem para encarar a ferida ensanguentada, apenas pressionou o tornozelo com as mãos.
Pouco a pouco, os movimentos do lobo tornaram-se mais lentos. A vida esvaía-se de seu corpo.
Darl não podia crer no que via, no que lembrava. Talvez pensasse, em uma ocasião diferente, que acabara de executar um feito memorável.
Mas seu coração negava até esse pensamento.
Lágrimas escorreram por suas bochechas e ofuscaram sua já precária visão noturna.
Sentiu que tentou dizer algo, mas foi interrompido por um soluço, apesar de pensar haver tido nenhuma palavra em mente.
Enquanto encarava o corpo do animal de pelos cinzentos desprovido de vida, uma estranha desconfiança ocorreu-lhe. Não havia um alívio pela morte de seu perseguidor, mas a impressão de que algo fora esquecido.
Uma coisa que seu pai ensinara-lhe era que lobos não costumavam caçar sozinhos.
Com uma agilidade desproporcional a seu estado, atirou seu corpo para o alto com as mãos e pôs os pés no chão.
Sentiu uma dor perfurante no tornozelo previamente mordido, e foi forçado a ajoelhar novamente. Mesmo assim, girou seu corpo enquanto corria seu olhar pelos arredores.
Seu campo de visão encontrou outro um par de olhos brilhantes. Desta vez, entretanto, seu dono não estava parado, mas em meio a um salto.
Um salto em direção a uma fina garganta desprotegida.
— Dulendai-yu dai Sanvituz ue. —, ecoou uma voz suave, e o mundo tornou-se suave também.
A noite não era mais tão escura, o lobo não era mais tão ágil, a ferida não era mais tão dolorosa.
A morte não estava tão próxima.
Antes que os dentes do predador alcançassem sua indefesa presa, a mão desta atacou primeiro.
Darl tinha um lobo preso a seu braço. Uma mão brotava das costas peludas tingidas de sangue. A resistência durou apenas alguns instantes.
A fera estava morta.
O rosto do garoto contraiu-se. Parecia procurar pela expressão adequada à situação, como alguém que retornava a uma atividade após anos afastado.
Os músculos de seu rosto encontraram a forma desejada. Sua boca moldou-se em um sorriso, que contrastava com as lágrimas em seus olhos e sangue em suas mãos.
Dor e prazer cantaram em uníssono.
E sua silenciosa melodia ecoou junto ao vento naquela noite escura.
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