Passaram-se onze dias. Marco ainda não havia recebido notícias de Miguel. Não deixou de ligar ou de mandar mensagens até que, finalmente, Miguel o contatou. A primeira coisa que Marco percebeu foi o choro vindo do outro lado da linha telefônica. Miguel implorou a Marco que o encontrasse. Marco aceitou sem pestanejar.
O local era a floresta nos limites da cidade. Marco deparou-se com Miguel escondido nas sombras de árvores.
— Você tá bem? Por que não me respondeu antes? Eu tava morto de preocupação! — Marco exclamou ao vê-lo. Fez menção de abraça-lo, mas Miguel recuou. — O que aconteceu?
Miguel não respondeu. Estava tremendo e teve que implorar a suas pernas para manterem-no em pé.
— Lembra quando eu te contei sobre as asas? Lembra que você prometeu que não correria? Pode me prometer isso de novo? — sua voz vacilou. Pressionou os olhos e se preparou para ouvir um "não".
— Eu prometo — sua voz estava suave, calma.
Miguel respirou fundo e andou lentamente para fora das sombras. Fechou os olhos. Não queria ver a reação de Marco.
Miguel estava diferente. Sua pele estava marcada por linhas pretas, como se fossem rachaduras. Suas asas estavam vermelhas e um chifre saía do topo direito de sua cabeça. Suas unhas estavam afiadas como as de um leão. O que mais impressionou Marco, no entanto, foi o terror visível em suas feições. O rapaz gritava por ajuda.
Marco hesitou por um momento, mas aproximou-se de Miguel e o abraçou. Surpreso, Miguel abriu os olhos e revelou seus orbes amarelos.
— Vai dar tudo certo. A gente vai resolver isso — Marco ronronou e acariciou os cabelos de Miguel.
Miguel aninhou-se no peito de Marco e chorou.
— Obrigado — sussurrou entre os soluços.
Ficaram abraçados até que Miguel não aguentou ficar em pé e caiu. Marco sentou ao seu lado e o fez deitar sobre suas pernas. Passou seus dedos por seu rosto como fizera quando acordaram lado a lado.
Miguel respirou profundamente e conseguiu cessar os soluços. Fechou os olhos e permitiu-se relaxar por breves segundos.
— Miguel... Eu acho que você deveria olhar sua mão.
— Não — choramingou. — Aqui tá bom.
Marco pensou cuidadosamente em quais palavras usaria. "Normal" não era uma boa opção.
— Você está... Com aparência humana.
Miguel ergueu-se num pulo e olhou a própria pele. Sem manchas. Passou a mão pela cabeça e só encontrou cabelo. Sorriu.
Seu sorriso, porém, não durou muito. O olhar espantado de Marco o fez checar tudo novamente. Não estava mais humano.
— O que acabou de acontecer? — Marco perguntou.
— Eu não sei! — bradou. Puxou os cabelos a ponto de arrancar alguns fios.
Miguel afastou-se de Marco e fechou os punhos. Socou o ar. As árvores na frente de Miguel ganharam marcas de cortes, como se um lâmina tivesse passado por elas.
— Não! De novo não!
Marco recuou alguns passos inconscientemente. Pela primeira vez, teve medo de Miguel.
Miguel olhou para trás e viu o espanto no rosto do outro rapaz. Sem mais uma palavra, correu na direção oposta.
Marco ficou estático. Não sabia se ia atrás de Miguel ou se fugia dele. Contra seus instintos e seu cérebro, adentrou a floresta.
Marco ficou perplexo. A cada passo que dava, o número de árvores destruídas aumentava e a grama, marcada por pegadas, estava morta.
Marco andou alguns metros. Parou quando encontrou Miguel em frente a um rio.
— Não! Não se aproxime! — Miguel gritou quando o avistou. Sua aparência mudara: presas saíam de sua boca e um novo chifre era visível.
— Tá tudo bem, Miguel.
— Não, não tá! Saia daqui antes que você se machuque. Antes que eu te machuque.
Marco suspirou e se aproximou cautelosamente. Miguel fez menção de correr novamente.
— Confie em mim — Marco pediu. — Nós vamos resolver isso.
Miguel recuou mais uns passos.
— Isso não vai adiantar. Eu já me acostumei a correr atrás do Simba e te garanto que sou mais persistente que ele.
Miguel permitiu-se um leve sorriso e Marco avançou mais um pouco em sua direção.
— Você confiou em mim antes, lembra? Você não é um demônio.
Com cada palavra, Marco aproximava-se de Miguel. Quando ficaram a alguns centímetros de distância, Marco embalou a mão de Miguel e massageou-a com o polegar.
— Eu não quero te machucar — Miguel falou ao tentar afastar-se de Marco, o qual fez questão de entrelaçar seus dedos para que não se separassem.
— E não vai — disse e repousou uma de suas mãos sobre o rosto de Miguel. Este, por sua vez, apreciou o contato como se nunca tivesse sentido calor humano.
Marco puxou o rosto de Miguel para si e beijou sua testa. Lentamente, a aparência de Miguel voltou a ser humana.
— Viu? Eu falei que a gente ia dar um jeito — Marco murmurou.
Miguel respirou fundo e olhou para si mesmo. Estava normal. Sorriu e abraçou Marco.
— Você não precisa ter medo de mim — Marco afirmou.
— Eu não posso dizer o mesmo sobre mim.
— Mig...
— Não, Marco! Você viu o que eu fiz! Eu destruí metade da floresta!
— Eu não diria metade. E já que você não confia em você, eu confio. Você não vai me machucar. Você já o teria feito, não acha?
Miguel respirou fundo e assentiu.
Marco segurou a mão de Miguel e puxou-o para a beira do rio. Sentou no chão e tirou os sapatos. Mergulhou os pés na água e convidou Miguel com o olhar. Ele aceitou. Sentou e aninhou-se no peito de Marco.
— Você quer falar com sua mãe? Talvez ela possa te ajudar.
Miguel mordeu o lábio inferior.
— Ainda não.
Ficaram em silêncio por alguns minutos.
— Não faz sentido — Miguel finalmente falou. — Como você esquece que é um anjo?
— Como você esquece que é humano? — Marco rebateu.
Miguel fechou os olhos.
— Você não entende, Marco...
— Eu realmente não entendo. Mas por que isso importa tanto? Não me importa se você é um anjo ou um demônio, você não deixa de ser humano para mim.
O silêncio se instaurou novamente.
— Você acha que ele tá mentindo? — Marco perguntou.
— Que ele é um demônio, eu tenho certeza. Só não entendo como minha mãe esqueceria um "detalhe" como esse.
— Quer voltar lá pra casa?
— Ainda não. A Beatriz tá bem?
— Está. Inventei uma estória qualquer, mas, com esse seu desaparecimento, minhas mentiras estão cada vez mais estranhas.
— Pode contar pra ela.
Marco arregalou os olhos. Miguel tornou a falar antes que ele se manifestasse.
— Ela é parte da família e vai acabar descobrindo, de um jeito ou de outro.
— Tudo bem. E você vai ficar onde?
— Eu consigo me virar aqui.
— De jeito nenhum!
— Eu não vou arriscar a vida de inocentes! Eu não consigo controlar... Seja lá o que for isso.
— Então volta lá pra casa! Ou pra sua casa! Sua mãe vai te ajudar!
Miguel não respondeu de imediato. Ponderou as opções.
— Fala com a Beatriz primeiro. Eu aceito se ela concordar.
— Ok. Mas você vai comigo agora. Se ela não quiser, eu vou te levar pra sua casa e é bom você se acertar com suas mães.
Miguel aceitou sem reclamar. O caminho até o carro foi silencioso, mas os dedos entrelaçados não se soltaram.
***
— Oi, Ana.
Ana virou-se. Não reconheceu a voz. Fernanda estava com Laura no mercado. Miguel ainda estava bravo com ela.
A moça derrubou o prato em suas mãos.
— Ainda se lembra de mim?
— Daniel? O que está fazendo aqui?
O homem sorriu. Estendeu sua mão e acariciou o rosto de Ana.
— Você tá tão linda quanto no dia em que te conheci.
— Você me abandonou! Abandonou nosso filho! — gritou.
— Você realmente não sabe por quê?
— Deveria?
Daniel suspirou. Libertou suas asas e a cor de seus olhos mudou.
— O-O que é você? — gaguejou.
Daniel aproximou-se e Ana recuou.
— Confia em mim.
Ana parou. Daniel segurou suas mãos.
— Feche os olhos — pediu.
Ana fez como pedido. Daniel também fechou os olhos. Pressionou as mãos de Ana. A mulher se afastou logo depois. Empurrou Daniel e escondeu o rosto entre as mãos.
As asas de Ana logo apareceram. Eram brancas como uma pérola. Ela começou a hiperventilar.
— Calma! Respira fundo! — Daniel falou desesperado.
Ana levou alguns minutos para se acalmar. Seu peito doía.
— Eu... Eu sou um anjo? — perguntou apesar de já saber a resposta. — E você é... Você é um demônio?
Daniel assentiu.
— Miguel?
— Eu contei pra ele. Ele simplesmente desapareceu. Faz mais de uma semana.
— Como eu pude esquecer?
— Você é um anjo há muito mais tempo que eu sou um demônio. Você devia estar cansada. Observar as vidas humanas... Eu também desejo ser um deles. Poder viver, amar, morrer — disse com um suspiro.
Ana balançou a cabeça afirmativamente.
— Eu era... Eu finalmente me senti humana. Eu era feliz.
— Desculpe estragar isso pra você. Ninguém está feliz com sua vida aqui — muitas divindades acham que você vai fazer besteira e elas que terão que limpar a bagunça —, mas, como não estava causando problemas, decidiram te dar mais um tempo. Só que nosso filho precisa da gente.
— Eu preciso de um tempo pra me reacostumar. Mas eu acho que sei onde encontrá-lo.
— Fale com ele, então. Ele não quis me ouvir. Você vai contar pra Fernanda?
— Como você sabe dela?
— Eu tava esperando você ficar sozinha para podermos conversar. Eu sou um demônio. Tenho meus métodos de investigação. Eu não tava espiando! — acrescentou quando Ana lhe direcionou um olhar sugestivo.
— Sim, eu vou contar. Ela é minha família.
— Nós ainda podemos ser... Amigos?
— Por que nos deixou?
— Eu sou um demônio, e você um anjo. Eu não sei por que, mas nossas raças tendem a se odiar. Você é muitos anos mais velha que eu. Sua experiência é maior. Eu tenho certeza que eu não sairia vivo se você descobrisse que sou um demônio. A única coisa que me fez ter coragem para vir aqui hoje foi nosso filho.
— Como ele descobriu?
— Eu... Eu contei pra ele.
— Por quê?! — gritou.
— Ele tem o direito de saber!
— Então Miguel tá desaparecido há uma semana por sua culpa?!
— Mais de uma semana.
Ana o metralhou com o olhar e Daniel se calou.
Ana respirou fundo e suspirou pesadamente.
— Por que não me lembrou... Disto — apontou para si mesma — antes? Eu teria contado pra ele!
— Teria? Ou continuaria prendendo o garoto numa redoma assim como tem feito nos últimos vinte e três anos? Ou devo dizer por toda sua vida?
— Logo você vem me ensinar a criar meu filho?! Você que desapareceu por tantos anos?! — cutucou o homem agressivamente, o que o fez recuar alguns passos. — Ele se culpou, sabia? Acreditava que o pai o tinha abandonado por ser uma "aberração". Ele ficou magoado, angustiado. Se eu o pus numa redoma, foi porque você o machucou e eu não queria vê-lo daquela forma de novo! — bradou.
— Ana...
— Não! Sem desculpas, Daniel! Você abandonou sua família!
— Com muito pesar! Foi difícil manter a sanidade quando deixei vocês! Principalmente porque você me deixava são. Eu quis voltar. Os céus sabem o quanto eu quis voltar! Mas eu não podia nem tinha coragem! Eu acompanhei vocês de longe. Eu sorri com vocês e também chorei. Eu quase dei uma lição praquele tal de Luca, mas eu sei que vocês nunca me perdoariam. E eu não sei se vão me perdoar agora. De qualquer jeito: eu sinto muito.
Ana não respondeu e, após alguns segundos de silêncio, Daniel desapareceu.
As pernas de Ana bambearam e ela caiu. As memórias de sua vida como anjo bombardearam sua mente e ela chorou. Esteve feliz por tanto tempo e, agora, tudo desabou num piscar de olhos. A moça chorou e começou a hiperventilar. Quando Fernanda chegou com a filha, ela se obrigou a manter a calma e decidiu manter tudo em segredo por mais um tempo.
***
Beatriz ficou feliz ao ver que Miguel estava bem. Abraçou-o e o fez prometer que nunca mais sumiria daquele jeito.
Receoso, ele lhe contou a verdade. A reação de Beatriz foi parecida com a do irmão: ficou maravilhada. Nenhum traço de medo em suas feições. Apenas curiosidade.
Miguel nunca se sentiu tão aliviado. Suas mãos estavam geladas e tremiam. Sua boca estava seca e as palavras saíram com tanta dificuldade que ele pensou que não conseguiria falar. Mas percebeu que todo seu desespero foi em vão.
Abraçou Beatriz novamente e agradeceu-a inúmeras vezes.
Beatriz logo começou a bombardear Miguel com perguntas. Ele não respondeu muitas, afinal, ele próprio não sabia a resposta. Marco precisou intervir para colocar um limite às perguntas da irmã.
— Ok, eu vou fazer o almoço — Marco declarou.
— Então você cozinha? — Miguel perguntou curioso.
— Nunca disse que não. Só disse que estava com preguiça — sorriu convencido. — Quer ajudar?
— Ajudar? — ergueu as sobrancelhas. — Aposto que cozinho melhor que você! — rebateu com um sorriso.
— Desafio aceito! — Marco clamou.
Os dois se demoraram na cozinha. Os sorrisos bobos dançavam nos lábios e os rostos coravam quando as mãos se esbarravam. Demorou tanto que Bia teve que pegar alguns biscoitos para satisfazer sua fome, e foi repreendida por ambos os rapazes.
— Nada de sobremesa antes do almoço! — Marco debochou. A irmã mostrou-lhe a língua e saiu com um pacote de biscoitos em mãos.
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