Às vezes, era tão calmo na floresta, que era difícil associá-la ao pandemônio agressivo contra a civilização que as pessoas de fora costumam associar a ela. Quase não havia ruídos em volta para dar aquele tom fabuloso de um ambiente vivo e enérgico, talvez porque na cabeça da maioria das pessoas, um lugar barulhento e fedido, era um lugar “civilizado”, um lugar propício a pessoas inteligentes e respeitáveis era um lugar onde mendigos e cães mijavam nos becos, onde carroças carregando comidas, cerâmicas e pessoas, faziam barulho com o atrito das rodas de madeira no chão de pedra, e passavam o tempo inteiro ao lado de transeuntes e cavaleiros, um lugar onde todos estavam cheios demais de seus próprios dilemas e negócios para prestar atenção nos mortos de fome pedintes nas calçadas ou o seu vizinho bêbado se afogando nas próprias angústias, apenas esperando pelo momento em que finalmente lembraria daquela Corda velha que havia em seu porão, prontinha para laçar seu pescoço.
Mas era diferente ali no meio da floresta, aquele imenso mar de árvores e colinas que abraçava a tribo de todos os lados, o som ambiente era afagado por cantos de pássaros diurnos esticando os músculos para mais um dia de atividades, o estalo ocasional da madeira dos troncos, e o chacoalhar das folhas devido a alguma brisa vinda dos ventos do norte. E ocasionalmente também, o farfalhar dos arbustos por causa dos pequenos animais se esgueirando por ela, tentando evitar ao máximo os inúmeros perigos que poderiam abocanhá-los.
E como eles, havia outros seres que se levantavam das tocas para começar suas tarefas de sobrevivência, humanos, de peles avermelhadas, com padrões triangulares verdes pintados em faixas percorrendo seus braços e ombros, vestindo roupas curtas feita de peles de animais curtidas e materiais vegetais trançados, em forma de saiotes longos adornados por penas e faixas coloridas.
De pouca cautela eles saíram aos poucos das cabanas de terra, barro e taipa para percorrer o campo de terra aberto em volta do complexo de cabanas para se reunir com os outros.
Alguns homens foram os primeiros a se reunir onde logo, seria preparada uma curta refeição conjunta, lanças começaram a ser recolhidas de um deles, que as carregavam enroladas num pedaço de couro curtido, eles começaram então a amolar as pontas de metal com placas de cobre numa roda, enquanto sentados de pernas cruzadas e comentavam coisas do dia a dia, os planos da caça e sobre outras besteiras do dia a dia.
Depois de algum tempo, o segundo grupo de homens mais jovens e outras mulheres começaram a montar e aprontar o fogão a lenha de cerâmica na tenda aberta no meio do círculo de terra, trazendo pedaços de madeira daqui e ali e as panelas de cobre. A cozinha coletiva estava se aprontando. Muitos outros dos moradores também saíam de suas casas, acompanhados de seus irmãos ou pais, carregando cerâmicas com água, grãos e outros materiais para o grande desjejum da tribo.
Aos poucos, as vozes humanas se fundiram ao som ambiente da natureza, de uma forma não tão harmônica, mas sucinta. Idosos se levantaram, e com sua alta experiência contrastando com corpos cansados, começaram a curtir o couro recentemente conquistado pelos caçadores enquanto ficavam de olho nas crianças, as ensinando a fazer aquele tipo de tarefa ao mesmo que dando suporte às mulheres.
Assim todos se ajudavam, começavam o fluxo diário de ações necessárias para manter aquela área humana viva e próspera, uma luta calma sobre sua sobrevivência, a convivência. Era assim todos os dias e como neste e como no seguinte, ou poderíamos dizer que seria, se alguém estivesse já rondando a área e ficasse atento aos sutis sinais ao redor do movimento dos corpos estranhos. Havia um farfalhar não natural misturado com os estalos e barulhos de madeira e atrito entre as folhas, os pássaros silenciaram o canto repetitivo e voltaram seus olhares para o interior da selva, enquanto acima das copas e nos galhos mais altos, calculavam o que estavam sentindo se aproximar, e se aquilo merecia uma oportunidade de fuga.
O som de folhas de galhos endo esmagados enquanto eles avançavam foi aumentando, e conforme isso, a tensão invisível das pequenas criaturas em volta crescia junto, até chegar ao ponto em que a sensação de ameaça sobrepujou a curiosidade. As pequenas aves coloridas alçaram voo apressado para as copas de árvores mais distantes, fugindo da linha invisível que os estranhos percorriam, como se perfurando seu caminho para dentro da floresta, contrastando ridiculamente com o ambiente devido às suas roupas claras e máscaras de gás cinzentas. As peças de metal de suas armaduras leves tilintavam, assustando pequenos roedores para dentro de suas tocas, e agora apenas pequenos primatas observavam o grupo de dezenas de homens com cabelos claros e máscaras assombrosas de metal e polímero invadindo a flora, despertando naquela manhã, carregando pesadas e estranhas armas nas mãos, ligadas a um bulbo cilíndrico e metálico em suas costas, presas por correias de couro no tórax e ombros.
Do outro lado, há algumas centenas de metros apenas, algumas crianças observavam com tédio o céu que perscrutava a clareira através das densas copas de árvores ao redor, e com curiosidade acompanharam os grupo de aves voando apressadas para o sul, com surpresa, elas apontaram para seus avós com palavras animadas, mas daquela vez, os velhos de mãos calejadas curtindo a pele dos animais se voltaram tão curiosos quanto as crianças, não sabendo responder exatamente o que ocorria, mas possivelmente não significava nada demais, e logo voltaram trabalhar, dando algumas desculpas incertas para as crianças.
E em volta deles, os adultos e jovens já estavam absortos demais em suas tarefas para pestanejar pelas aves voando, pelos pequenos animais se escondendo, e pelos predadores tomando distância dos eventos anormais que chacoalhavam a floresta.
E por isso, sua história terminaria em mais uma mancha vermelha no meio de um mar verde sereno.
Quando os barulhos agitados da flora sendo afastada e cortada por facões abrindo caminho por entre arbustos chegaram até eles, apenas alguns jovens atentos no meio da preparação do carvão perceberam e fitaram naquela direção, mas vinha apenas da área norte, também ao sul e oeste, em volta da tribo, as manchas claras que não deveriam estar ali se aproximavam. Com um pouco mais de moral, os adultos se atentaram ao que os jovens apontavam, quando olharam naquela direção, viram tarde demais as últimas samambaias e arbustos sendo partidos por lâminas curtas e os soldados de máscaras sombrias adentrarem o território deles.
Cem anos, era o que mais ou menos tinha de tempo que eles haviam se instalado naquela área, e agora, eles teriam tudo roubado de si. Sem dar chances para que houvesse uma rota de fuga que os homens mais velhos pudessem criar, para que as crianças e idosos escapassem, eles começaram a se espalhar rapidamente, de forma disciplinada, em volta da área, os mais jovens começaram a correr junto as mulheres até os homens mais velhos, os idosos correram para as tendas arrastando as crianças consigo, os homens dispararam para a cabana onde haviam guardado suas armas, espantados e confusos com a aparição repentina, mas era atarde.
Os soldados de branco apontaram suas armas na direção das casas e dos nativos, e em segundos, aqueles canos metálicos frios e sem alma esquentaram, cuspindo labaredas vermelhas imensas, que lamberam a tribo num círculo fechado. Instantaneamente, as casas mais próximas começaram a se incendiar, a madeira e taipa que as constituíam eram como óleo na fogueira.
Ainda em sua corrida, as mulheres assustadas foram escoltadas pelos homens mais velhos enquanto os jovens se reuniam a eles para pegar em armas, e o círculo de soldados se fechava enquanto isso, aproximando as línguas de fogo cada vez mais do centro da tribo. Alguns nativos começaram a sair correndo da cabana, com os saiotes de palha em chamas, um fogo que se espalhava por seus corpos, eles se jogavam no chão Rolando na terra para apagar, e os soldados, determinados a cumprir sua função, atiraram à queima roupa as labaredas neles, arrancando o oxigênio de seus pulmões e gritos de dor excruciante. Ao Leste, a maioria das casas estavam se incendiando, sendo cercados, os idosos fizeram as crianças correrem mais para o centro, enquanto o fogo lambia suas costas.
Os homens pegaram em armas e começaram a avançar na direção dos soldados, que atiraram as chamas neles como se estivessem queimando um canavial, seus corpos incendiados caíam em gritos desesperados por causa da dor intensa, os que mais se aproximavam, eram atingidos pelos que estavam na retaguarda, segurando baionetas. Os incendiários de máscaras continuavam avançando e queimando tudo e todos, os poucos homens que sobraram tentavam reunir as mulheres e crianças para forçar uma rota de fuga através da formação dos soldados, mas aquelas vermelhas e macabras labaredas seguiam imponentes engolindo mais e mais a tribo, muitas cabanas se resumiram a fogueiras e colunas de fumaça, esta que estava se espalhando e roçando seus dedos negros por toda a parte, engolindo o pouco oxigênio que restava, se não fosse pelo calor, a falta de ar os mataria.
Em meio ao desespero, alguns saíram dos pequenos grupos que se formaram e correram, almejando a floresta, mas a última coisa que viram foi uma vermelhidão intensa, antes do fogo os consumir, e só haver dor, dor excruciante por todo o corpo, e uma falta de ar intensa.
Lágrimas de queimação e desespero encheram os rostos das crianças, vendo suas casas e pais queimarem até a morte, e além da nuvem negra de fumaça, estavam os homens de branco, com seus olhares malévolos cobertos por uma máscara sem alma, apontando na direção deles canos de metal refletindo a luz avermelhada do fogo. Sem nenhum remorso, seus dedos enluvados de polímero estavam preste a puxar o gatilho e carbonizá-los, até que uma flecha atravessou o pescoço de um deles.
Ele caiu duro no chão, soltando gemidos engasgados, segurando seu pescoço com nervosismo, os homens olharam na direção do seu aliado caído, de expressão coberta pelas máscaras, preocupados com a quebra da formação, e ouvindo mais gritos de emergência, olharam na direção de onde ela havia vindo. Era onde os soldados de baionetas apontavam e disparavam, o som do crepitar dos corpos e casas queimando eram ofuscados pelo estouro dos tiros, que pareciam sumir para dentro da selva.
Seus olhares se perdiam dentro dela, uma densidade tão grande a fazia escura e difíceis de se entrar, menos para aqueles que viveram suas vidas inteiras nelas. Com temor, eles mudaram sua formação para falange, cercando tanto a tribo quanto formando uma barreira entre a área oeste e a selva. Foi então que mais flechas assoviaram de dentro da selva para chover em cima deles. Mais tiros de baionetas saltaram, porém, as flechas não foram completamente interceptadas por suas armaduras, muitas habilmente atingiram-nos nos pescoços e ombros, em resposta, enviaram uma onda de fogo pra cima da selva, sem temor de provocar um incêndio florestal que os engolisse, mas não houve resposta outra vez, elevando a tensão, até que de todas as direções, nativos montados em grandes lobos saltaram na área e agora, eram eles quem faziam o cerco.
Incapazes de acompanhar sua velocidade, os soldados de baioneta só puderam tentar apontar e atirar nos nativos, enquanto acertavam alguns, um por um se viu empalado pelas longas lanças que carregavam, do topo das árvores, os arqueiros enviam mais uma onda de flechas precisas que os derrubaram, e logo, penetrados pelas lanças e flechas, manchando seu uniforme branco de com vermelhos, os soldados foram de forma continua prensados em si mesmos e eliminados um a um, incapazes de acompanhar a estratégia de bater e correr do inimigo, e sem uma preparação boa para derrubar os lobos cinzentos que eles montavam, sem serem capazes de correr pelo peso de seu equipamento, os lançadores de chamas eram derrubados pelos arqueiros.
Confusos e assustados, os poucos que sobraram da tribo começaram a se afastar do centro da tribo, buscando a área oeste, onde a luta era menos intensa, até que um lobo cinzento cortou seu caminho, parando a frente deles, as crianças se agarraram aos jovens e as mulheres com medo, enquanto eles os cobriam com as costas. Acima do lobo, o nativo lhes gritou se eram os últimos, e eles responderam que sim. Rangendo os dentes, o homem acima do lobo então desceu e os fez seguir o grande lobo cinzento até dentro da selva, onde encontrariam ajuda. Ignorando as súplicas e agradecimentos, ele seguiu com a lança nas mãos pelo fogo intenso e recente até as casas que já haviam desabado pela estrutura ruída pelo fogo, em busca de qualquer outra pista de sobreviventes, e não demorou para encontrar, no final da área sul.
Encontrou um corpo caído, um idoso, se aproximando, percebeu que ele abraçava algo menor, uma criança, indelicado, ele virou o corpo e viu olhos esbugalhados de medo com um ferimento de bala na nuca, morto por uma arma de fogo enquanto corria, provavelmente, mas ainda preocupado, ele afastou o corpo do idoso e afastou então o corpo da criança que ele abraçava com todas as forças. Não havia ferimentos nela, apenas uma queimadura leve no ombro, mas estava respirando, apenas desacordada.
Rangendo os dentes em fúria cega, ele colocou a criança nos braços e se levantou, a carregando até o seu liado mais próximo, para ajudá-lo a levar a criança até longe daquela luta e pudesse procurar por mais alguém que estivesse vivo no meio daquele incêndio infernal.
Jurando que nenhum dos homens de branco sairia vivo daquela selva, ele gritou para seus aliados e correu.
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