Eugene andava de um lado para o outro, desviando de plantas aqui e ali. A luz do Sol entrava pelos vitrais amarelos, pintando a estufa ainda mais, como se a cor presente em todas as flores ao redor já não fosse o suficiente.
Lazuli ainda não havia chegado, mas atraso não lhe era algo raro. O nervosismo de Eugene não estava ligado ao treinamento que se iniciaria assim que o Dracae chegasse. Não, sua ansiedade estava nas alturas por conta do pedaço de papel guardado embaixo das margaridas perto da porta. A carta de um morto.
As circunstâncias não eram boas para Eugene, que havia descoberto seu papel no universo pouco mais que dois meses atrás, quando fora atacado por um monstro em um beco, algo que certamente não deveria existir. Quando descobrira que sua esquizofrenia não era real e que o mundo era mais do que parecia. Quando seu melhor amigo havia se confessado um mero guarda-costas, que não queria o posto que ocupara desde os dez anos. Quando Eugene se vira, pelo que parecia ser a primeira vez, sozinho no mundo.
Sozinho entre aspas, claro. Havia gente ao seu redor. Não exatamente pessoas, mas ele não estava na posição de reclamar. Se perguntava se poderia considerar todos eles seus amigos, principalmente depois de receber uma carta desesperada de seu falecido tio, o homem que ocupara seu lugar antes de partir desta para melhor. Palavras escritas apressadamente em uma folha de caderno pediam-lhe para não confiar em ninguém.
A porta se abrira, fazendo com que Eugene parasse de andar subitamente. Ele respirou fundo, franzindo o cenho e tentando não demonstrar toda sua desconfiança quando se virasse e encarasse os olhos leitosos de Lazuli.
― Laz! ― Ele sorriu, colocando as mãos nos bolsos do moletom.
― Por que está nervoso? ― Perguntou o Dracae, franzindo o cenho.
― Eu não estou nervoso. ― Ele disse, encarando o chão. Soltou um suspiro. ― É só… um dia ruim, só isso.
Não era uma mentira. Aquele havia sido um dia péssimo, principalmente pelo papel escondido na estufa. Ele mordiscou os lábios, lançando um olhar para as margaridas que agora pareciam estranhamente suspeitas. Lazuli pareceu não notar o amarelo culpado das flores, pois quando seus olhos se desviaram para onde a atenção de Eugene fugira, seu rosto continuou sem expressão nenhuma.
(O que provavelmente não era um sinal tão positivo assim, considerando que Lazuli raramente tinha expressões faciais.)
Lazuli era a pessoa encarregada de supervisionar o treinamento de Eugene, físico, mental e espiritual. Aparentemente, todos eram necessários para que ele pudesse efetivamente ser considerado uma Ponte pelos povos mágicos que habitavam aquela terra. Eles não podiam se contentar com um adolescente ansioso arriscando a vida? Não, queriam fazê-lo passar por um inferno tedioso, conhecido como escola. Claro, era uma escola especial, mas fazia alguma diferença? Se Eugene estava dentro de uma sala, tendo aulas, ele chegava à conclusão que não, não era.
Lazuli era uma… um… um ser de gênero ambíguo. Um Dracae, de estatura baixa e cabelos curtos e brancos. Seus olhos eram inteiramente brancos, adornados por longos cílios de mesma cor. Suas sobrancelhas eram grossas, mas extremamente bem cuidadas. Sua pele era morena, causando um contraste interessante entre as cores de seus pelos e cabelos e a tez escura.
Não havia muito que Eugene soubesse sobre Lazuli. Era o tipo mais raro de Dracae que existia, parecia não sentir emoções e tinha o péssimo hábito de derramar sarcasmo sempre que encontrava os irmãos Raziel, gerando uma batalha passivo-agressiva que era tanto interessante quanto estressante. Era uma pessoa bem calada, mas não poupava esforço para irritar os irmãos, o que Eugene achava um tanto curioso.
Também havia o irritante hábito que tinha de superestimar as habilidades de Eugene na frente dos outros, como se fosse uma competição constante entre representantes para ver quem tinha a ponte mais poderosa.
Eugene se sentia como uma mulher, sendo objetificado daquela maneira.
― Hoje te levarei à Hoploteca. ― Disse, despertando o garoto de seus pensamentos.
― Saúde. ― Ele disse, franzindo o cenho. ― Isso é algum tipo de cidade perdida, comida…?
― Arsenal. ― Disse, dando meia volta, se dirigindo à porta. Naqueles dois meses, já havia se acostumado a traduzir seus termos exóticos para Eugene, que não tinha tantos conhecimentos linguísticos assim. Ele era somente o pintor, a posição de poeta era de Dallon.
Seu peito se contorceu ao lembrar daquele nome, que insistia em vir junto dos olhos azuis e dos cabelos escuros, do raro sorriso que parecia capaz de acabar com todas as guerras do mundo. Eugene passou a mão por seus cabelos loiros, soltando um suspiro, sem nem perceber as margaridas quando passara pela porta da estufa, fechando-a atrás de si.
Conhecera Dallon Jean Miguel Souto aos nove anos, no parquinho da escola. Não fora um momento muito gracioso para Eugene, que se debulhava em lágrimas por causa de um joelho ralado. O outro o acalmara e o carregara para a enfermeira, que colocara um band-aid colorido no machucado e sorrira para ele. Eugene sempre fora uma criança ansiosa, e se Dallon não o tivesse levado até ela, ele nunca teria a coragem para fazê-lo.
Os dois se tornaram amigos rapidamente. Dallon era um ano mais velho que Eugene, e por isso os dois não compartilhavam aulas, mas sempre se encontravam durante o recreio e brincavam juntos. Dallon parecia ter uma preferência em brincar de astronauta, e Eugene logo acostumou a interpretar o alienígena da história. Aliens eram legais, no final das contas.
Dallon fora o primeiro e melhor amigo de Eugene, e descobrir que aquela amizade crescera simplesmente por uma obrigação da parte do moreno era algo absurdo, e quebrou o coração do loiro. Tantos momentos compartilhados juntos, que agora só pareciam memórias implantadas em seu cérebro por uma sociedade mágica cruel.
Ele não queria acreditar naquilo, mas, honestamente, Dallon não parecia estar brincando quando disse que não queria vê-lo nunca mais e que ele era uma pessoa extremamente irritante. Seus olhos azuis e frios não deixaram espaço para que Eugene e duvidasse daquelas palavras, seu rosto contorcido em desgosto não era uma atuação. Pelo menos, não parecia.
Eugene tentou se afastar daqueles pensamentos antes que ele tivesse um ataque.
Ele seguia Lazuli pelos corredores do Pontum Sanctum sem realmente prestar atenção aonde ia. Aquele lugar era imenso, e se os dois acabassem em uma porta desconhecida por Eugene, que quase morava lá, ele não se surpreenderia. Não tivera muita animação para explorar o local desde que aprendera a criar portais pra lá. Ele passava seu tempo livre na estufa, cuidando das plantas e lendo os livros que Lazuli lhe dera, ocupava momentos que seriam impregnados por pensamentos obscuros caso sua imaginação ganhasse muita liberdade. Como dizem, uma mente vazia é a oficina do diabo.
Eugene suspirou novamente, algo que fazia muito, ultimamente. Encarou as costas do Dracae à sua frente, cobertas por tecido índigo, adornado por detalhes em linha dourada. A moda daquela terra era com certeza diferente da moda no mundo humano, mas era interessante à sua própria maneira. Com o tempo, Eugene havia percebido que cada uma das raças parecia ter um estilo diferente. O estilo Dracae consistia em blusas que mais pareciam coletes bem apertados, com o fecho atrás, e calças de cós alto, folgadas até os tornozelos, onde eram presas por faixas, como um tipo de calça ninja. Pelo menos aquelas peças de roupa eram as mais recorrentes, mas Eugene tinha de admitir que não passeara muito pelas ruas para conhecer Dracae, sabe, normais.
Lazuli e os outros que conhecia não eram, em universo algum, normais. Eles eram máquinas mortíferas que dariam pesadelos em Eugene caso não estivessem do mesmo lado. Godric, seu professor de história e política, era um estrategista militar treinado para matar silenciosamente; Narcissa, a encarregada a ensiná-lo cura e coisas do tipo, era também uma lutadora, do tipo que cuidaria de você e trataria suas feridas só para te espancar de novo; Dante era um cara misterioso, com bíceps do tamanho da cabeça de Eugene, e se aquilo não dava medo, o loiro não saberia dizer o que realmente dava.
― Por que estamos indo à Hiplo…. Hipo… ao Arsenal? ― Ele perguntou, tentando afastar aqueles pensamentos de sua mente. ― Eu vou ganhar minha arma hoje?
― Não se ganha uma arma, Eugene. Se merece uma. ― Lazuli respondeu, sem se virar.
― E…. Eu mereço uma? ― Ele arriscou. O Dracae parou repentinamente, fazendo com que Eugene, distraído, se chocasse contra suas costas. Imaginou se não fora algo que dissera, mas a voz rouca de Laz logo tirou-lhe as preocupações.
― Vamos descobrir. ― Disse, colocando as mãos em uma porta de aço que aparentava não ter fechadura. Aquilo era muito comum para os Dracae, abrir portas sem maçanetas e tal. Um tanto irritante, se você perguntasse para Eugene.
Uma luz azul brilhara da ponta dos dedos de Lazuli, espalhando-se pelo metal como calor. Magia era uma sensação estranha, pelo menos para o loiro. Talvez fosse pelo fato de que literalmente aprendera o truque algumas semanas antes, depois de uma conversa em um plano de existência distinto, com sua falecida avó. Ela sabia das coisas.
Era uma sensação quente, para Eugene. Calor percorrendo por suas veias, aquecendo sua pele. Quando usava magia, parecia sentir cada célula de seu corpo, o que era um tanto desconfortável. Estava se acostumando, pouco a pouco.
― A Hoploteca é um local compartilhado, talvez outros representantes ou pontes estejam aqui. ― Lazuli disse. Sempre que havia uma chance, mesmo que mínima, de Eugene encontrar Dallon, o Dracae fazia questão de avisá-lo. Ele era grato, mas também ficava inclinado a pedir que Laz parasse, já que nunca conseguia focar naquelas situações, sempre imaginando o garoto entrar pela porta e encará-lo com aqueles olhos frios e nostálgicos...
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