03h da madrugada.
John despertou de seu cochilo ao escutar galhos quebrando e sons de cães farejando o terreno, mas não sentiu o cheiro dos homens. Um cão farejava ao redor da árvore em que estavam. Não percebeu que sua audição e olfato estavam mais apurados. Havia uma leve neblina, que acrescentava à noite uma brisa fria e sombria. Allec dormia abraçado dele. Começou a olhar ao redor, tentando confirmar a posição exata do cachorro, escutando cada vez mais alto o fungar do animal entre as folhas. O coração de John dobrou de velocidade ao avistar o cão, que agora farejava a raiz da árvore que os escondia.
Allec despertou com a agitação de John e antes que dissesse alguma coisa, seu irmão levou a mão direita em sua boca, com os olhos vidrados no cachorro, que não os vira. Os olhos de Allec se arregalaram quando observou na mesma direção do irmão, o cão, que agora os encarava com um rosnar. Notou que os olhos de John estavam dilatados e a íris cobria uma grande parte de seu olho e pensou: “Ele vai se transformar!”
John começou a empurrá-lo lentamente para o canto de trás da árvore, que tinha uma pequena passagem.
— Corra... — John sussurrou tentando atrair a atenção do cão, já demonstrando sinais de que seu lobo interior lutava para sair agora, pois já havia liberado suas garras e presas.
Allec começou a se afastar do irmão e a descer da árvore bem devagar. Quando ficou a poucos metros de alcançar o chão, Allec pisara em um pequeno galho que se partiu, atraindo a atenção do cão, que correu em sua direção. Seu coração disparou e ficou em choque devido ao medo. No momento em que o cão foi mordê-lo, John pulou sobre o animal, fazendo com que os dois rolassem pelo chão.
Allec observava seu irmão matando o cachorro, mordendo o pescoço e utilizando as garras, rasgando as entranhas do animal.
John levantara com os lábios e mãos cheias de sangue e observou o cão morto. Lambera o sangue quente em seus lábios, apreciando o sabor e a sensação de tirar uma vida. Em seguida olhou para Allec, que terminou de descer da árvore e correu até ele num abraço.
Os dois olharam numa direção e perceberam que os outros cães se aproximavam, devido ao alerta e barulho que a luta provocara.
— Vamos! — afirmou John o puxando pela mão.
Os dois correram com todas as forças pela floresta. John não largaria a mão dele, tentou manter o passo, mas Allec ficava sem fôlego. Escalaram um aglomerado de troncos, com quatro metros de altura para dificultar o caminho, fazendo os cães darem a volta. Alguns metros a frente, John sentiu um puxão em seu braço, que o fez perder o equilíbrio e cair no chão junto de Allec.
— Allec, você está bem?
— Sim, meu pé prendeu neste tronco. — disse se soltando.
— Vamos... — os dois iam se levantar, mas já estavam cercados por quatro cães enormes, que os encarava rosnando. John abaixou Allec de volta ao chão, ficando sobre ele e disse indicando com o olhar: — Allec, fique abaixado, assim que tiver uma oportunidade, suba naquela árvore.
Apavorado suas palavras não saíram e ele apenas acenou com a cabeça.
Um cão ameaçou avançar, mas parou quando John rosnou pra ele mostrando as presas. John começou a olhar pra todos, dando uma volta em círculo e soltara um grito: — Grrrahhhhhh... — John assumiu uma posição quadrúpede, gritando e rosnando monstruosamente. Cada vez mais alto, conforme suas roupas se extinguiam, dando lugar a uma pele forrada de pelos grossos. A transformação foi rápida, mas dolorosa, pois transformava os ossos de maneira que se alongavam, formando um focinho e também uma cauda.
Allec observava fascinado o irmão, que se transformava pela primeira vez em sua forma lupina. A pelagem do lobo lembrava a plena escuridão, com dois penetrantes orbes da cor do oceano.
Já transformado, voltou a rosnar e começou a eriçar os pelos, ficando com uma aparência mais intimidadora. Todos mostravam os dentes, só aguardando o momento em que John abaixasse a guarda.
Um dos cães focalizou em atacar Allec, que estava debaixo de John, mas foi interrompido sentindo os caninos do lobo cravarem em seu pescoço. Os outros cães aproveitaram a oportunidade para morderem John pelas costas e neste momento Allec correu até a árvore e começou a escalá-la.
John lutava com os cães restantes agora. Allec tentou ajudar lançando alguns galhos na direção dos cachorros, mas foi inútil. A cada mordida que John recebia, devolvia três com grande potência e agilidade, juntamente com suas garras, que lhe ajudavam a rasgar a carne com facilidade. Demonstrava ser um lutador nato, inconscientemente herdado de seus antepassados. Matou mais dois cães e um fugiu ferido para seus humanos enquanto choramingava. Olhou para o cão pensando em persegui-lo, mas desistiu, porque o animal morreria logo devido aos ferimentos. Voltou o olhar para Allec e foi até seu encontro.
— Você tá bem maninho? — perguntou enquanto descia da árvore.
— Estou, não se preocupe. — John ficou sobre duas patas agora e observou suas patas dianteiras.
— Você está incrível John! — afirmou erguendo o pescoço para olhar nos olhos de seu irmão, já que ele havia dobrado de tamanho, ficando a mais de dois metros de altura.
— Você acha? — perguntou empinando as orelhas para frente.
— Sim! Como é estar assim? — Allec perguntou pegando em sua pata direita com curiosidade.
— Depois lhe explico, agora temos que sair daqui... — disse voltando o olhar para os cães mortos.
— Certo!
John agachara para sua forma quadrúpede e fez um sinal com a cabeça, para que seu irmão subisse em suas costas.
Allec obedecera e se segurou firmemente. Após correrem alguns minutos, atravessaram um rio com uma pequena correnteza, se dirigindo a um bosque de pinheiros para apagarem seus rastros. Beberam um pouco de água e prosseguiram mais alguns quilômetros, antes de pararem para descansar embaixo de uma árvore meio inclinada, devido a um barranco, formando assim uma toca. Ambos checaram o lugar e assentiram, que naquele momento era o local mais apropriado e seguro para o que restava da madrugada.
John se ajeitou confortavelmente e abriu espaço para seu irmão juntar-se a ele. Permaneceu em sua forma de lobo, porque ficaria um tempo de tocaia, até que Allec adormecesse. Não demorou muito e Allec pegou no sono, abraçado do irmão novamente, pois assim sentia-se seguro.
Era de manhã, por volta das 9h e Allec encontrava-se em uma campina. Ao longe avistou dois seres juntos e imóveis, que o olhavam. A fisionomia de ambos parecia familiar, transmitindo a sensação de segurança e o motivando a correr na direção deles. Conforme se aproximava suas feições ficaram visíveis, eram seu pai e sua mãe, que sorriam para ele. A imagem dos dois iluminou os olhos de Allec, que começou a correr mais depressa, mas de repente uma luz bem forte brilhou e os envolveu, fazendo com que desaparecessem bem diante de seus olhos.
Foi abrindo os olhos lentamente e percebera que o ambiente ao seu redor mudara e a luz do sol batia em sua face. Estava novamente na toca, embaixo de uma árvore e tal realidade o fez lembrar que nunca mais veria seus pais, o que ocasionou em lágrimas e soluços. Olhou em volta e também não encontrou seu irmão.
— John? — o chamou em tom choroso. — Maninho? — foi saindo da toca e sentira a solidão invadir seu interior, ficou cada vez mais apavorado. — Cadê você John? — tomou um susto e caiu pra trás com o pássaro, que caíra morto bem diante de seus olhos.
— Calma lá Allec, é só o café da manhã... — disse John sentando-se em uma pedra, enquanto mastigava outra ave. Encontrava-se em sua forma humana novamente, mas completamente nu, pois havia rasgado suas roupas em sua transformação.
— John! — afirmou alegremente ao vê-lo. Em seguida abaixou o olhar para a ave diante dele e fez uma careta de nojo.
— Deixa de frescura e coma! Precisaremos de bastante energia. — disse John em um tom mandão.
— Eu, acho que eu não consigo... — disse desviando o olhar.
— Comemos isso tantas vezes, não se lembra?
— Sim, mas... A mamãe preparava e cozinhava eles pra gente... E... E eles têm penas!
John levou a mão na testa e soltou um suspiro. — Tá bom... — disse se levantando, pegou a ave do chão e se distanciou alguns metros de seu irmão.
Allec permaneceu em silêncio e ficou curioso sobre o que seu irmão fazia com a ave. Ouviu John mastigar algo, no qual devia ser as entranhas. “Eca...”, pensou fazendo outra careta. John veio em sua direção novamente.
— Toma. — disse John estendendo a mão esquerda com as garras amostra, com pedaços de carne limpa e depenada, enquanto lambia o sangue da outra mão. Pelo menos não tinham mais penas. — Era assim que a mãe fazia...
Allec pegou os pedaços lentamente e os observou receoso.
— Tonto! Você perdeu a parte mais nutritiva. — disse John sentando-se no chão próximo ao seu irmão e o observando, soltando um riso de canto. — Vai em frente, experimenta. Não é tão ruim quanto você está pensando!
— Tá bom, se você diz... — Allec levou lentamente o pedaço de carne à boca e mastigou. Engoliu meio forçado, mas nos pedaços restantes os devorou rapidamente.
— Viu só!
— Verdade...
— Quer mais? Se quiser eu pego pra você.
— Não precisa maninho, obrigado!
— Ok, mas quando quiser é só me avisar está bem? — disse John fazendo alguns cafunés nele.
— Tá bem... — respondeu sorrindo, mas desviou o olhar para o chão.
Houve um momento de silêncio. Ambos ficaram com os olhares fixos em alguma coisa e suspiravam lentamente.
— O que nós faremos agora? — Allec perguntou quebrando o silêncio.
— Não sei, estava pensando sobre isso.
— Vamos voltar pra casa?
— Não podemos... Aqueles Evis devem tê-la queimado, eu senti o cheiro de fogo na madrugada.
— Vamos para a escola então?
— E fazer o que lá? Ainda mais hoje que é sábado.
— Eu não sei...
— Lá seria um péssimo lugar, porque eles já devem ter nos descoberto, por terem mandado todos aqueles cães em nossa busca... E aposto que a escola seria o primeiro lugar, em que eles iriam procurar e obter mais informações sobre nós.
— Tem razão. — Allec respondeu cabisbaixo.
— Pensei da gente ir para o norte, o que você acha?
— Mas a gente precisa ir à escola...
— Teremos que dar um tempo, até a gente se ajeitar.
Allec ficou deprimido, pois suas vidas haviam mudado radicalmente da noite para o dia e seriam obrigados a deixarem tudo e todos que conheciam para trás.
John notou que para Allec não seria tão fácil abandonar Lakehaven, porque ele possuía alguns amigos, ao contrário de John que nunca fora muito sociável entre os humanos.
— Entenda Allec, precisamos sair da cidade, se ficarmos aqui cedo ou tarde os Evis irão nos encontrar...
Ele não mostrou reação e continuou olhando para o chão.
— Se quiser se despedir de seus amigos, podemos ir até eles... — completou John, fazendo com que Allec saísse de seu estado de transe e voltasse a encará-lo. — Lembre-se de que não será um adeus e vocês poderão se ver novamente algum dia.
— Faria isso por mim maninho? Eu sei o quanto você odeia estar próximo deles...
— Mas é claro! — pegara Allec desprevenido e o prendera com um “mata leão”, bagunçando seu cabelo. — Afinal você é meu irmão!
— Eu vou ficar careca... Para com isso! — resmungou rindo, tentando se soltar dos braços do irmão e ambos caíram pra trás e permaneceram deitados observando as copas das árvores.
— Obrigado John.
— Não é nada... Poderá sempre contar comigo Allec! — afirmou sorrindo e se levantando. — Vamos então!
— Sim! Mas maninho você não pode ir pra cidade assim!
— Assim como? — John perguntou, mas logo caiu sua “ficha” e voltou o olhar para seu próprio corpo. — Ou droga! Eu quase me esqueci desse detalhe...
— Como alguém esquece de que está pelado? — perguntou rindo.
— É que fiquei bastante tempo na forma de lobo, por isso nem percebi. — John respondeu sorrindo.
— Verdade! Você não me contou como é estar na forma de lobo! Como é John?
— É muito bom! — respondeu John entusiasmado. — Doeu um pouco no início, mas a sensação após a transformação é maravilhosa... É como se cada fibra do meu corpo se conectasse à natureza, além de todos os sentidos mais apurados!
— Que demais! — Allec disse com o mesmo entusiasmo.
— É sim! Uma sensação de liberdade nos contagia, nos motivando a fazer o que quisermos a qualquer hora, sem ninguém nos impedir... — a alegria de John cessou-se ao ouvir suas próprias palavras, lembrando-se de seus pais.
— Que foi John?
— Fico pensando se a mãe e o pai estariam vivos agora, se eu tivesse me transformado antes para ajudar... — os olhos de John começaram a lacrimejar. — Eu... Eu podia tê-los salvo... — John frustrado com sua transformação tardia, rosnou alto e surpreendeu seu irmão esmurrando uma árvore.
— Calma John, não é culpa sua, o papai e a mamãe lutaram para nos proteger... — disse pegando no braço do irmão, que permaneceu na mesma posição do soco, meio abaixado e chorando. — Se você se sente assim, imagine eu? — começou a chorar também. — Eu que nem posso me transformar ainda... E... E você quase perdeu a vida por minha causa!
John enxugou as lágrimas e abraçou Allec, que chorava agora.
— Me desculpe Allec, eu sou um idiota... Por favor, não chore.
Allec retribuiu o abraço. — Dói demais maninho... A mamãe e o papai... Nunca mais os veremos de novo.
— Eu sei. — John o abraçou mais forte. — Mas ainda temos um ao outro e irei cuidar de você, eu prometo!
Allec ergueu a cabeça e encarara John, que parara de chorar, mas era possível ver os rastros recentes das lágrimas.
— E eu juro que algum dia, eles irão pagar por tudo que fizeram!
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