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sereno [PT-BR]

1.1

1.1

May 30, 2025

Por mais que tente negar, talvez Gustave Martin esteja passando por uma crise de meia-idade.

Tudo bem, ele está na idade ideal para isso — geralmente, ocorre lá pelos trinta e tantos anos, né? Mas na humilde opinião do próprio, ele nem aparenta tudo isso. Seu cabelo ruivo continua bem cheio, sem ameaça de cair, e sua barba ainda está tão grossa quanto no dia em que decidiu parar de fazê-la frequentemente. Além disso, o afinco que dedica à sua rotina de exercícios também não permite qualquer problema com os músculos bem definidos que encaram ele de volta toda vez que se olha no espelho. A genética dele é boa, também — não é tampinha, nem magrelo. Sua pele ainda está bem firme, e seus olhos azuis sempre foram elogiados onde quer que fosse. Gustave é um cara bonito, sem discussão. E sem modéstia, claro. Afinal de contas, trinta e sete anos não é tão velho assim.

Apesar disso tudo, a cabeça dele não consegue acompanhar o resto do corpo: ele não está tão bem quanto aparenta. Não ajuda que nos últimos seis meses, ele se divorciou, pediu transferência no trabalho, se mudou de província, alugou um apartamento pequeno numa área burguesa, e adotou um cachorro. Não necessariamente nessa ordem.

Na verdade, o cachorro até que ajuda, sabe? E apesar do tamanho, a casa nova até que é bem confortável. Só a separação que não foi por vontade própria… não que esteja reclamando — antes divorciado do que corno manso, com certeza. Ele sempre teve a decência de só trair a mulher em lances aleatórios, nunca foi atrás de nada que exigisse comprometimento. Ela, pelo outro lado, achou de bom tom arranjar um namorado fixo pelas costas dele.

Bem, ela pode namorar qualquer homem que quiser sem maiores problemas, então o argumento acaba ficando a favor dela. Gustave deveria ter arranjado uma lésbica quando inventou de querer se casar, mas aí também foi idiotice dele. Foi ele que jurou que conseguiria aguentar viver com uma mulher. E olha que, a princípio, fez tudo certo! Arranjou uma casa legal para eles, nunca deixou faltar comida na mesa, todo mês comprava as bugigangas ou roupas bregas que ela pedia. Eles se respeitavam, costumavam conversar de boa um com o outro. Ela só foi escolhida para ser esposa dele porque já eram bons amigos, para começar. 

E acima de tudo, ela nunca descobriu que ele é gay. Nem ela, nem ninguém. Até porque isso não é da conta de mais ninguém mesmo, tirando os caras que ele chama no privado. Tá aí outra novidade: usar aplicativos de pegação ao invés de ficar enrolando no banheiro da academia até aparecer alguém. Muito mais conveniente, bem menos perda de tempo. Zero charme, mas foda-se. Ele só precisa de umas rapidinhas para compensar os últimos meses.

Tudo bem, caralho, pode ser sim uma crise de meia idade, Gustave conclui, virando o resto do café num gole só. Ninguém que bate bem da cabeça fica pensando nessa quantidade de merda antes das seis da manhã numa segunda-feira.

Buddy, abençoado seja o bichinho, começa a latir e abocanhar seus calcanhares, forçando-o a levantar e terminar de se arrumar. Ele tem uma série para malhar e trabalho a fazer depois, mesmo que, na maior parte do tempo, isso se resume em mexer no celular enquanto finge que está analisando documentos e preenchendo formulários.

Uma das melhores coisas na cidade de Quebec, até o momento, é como tudo é tão calmo que quase beira ao tédio. Apesar de ele viver numa vizinhança relativamente movimentada e intranquila em relação ao resto da área, ainda é bem pacata em seus acontecimentos mais graves. É um assalto aqui, uma briga ali, nada muito grave. Mal tem quem precise apelar para o suborno, o que é um pouco triste, mas dá pra aguentar. Considerando que ele também não precisa ficar acompanhando nem intimidando ninguém, a situação compensa. Se ficar chato demais, é só pedir outra transferência; com certeza, vai ter alguém útil devendo algum favor a ele quando a hora chegar. Se não aqui, ainda tem em Montreal. Gustave não vai deixar que se esqueçam disso.

E por mais que ele reclame por horas a fio, foi isso mesmo que ele pediu. Uma vida mais lenta, uma equipe menor para lidar, uma mudança de ritmo muito necessária. Ele já está ocupado demais tentando reorganizar a própria vida; o emprego não precisa ser mais uma obrigação martelando na cabeça dele, por mais vagabundo que isso pareça. Por hora, o que ele tem em mãos é mais do que o suficiente.


Esse é um sentimento lindo no papel, mas nunca se manifesta na prática. Assim que chega na delegacia, Gustave percebe uma movimentação anormal: o pessoal do turno da noite ainda estava trocando de roupa quando entrou no vestiário, há uma pequena porém nada convidativa pilha de papeis em cima da mesa dele, um cheiro de café inundou o escritório, e a chefe dele com certeza não chegou lá há apenas quinze minutos. Na verdade, parece que ela dormiu bem mal, se é que passou mais de três horas na cama. O coque que prende seus cabelos loiros ainda está no lugar, mas alguns fios já caíram sobre seus olhos claros. Apesar do uniforme impecavelmente passado e das botas lustradas à perfeição, sua postura não carrega o vigor de sempre. E ao invés de cumprimentá-lo com um “bom dia”, Lisa apenas pergunta: 

— Comeu direitinho agora de manhã? — E aponta para uma caneca fumegante. — Bebe, que a gente vai precisar.

A reação é involuntária: uma sobrancelha de Gustave se arqueia, genuína em sua curiosidade. O que foi que aconteceu pra esse buraco que eles chamam de posto estar tão movimentado? Veja bem, não é só pela delegacia ser pequena, mas o prédio já não vê manutenção há um bom tempo. Não é surpresa, visto a pouca importância do local: é uma portinha no meio do distrito universitário, estrategicamente localizado no meio do caminho entre vários campi — em termos práticos, isso se traduz numa rotina que se resume em catar pivetes, acalmar barracos, e dar sustos em playboys chapados. Mas dado o jeito que os lábios finos de Lisa se contorcem enquanto ela faz anotações, deu merda de verdade para alguém.

Sentando-se à mesa, Gustave toma um gole quase exagerado de café antes de suspirar:

— Manda a boa, Major. 

— Mandaria, se tivesse uma. Lê aí.

Pelo menos ela ainda parece estar com bom humor o suficiente. 

A ficha em suas mãos relata os dados de uma pessoa desaparecida. As informações básicas apontam que Mikael Prater foi visto pela última vez na noite de sexta-feira, numa festa. 23 anos, alemão, intercambista numa das universidades locais, aluno do enésimo período. O sumiço foi relatado por seus colegas de apartamento, que afirmaram que o moleque não levou nenhum objeto de valor quando saiu de casa pela última vez. Na verdade, enfatizaram que ele não tinha praticamente nada. Nem mesmo onde cair morto, considerando que ele estava sendo expulso da república. Segundo as anotações, entraram em contato com a polícia justamente porque Mikael não veio buscar os pertences, e ninguém conseguiu contatá-lo até então.

— Ah, tá fácil. Ele se matou. — Lisa encara Gustave como se ele tivesse matado o cara. Chata pra caralho. — Ou sei lá. Vamos ter que brincar de detetive hoje?

— A prioridade é montar o panorama pessoal dele. Como os pais dele só vão conseguir chegar aqui depois de amanhã, vamos ter que nos virar com o que tivermos até lá.

— Nossa, quanto tempo que eu não entrevisto ninguém. — Ele dá um meio-sorriso de escárnio, a voz monótona. — Que empolgante.

Mas por incrível que pareça, na verdade até que não soa tão mal ter algo produtivo assim para fazer. Pelo menos é uma distração.

— Já falei com um contato meu na universidade para ver o que podemos conseguir por lá. Na verdade, essa é sua tarefa para hoje: preciso que você e o Bouchard vão até o campus para interrogar algumas pessoas que estiveram com o desaparecido nas últimas horas registradas dele.

— Especificamente o Bouchard? O que o resto do pessoal tá fazendo?

— O Duchamp ainda não chegou, a Leclerc bateu ponto tem uns cinco minutos, então deve estar se trocando. Eu também acabei atrasando a coitada pedindo para ela fazer mais café…

Claramente, essa delegacia não está preparada para um evento desse porte. Não é a jurisdição deles, e a equipe é pequena demais para conduzir uma investigação elaborada. A própria Lisa é prova disso, visto o desespero transparente em suas ações. Apesar da expressão impassível que mantém, seus olhos não param de voar entre a tela do computador, o caderno, e a pilha de papeis ao lado. Ela rascunha, risca, digita, desenha um círculo. Sendo justo, ela provavelmente foi arrancada da cama algumas horas mais cedo que o planejado por causa de um maluco que decidiu que a vida não é mais um dia que vale a pena ser vivido — sem considerar o quanto de problemas que ele causaria com essa escolha. Gustave estaria igual à chefe numa situação dessas, e olha que ele não teria o dó de não fazer o resto da equipe passar pelo mesmo.

Melhor não se estender muito nesse assunto. 

— Algo essencial que eu deveria saber?

— Ontem de noite os colegas de quarto deram um depoimento rápido, mencionaram uma namorada. Estamos tentando localizar ela também. 

— Não deram nomes?

— Só o primeiro. — Lisa confere as anotações antes de prosseguir. — Christine. Falaram que eles se conheceram na faculdade.

— Não tem como ter tantas Christines universitárias nessa cidade.

— Pois é.

— E as outras delegacias da área, já foram notificadas?

Ela pausa por um momento e respira fundo, jogando a cabeça para trás. Ele pensa em oferecer mais café, mas considerando que ela já não é tão jovem assim, é capaz dela ter um piripaque até o fim do dia se seguir com o método de ingerir mais cafeína a cada pausa.

— Já, o pessoal da noite espalhou a notícia. Estão me enchendo de mensagens pedindo cópias da ficha, mas preciso falar com a comunicação interna para correr o procedimento. — Isso explica a evidente dor de cabeça que está se formando dentro dela. — Enfim, vou te mandar os detalhes por mensagem, mas já combinei com uma professora dele para vocês a encontrarem. Melhor ir andando logo.

— Entendi. Não vou te perturbar mais, então, vou lá catar o Bouchard. Qualquer coisa, grita.

Não é força de expressão: dá pra ouvir ela perfeitamente de qualquer canto do recinto, sem que precise forçar a garganta. Até mesmo da mesinha do tenente Bouchard, a mais próxima do corredor que leva à entrada da delegacia, de onde dá para ouvir tudo o que se passa na sala de espera — especialmente os filmes que o recepcionista passa os dias assistindo no celular. 

Gustave dá um breve “bom dia” ao se aproximar do colega. A resposta que recebe é um grunhido, visto que ele está com a cabeça tão enfiada contra a tela do notebook que o ruivo sente a própria miopia piorar só de olhar a cena. Pelo menos Bouchard não está focado a ponto de não perceber a aproximação do outro:

— Alguma atualização?

— Nada, acabei de chegar. Mas vou precisar que você tire a cara da tela.

Ele obedece, mas prefere dedicar sua atenção à sua caneca de café, inconfundível pela foto de uma menina abraçada numa boneca e a mensagem de “feliz dia dos pais”. Cruzando os braços, Gustave espera enquanto Bouchard toma um longo gole antes de repousar a louça num canto da mesa, entre o celular e os óculos escuros. Não obstante, tira mais um momento para se espreguiçar na cadeira, forçando as pontas da camisa mal-abotoada a escaparem de dentro da calça larga demais, mostrando alguns centímetros de pele sempre mais bronzeada do que Gustave espera.

Voltando para a tela do computador enquanto seu colega se contorce em todos os ângulos imagináveis, Gustave corre os olhos pela página aberta. Pelo menos desse ângulo a única coisa que dá para ver no reflexo é o cabelo dele, todo penteado para trás com uns três quilos de gel. Ele já percebeu que essa parece ser a única parte de si que Bouchard se importa em tomar conta, considerando que a barba dele também sempre aparenta estar por fazer há pelo menos uns dois dias para chegar perto de ser apresentável. Hoje ele não está nem um pouco diferente desse padrão. 

Mas, novamente, não é nisso que ele deveria estar focando agora.

— Marie já chegou? — Mesmo sem saber, Bouchard o ajuda a voltar aos trilhos.

— Já. Acho que tá trocando de roupa.

— Eu ia pedir pra ela conferir isso aqui. Não tá carregando de jeito nenhum.

— É o quê?

— O site da faculdade do Mikael Prater. Tava vendo se encontrava a namorada dele na base de dados.

— Deixa carregando aí pra Leclerc conferir depois. A gente vai lá pessoalmente. 

Ele se vira, sobrancelhas levantadas.

— Agora?

— Assim que você conseguir levantar daí.

Dessa vez, Gustave nem precisa insistir.


Pensando positivamente, ao menos a vida dele não é tão entediante assim que dar uma volta no campus universitário seja algo digno de nota; na verdade, até certo ponto, é parte fixa da rotina da delegacia. Duas vezes por semana, no mínimo, eles fazem uma ronda a pé mesmo, seguindo uma escala montada por sabe-se lá quem há quantos anos. Entretanto, uma vez que saltam do carro, o caminho de hoje desvia da familiar rota de patrulha, deixando-o sem opção a não ser seguir Bouchard enquanto este comenta sobre as coisas menos importantes do mundo entre o estacionamento e o prédio das faculdades de Humanas. 

Nos momentos em que Gustave tenta absorver algo do que está sendo dito, primeiro é algo sobre a chegada do verão. Depois, os planos que os alunos devem estar fazendo para as férias. Em alguma altura, chega a uma história da época universitária do próprio Bouchard. Ele jura que está tentando não deixar tudo entrar por um ouvido e sair pelo outro, visto que a qualquer momento seu colega pode virar e perguntar algo, mas é um tanto complicado.

E se ele realmente quiser iniciar uma conversa, será mais difícil ainda sustentá-la: ao contrário dele, Gustave não tem nenhuma história tão incrível assim para contar. A única coisa memorável sobre o período que passou na faculdade é o porre que foi para entrar, e o desespero que passou para conseguir se formar depois. Uma vez diplomado, deu adeus para nunca mais voltar — se dependesse de um mestrado ou coisa similar para ser promovido, seria o fim de sua carreira. A essa altura, ele prefere se sujeitar a literalmente lamber as botas dos superiores.

Felizmente, o monólogo não dura muito mais: ao atravessarem os portões do magnífico prédio histórico, Bouchard abaixa o tom da voz, finalmente aparentando estar tão desorientado quanto Gustave tem se sentido. Tudo o que ele tem como base é o caminho até a biblioteca, o nome completo da orientadora responsável por Mikael Prater, e uma lista de jovens adultos que devem ser capazes de enrolar bastante em seus depoimentos para poderem continuar matando aula. 

— Deve ser aqui, né?

— É o que parece. 

Um pequeno alívio preenche o peito de Gustave quando aponta para um pequeno estande ao lado da porta, que entre vários avisos, pede por “silêncio na biblioteca”.

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Após um divórcio conturbado, uma transferência no trabalho, e uma mudança de cidade, a tediosa rotina de Gustave Martin vira de ponta-cabeça após o desaparecimento de um estudante universitário. Como se isso tudo já não fosse o suficiente, o cínico policial tem o resto da sua paz destruída após conhecer um dos professores do jovem, testemunha do caso.
Não é amor à primeira vista, mas é algo bem parecido.
Tal sentimento começa a se transformar em algo tão forte, tão rápido, que chega a surpreender.
Mas talvez seja justamente isso o que ele mais precisa agora...

[arte por @banancrumbs
atualização toda sexta-feira!

AVISO DE CONTEÚDO: Esta história contém menções à temas como vícios (álcool, drogas, jogos de azar), suicídio, homofobia e crises de saúde mental.
Caso necessário, os capítulos possuirão avisos parecidos com esse, de acordo com o conteúdo presente.
Se há mais algum assunto que você acredita que seja necessário inserir nos avisos, por favor, me informe!]
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