00h45min.
Todos da casa já dormiam, exceto John, que permanecia envolvido em seus pensamentos e meio impaciente, por querer mais que tudo se transformar e provar a si mesmo o quanto era superior aos humanos. Ainda deitado em sua cama, começou a farejar o ar, apenas como um treinamento, porque tanto para ele quanto para Allec, por serem muito jovens as habilidades de licantropos não funcionavam 100%.
Ainda de olhos fechados deixou sua mente vazia. Começou a inspirar e expirar lentamente o ar para ter certeza do que farejava. Era a primeira vez que fazia isto com total concentração, para que sentisse o cheiro de tudo ao seu redor. O primeiro odor que sentira fora o de seu irmão e logo em seguida sentiu o cheiro de seus pais, não deixou passar nada, até de coisas distantes como a brisa fresca do riacho que ficava próximo a sua casa. Outro aroma familiar invadiu suas narinas, mas não conseguia se lembrar de onde havia sentido tal odor. Focou neste cheiro e finalmente veio em sua consciência o que era, suor humano. Abriu os olhos assustado, pois estava próximo ao território de sua família. Levantou-se e caminhou até a janela, que se encontrava no final do corredor e próxima da escada. Abriu a janela e voltou a farejar. Ao longe dali, mesmo com as enormes árvores centenárias e densos arbustos presentes ao redor de sua casa, que obstruíam levemente sua visão, conseguiu avistar várias luzes que pareciam vaga-lumes, porém de uma tonalidade alaranjada. Por estar sonolento não tinha certeza do que via, mas logo sua mãe surgiu ao seu lado, sem que ele percebesse.
Barbara tinha sono leve e seu faro era considerado um dos melhores. — Também os farejou querido? — perguntou surpresa e orgulhosa, por seu filho estar desenvolvendo uma das habilidades que era rara de se ver antes da primeira transformação.
— Sim, parece que estão vindo pra cá mãe...
Ela cerrou os olhos por um momento e começou a farejar.
— Mãe?
— Droga... Estão mesmo vindo pra cá querido... E não são da região, devem ser caçadores!
John olhou assustado e hesitou em perguntar com medo da resposta. — Caçadores? Tem certeza mãe?
— Não posso confirmar, mas temos que nos precavermos, porque farejei muita prata junto deles.
— São Evis, não é? - perguntou e sentira um arrepio pelo corpo.
Desde há milhares de anos os lycans enfrentavam um determinado grupo de humanos, que descobriram suas fraquezas, façanhas que os ajudavam a identificar um lycan em meio à sociedade e como a exterminá-los. Estes tais humanos eram engenhosos e inventaram centenas de armas e balas especiais, capazes de acabar com uma alcateia inteira em questões de minutos. Mas estes humanos agiam de maneira cautelosa e sempre a espreita, se comportando semelhante aos lycans entre as pessoas normais, de modo a esconder o segredo de família, que era passada de geração para geração. Os únicos que tinham consciência da existência dos lycans eram somente os próprios Evis, que era como os caçadores eram chamados por suas vítimas.
— Não sei querido, mas acorde seu irmão! — disse Barbara indo em direção ao quarto dela.
— Está bem! — John se apressou até seu quarto. — Allec... Allec, acorda! — disse o cutucando de leve.
— Maninho?
— Sim, agora acorda Allec, estão vindo algumas pessoas prá cá!
— Hum? — resmungou esfregando os olhos.
— Eu os farejei!
— Sério? — Allec despertou na hora. — Que legal maninho... Sua transformação deve ocorrer em breve! Papai sempre fala dessas mudanças antes da primeira transformação.
— Uhum. — John sorrira triunfante, pois era o que ele mais desejava.
De repente viram Charles passar apressado pelo corredor até as escadas, vestindo um casaco no caminho.
Barbara parou na porta do quarto tentando demonstrar tranquilidade, para não assustá-los e afirmou: — Queridos, papai e eu vamos resolver um problema com os humanos, então, por favor, não saiam deste quarto até voltarmos, está bem? — os irmãos assentiram.
— Está bem! Mantenham as luzes apagadas. — e se retirou apressada ao escutar as batidas na porta.
Como todo adolescente meio teimoso, John foi até a pequena janela, que ficava no corredor e ficou observando os estranhos lá fora conversando entre si.
— Maninho... A mamãe mandou a gente ficar no quarto! — afirmou Allec receoso, mas a curiosidade foi mais alta e seguiu seu irmão até a janela.
— Abaixa! — afirmou John escondido bem no canto e tentando ouvir alguma coisa, mas em vão.
Charles aguardava por sua mulher perto da porta de entrada ainda fechada e com as luzes do ambiente apagadas. Quando ela se aproximou, ele lançou-lhe um olhar de preocupação e Barbara assentiu com uma expressão de “tenha cuidado”. Com o casal bem próximo da porta, a segunda batida na madeira os surpreendera. Charles sentiu sua esposa segurar sua mão esquerda, enquanto sua outra mão girava a maçaneta. Abriu lentamente a porta e observou a todos com um olhar desgostoso e caminhou alguns metros para o lado de fora da casa, junto de Barbara.
— O que vos trazem em nossas terras? — perguntou Charles para um grupo de oito homens, com quatro cachorros vira-latas enormes, aparentando estarem em busca de algum lugar para acampar e caçar algum animal no dia seguinte. Deviam estar andando há horas, pois eles emanavam um fedor horrível. O que aparentava ser o “líder” estava próximo, apenas a três metros de distância do casal, os outros permaneciam logo atrás e dois entre as árvores segurando os cachorros, que rosnavam para Charles e Barbara.
— Ouvimos boatos de que nas fazendas desta região, vários animais estão sendo mortos. — disse o líder de porte físico forte, com cabelos e olhos castanhos, que vestia roupas escuras iguais aos demais do grupo.
— Mas isto ocorre toda hora, há vários ursos e lobos na floresta! — afirmou Barbara.
— Tem razão, mas as fotos dos vestígios das carcaças demonstraram terem sido causadas por um animal bem maior e mais forte que um urso.
— E o que poderia ser? — perguntou Charles receoso segurando a mão da mulher e atento a cada movimento dos homens. A mão de sua mulher suava frio, fingiu não notar para não alarmá-los de que ambos estavam nervosos. Era óbvio que não vieram fazer o que aparentavam, pois quem iria procurar um local para acampar no meio da madrugada?
— É o que estamos tentando descobrir... — disse o homem com um olhar malicioso.
— Tudo bem, se a gente vir alguma coisa nós avisaremos! — afirmou Charles.
— Ok, obrigado pela sua atenção! — disse o homem enquanto se retirava. O casal sentiu-se aliviado, mas ao abaixarem a guarda focados no líder que se afastava, um homem ao lado direito do grupo, os surpreendera ao avançar abrindo uma garrafa prateada e lançara um líquido na direção de Barbara, que era extrato de prata. Charles num movimento veloz, a puxou para junto de si.
— O que pensou que estava fazendo? — gritou Charles entrando na frente de Barbara, que deu alguns passos para perto da porta, ainda segurando sua mão.
— Seus reflexos não são humanos, foi o que pensei... Vocês são Lobisomens! — gritou o líder. — Peguem eles!
— Barbara entre agora! — gritou desesperado soltando a mão de sua mulher.
Ao ver os homens avançando com armas brancas de prata, se transformara rapidamente em um lobo enorme de pelagem negra e marrom barro, com os olhos amarelados para impedi-los de entrarem. Charles deu um salto para trás ao primeiro ataque e soltou um rosnado de fúria. Faria qualquer coisa para proteger sua família. Olhou para todos ali presentes e ao escutar Barbara arrastar o sofá até a porta para reforçar a entrada, partiu para o ataque. Lançou o primeiro homem atacante a mais de dez metros, um segundo veio com um facão, mas Charles arrancou o braço deste. Um dos homens que segurava os cães soltou os dois maiores, que avançaram raivosamente nas pernas de Charles, enquanto ele dilacerava outro homem. Soltou um uivo de dor e abocanhou um dos cães no pescoço com suas presas e o lançou na direção das árvores, no outro utilizou suas garras para repeli-lo e saltou pra trás, ficando a alguns metros de todos os que restavam. Ao ver o líder bem próximo da porta, correu o mais rápido que pôde, porém ele não demonstrou sinal de agressividade ou defesa e de repente, Charles soltou um ganido e parou o ataque a apenas alguns centímetros ao sentir uma dor cruciante em seu peito. Uma flecha de prata o atravessara. Olhou na direção das árvores para os homens dos cães e lá estava o atirador, se preparando para lançar uma segunda flecha, utilizando uma besta. O corpo de Charles estremeceu e pensou: “Amor, crianças...”, tentou dar um passo, mas suas forças haviam sido arrancadas de seu corpo ao ser atingido pela segunda flecha e caiu morto.
John e Allec observavam tudo que acontecia do lado de fora pela janela e ficaram em estado de choque quando viram seu pai cair. Charles havia matado cinco dos homens e dois cães. Lágrimas começaram a escorrer em suas faces, que nem perceberam sua mãe chegando.
— Allec, John, venham por aqui queridos... — disse desesperada, levando-os até o quarto dela.
Allec começou a chorar, John também ainda não acreditando, sentiu muita raiva de si mesmo sem poder fazer nada para ajudar.
Barbara subiu em sua cama para alcançar uma pequena alavanca, que abria uma passagem no teto, ao pressioná-la para baixo, uma escada dobrável surgiu com quatro degraus firmes. Se virou para seus filhos e abraçou Allec, o pegando no colo e subindo os degraus da escada do sótão junto dele, enquanto dizia:
— Allec, não chore, vai ficar tudo bem.
— Mamãeeee...
— Não chore querido, vai ficar tudo bem! — afirmou enquanto limpava as lágrimas de Allec. Barbara olhou para o filho que a aguardava e lhe estendera a mão dizendo:
— Venha, suba John! — ela o ajudou também.
— Mãe o papai está... — a dor da perda o atingia tão forte, que não conseguiu terminar a frase.
— Eu sei querido, por favor, eu peço para que vocês sejam fortes. — Barbara pressionou uma outra alavanca, para que o compartimento das escadas do sótão se dobrassem novamente, fechando assim a passagem do qual vieram. Ela caminhou alguns metros até a pequena janela empoeirada, sendo acompanhada por seus filhotes e fez um sinal de silêncio para os dois, abriu lentamente para não fazer barulho.
Os três olharam para a passagem do sótão fechada, após escutarem as batidas dos homens na porta de entrada da casa, tentando arrombá-la.
— Venham rápido! Temos que sair daqui agora! — afirmou Barbara os ajudando a passar pela janela para um pequeno telhado do lado de trás da casa.
Barbara se transformou em uma loba de pelagem dourada, com alguns tons em preto e branco e se agachou para que seus filhos subissem em suas costas.
— Segurem firme! — afirmou ela, que começara a se levantar com Allec e John segurando em sua pelagem do pescoço, que era bem comprida. Sentiu que estavam firmes, saltou do telhado e começou a correr para a mata com todas as forças, sem olhar para trás. “Adeus meu amor...”, pensou enquanto as lágrimas eram lançadas ao vento.
Já a alguns quilômetros de distância, ela reduziu a velocidade. Correu mais algumas centenas de metros e começou a procurar por um abrigo farejando o ar. Eles encontraram uma árvore antiga, com uma fenda grande no meio e em um lugar alto. Ela subiu nos galhos e se posicionou para que os dois descessem e se escondessem ali. Era um lugar perfeito para um esconderijo, porém apertado demais para os três. Allec e John se espremiam um no outro para deixarem um espaço para sua mãe, mas só caberia outra criança da idade de Allec. Percebendo a situação, estava decidida a proteger sua prole. Ainda nos galhos, deu uma lambida no rosto de cada um e depois levou sua cabeça entre os dois, a esfregando neles como se os abraçasse.
John logo percebeu a intenção dela ao fazer aquilo e suplicou chorando:
— Não mãe, por favor, não nos deixe aqui...
— Eu preciso meu amor... Preciso despistá-los, eles não viram vocês, mas não irão parar até me encontrar.
— Mamãe, não mamãe, não vá... — disse Allec.
— Eu voltarei para buscá-los, eu prometo! — afirmou levando suas patas grandes e peludas ao rosto de John e o encarou. — Por favor, prometa que irá sempre tomar conta de seu irmão... E que vocês estarão sempre unidos! — abraçou ambos agora.
— Prometo mãe. — John a abraçou com força.
— Mamãeeee... — chorou Allec.
— Eu amo vocês. — ela os lambeu e se libertou dos abraços, se preparando para saltar dos galhos, os olhou por alguns segundos e disparou para outra direção.
— Eu quero descer John! — afirmou tentando sair do esconderijo.
— Temos que ficar aqui Allec. — o puxou de volta.
— Não, eu não quero... Vamos com a mamãe! — afirmou tentando se soltar dos braços do irmão.
— A mamãe mandou, temos que ficar aqui!
A discussão dos dois cessou-se quando começaram a ouvir latidos de cães, bem longe dali. Allec agarrou a camisa de John e o abraçou com medo. John começou a farejar o ar para fazer uma cobertura do local, já não chorava mais, porque seus pais o deixaram com uma grande responsabilidade, a de sobreviver e cuidar de seu irmão mais novo.
continuação do capítulo em "Os Mool's - parte 3"
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