Rognir agradeceu incontáveis vezes. Apesar do cervo ter tido carne de sobra para as pessoas presentes, os coelhos também foram assados, e o excedente do animal maior guardado.
— Me deem licença. —, disse Rognir, em meio à refeição. — Vou levar um pouco para minha esposa também.
O velho homem partiu, e Darl fora deixado com mais uma dúvida para transformar em palavras.
— Esposa?
— Grena. Ninguém te disse? —, Gundar respondeu. — Ela é a esposa de Rognir. Anda muito fraca pra levantar da cama.
O garoto queria perguntar a razão, mas, como já era de costume, acabou por permanecer calado.
No momento em que terminaram de comer, o sol já se punha.
Apesar da caçada haver consumido pouco tempo, como era comum aos dias do fim de outono, o sol brilhava por pouco tempo no céu. Como resultado, escurecia rápido.
Darl e Gundar estavam sentados em torno da armação de pedras e madeira, com lenha ainda chamejante no centro, que compunha o fogão. Diferente do lar do soldado, o fogão não fazia parte da lareira, e estava no exterior da casa.
Logo Rognir retornou para se juntar a eles.
Os três presentes disseram nada por um bom tempo. O garoto tinha seus olhos às casas a maior parte do tempo, o soldado à pequena chama, e o velho homem ao céu.
— É uma pena —, disse Rognir, tão distante que parecia falar mais consigo mesmo do que com os outros dois. — que não vão poder ficar.
Darl olhou para o velho, mas ele apenas continuava a encarar o céu. Então para Gundar, mas ele ainda mantinha os olhos no fogo.
Era desagradável. Todos pareciam saber de algo que ele não sabia.
Naquele vilarejo estariam seguros das pessoas do exterior. Além disso, Rognir e sua esposa não estavam mais em condições de sobreviver sozinhos. Mas Gundar e Darl chegaram na hora certo para ajudá-los. Se eles ficassem, tudo seria resolvido.
— Por... quê? —, o garoto conseguiu perguntar.
— A Praga. —, respondeu Rognir.
— Ela não desapareceu de verdade. —, completou Gundar.
— E... é por causa dela que a gente não pode ficar?
— Não é óbvio? Imagine o que pode acontecer com vocês se eu ficar doente. No melhor dos casos, você e Rognir vão ter que cuidar de nós quatro.
Nada era óbvio.
Absolutamente nada.
Todos falavam sobre uma "Praga" com a mesma familiaridade que se falava das nuvens. Porém, Darl podia ver formas brancas e cinzentas percorrerem o céu todos os dias, enquanto não tinha a menor ideia do que devia se tratar essa tal "Praga".
Ainda assim, devia pensar rápido se quisesse entender algo. Se ficasse muito tempo em silêncio, não teria a força necessária para o quebrar depois.
— Mas... aqui não é mais seguro? Essa "Praga" não... ia ser um risco de todo jeito? Até em Nouwer?
— Nouwer já não tinha mais vítimas vivas. —, com um suspiro, Gundar respondeu.
Darl ainda não entendia. Não havia como entender.
Mas, depois de tantas perguntas respondidas, apesar de não esclarecidas, não podia exigir mais explicações.
Não havia o que mais perguntar.
A única opção restante era deixar-se sucumbir ao amargo silêncio.
— A Praga —, então, Rognir quebrou-o. — se espalha de uma pessoa pras outras mais próximas.
— Ah... Então... —, por um instante, Darl viu acender-se uma chama de esperança.
— Grena sofre com a Praga, lembra? —, adicionou Gundar, apesar de acrescentar nada. — A última vítima do vilarejo. E é melhor assim.
E essa chama encontrou uma morte prematura.
Quanto mais tentava incluir-se no mundo dos outros dois homens, mais se sentia deslocado. Era como se pertencesse a outro completamente diferente.
Seu melhor palpite era que "Praga" referia-se a alguma doença. Ainda assim, do que valia um palpite de alguém que conhecia tão pouco do mundo além das paredes e árvores?
Se atirasse uma pedra no escuro em uma formiga, as chances de acertar seriam maiores.
Era mesmo frustrante.
— Com licença, meus jovens... —, ao se levantar com um gemido, Rognir disse. — Vour ir dormir.
Gundar não respondeu. Nem mesmo retirou os olhos da fogueira que compunha o fogão. Darl pôde apenas acompanhar com os olhos enquanto o velho homem arrastava-se até o interior da casa.
Ainda estava claro, apesar do sol já não poder ser visto. Estava oculto por trás dos bosques que cercavam todo o vilarejo.
A chama podia prover certo aconchego, mas era pequena e, aos poucos, ficava mais frio. Arrepios tomavam os braços do garoto sempre que o vento de outono soprava. Com ele, dançavam as silhuetas das copas das árvores.
— Não fizemos o Rito. —, declarou Gundar, distante. Seus olhos fixos nas chamas. — Sem arrependimentos... Ele tá mesmo preparado...
Apenas após o soldado mencionar o fato, Darl deu-se conta de que era verdade. Todas as tardes, Gundar repetia o mesmo rito, em silêncio, ao acender a lareira de casa. Até mesmo durante a viagem, os soldados e escudeiros fizeram o mesmo no final de cada dia quando acendiam fogueiras.
Era diferente do Rito do Duodécimo, feito a cada doze dias, no qual tecido-carvão para mais onze dias subsequentes era feito. Ao longo desses onze dias, era realizado o Rito mais curto.
Quando chegaram ao acampamento, no dia anterior, todas as fogueiras já estavam acesas e, muito provavelmente, as pessoas que as acenderam também haviam feito o ritual. Entretanto, neste dia, além do fogão haver sido aceso sem qualquer ritual, sua chama apenas havia sido levada à lareira no interior da casa.
Era uma razão para refletir. Contudo, havia outra questão pendente no momento. Uma que profundamente intrigava Darl.
Apesar disso, o garoto já estava completamente imerso na pressão esmagadora do silêncio.
Aquela mesma pressão que lhe assombrara desde que fora forçado a trocar de lar. Aquele mesmo silêncio inquebrável que parecia sempre seguir Gundar.
De toda forma, não importava quantas voltas desse, dificilmente chegaria a seu objetivo se não andasse diretamente em sua direção. Se saber era o que queria, perguntar era o que devia
Era óbvio, mas era o mais difícil.
Os olhos longínquos de Gundar refletiam o fraco brilho da chama que dançava com a cor do pôr do sol. Sua mente parecia tão distante que passava a impressão que, se Darl dissesse algo, sua voz não lhe alcançaria.
Talvez essa tenha sido a irônica esperança que, por fim, fez sua boca abrir.
— Gundar... o que é... a "Praga"?
Sua resposta não veio imediatamente na forma de palavras, mas sim em seu olhar que se ergueu das chamas até o garoto. Pela primeira vez desde que conhecera o homem, Darl viu uma clara expressão de surpresa em seu rosto.
Seus lábios cercados pela espessa negra barba moveram-se por um momento, mas se fecharam novamente. Quando Gundar levou os olhos de volta ao fogo, pareceu suspirar.
— Eles te amavam mesmo, né...? —, tão distantes quanto seus olhos estavam, suas palavras ecoaram. — Seu pai e sua mãe.
— Eu... acho...?
Darl sentia que a pergunta do soldado não havia sido feita com o intuito de receber uma resposta ou, ainda, que sequer se direcionava a ele. Ainda assim, sentira a necessidade de dar uma resposta, por mais que esta fosse outra pergunta.
— Você devia ser o tesouro deles. —, parecia falar mais consigo mesmo do que com o garoto em sua frente. — Com certeza... Eles queriam te proteger de tudo... Eles te colocaram numa gaiola que nem um canário, então nenhum cachorro ia te fazer mal... E eles também cobriram a gaiola inteira, assim você nem mesmo ia ver os cachorros, e também não ia ter medo deles...
O garoto temia irritar Gundar com sua pergunta ou, no melhor e julgado mais provável dos casos, receber pergunta nenhuma. O que conseguiu, entretanto, foi ouvir palavras dignas de um delírio.
Apesar de haver visto, em algum momento, um canário, tudo que sabia sobre cães era o fato de se assemelharem a lobos. Mesmo assim, suas experiências não foram o suficiente para compreender a afirmação que aparentava não se referir diretamente à realidade.
— Darl, a Praga é uma doença. Ou uma maldição. Ou mais uma punição do Pai. Só se sabe que ela começou em algum lugar ao oeste, nas terras gundordianas, e foi até aqui. Ela matava bem rápido. Tudo começa com você tossindo, até que começa a cuspir sangue. Então, num dia, passa a ficar tonto. No outro, tem dor na cabeça e nas juntas. Aí começa a vomitar tudo que come. Depois de uns dias, já não consegue mais sair da cama. Aí você começa a ficar cego até, finalmente, morrer. Foi exatamente assim com cada pessoa. Depois de começar a tossir, em mais ou menos uma lua, você morre.
O soldado ergueu a cabeça novamente, desta vez com algo nos olhos que poderia ser descrito como determinação. Ele olhava fixamente para a pessoa a sua frente, sem ao menos piscar.
— Ninguém mais sabia o que fazer com os corpos. Todo dia mais alguém morria. Fizeram até covas enormes pra queimar os mortos, dúzias de uma só vez. "A chama purifica tudo". Mas nem mesmo fogo podia purificar a Praga. Muitas casas acabaram vazias, ou com só uma ou duas pessoas morando dentro. Muitos casamentos, se dá pra chamar assim, aconteceram entre os viúvos... Devem ter sido os piores anos que esse mundo já passou... Acho que quase metade de Nouwer já tinha morrido quando chegou um sujeito de um reino vizinho, e ele veio com a solução. Isso foi... há doze anos atrás. E sabe que solução foi essa?
No ponto de não ser mais capaz de acompanhar, Darl meramente balançou a cabeça para os lados.
— Queimar os mortos não ajudou. Mas o problema não tava neles; tava nos vivos. Qualquer um podia ser o próximo. Normalmente era o parente de alguma vítima. Mas algumas pessoas nunca ficavam doentes. Elas eram o problema. No início eu não acreditei... A gente só precisou queimar vocês... —, apontou para o garoto. — Vocês, que têm o cabelo vermelho. A "cor das chamas". A gente jogou vocês na fogueira. Em pouco tempo, menos e menos gente foi morrendo. Só posso dizer que... funcionou.
Incrédulo, Darl levou uma mão à cabeça. Seus dedos fizeram seu caminho por entre os fios de cabelo.
Sua pergunta havia sido respondida. Finalmente.
A resposta, contudo, fez-lhe pensar que, talvez, não devesse ter insistido. Era arrependimento que sentia.
Mas esse arrependimento foi atirado para o lado. Estivera vivendo em uma mentira — ou em uma verdade controlada — por toda a vida. A verdade, por pior que fosse, devia ser ouvida.
Aceitar verdades absurdas já lhe era comum, de toda forma.
A resposta estava em sua frente o tempo inteiro. Era tão simples. Frustrantemente simples.
Ridiculamente simples.
Sentiu que todas as suas perguntas haviam sido respondidas em um único dia.
Tal afirmação era um exagero, mas também era a realidade. Afinal, foi exatamente isso que sentiu, por mais que não fosse, a princípio, a verdade.
Elevou os olhos um pouco.
Sua franja, já um pouco grande, podia ser vista. As pontas dos seus fios de cabelo brilhavam na cor da fogueira e do céu do sol poente.
A cor das chamas.
— É claro —, continuou o soldado, que já não fixava mais os olhos no garoto, mas encarava novamente a chama do fogão. —, muita gente fugiu, levando a família junto. Não era só os ruivos, mas também todo tipo de gente suspeita. E a gente caçou essas pessoas. Se matar alguns significava salvar muitos, a gente fazia. Não sei como sua família se escondeu tão bem, nem como uma vila grande como essa tão perto de Elogrand não foi encontrada, mas parece que todo mundo teve um final parecido.
Gundar soltou um longo suspiro enquanto se erguia. Cruzou os braços e olhou em silêncio para o céu.
Algumas poucas estrelas já estavam visíveis. O horizonte em tons escuros de azul erguia-se e logo cobriria o firmamento.
— É melhor ir dormir logo. —, o soldado disse antes de partir para o interior da casa de Rognir.
Essas foram as últimas palavras ditas naquele dia.
...
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