Os dias seguintes foram sem dúvidas os piores. A condição da camponesa se agravou em uma velocidade apavorante.
A visita do homem de máscara não trouxe nem um rastro de esperança. O futuro depois da praga parecia nada mais do que uma ilusão na qual os mais sonhadores se agarravam. Mas Jehan não possuía mais sonhos.
No dia seguinte à visita, Melisende amanheceu pior. Sua pele parecia queimar, os calafrios eram constantes. Suas mãos e pés estavam agora necrosados, e ela já não conseguia movê-los. As feridas haviam se espalhado por todo seu corpo.
Jehan sentiu o coração afundar diante da figura deitada na cama. Ele sentou-se no chão ao seu lado, chorando baixinho.
— O que… — Começou a voz fraca, sendo interrompida por uma tosse violenta. — O que faz um homem encantador tão solitário em um lugar deprimente como este? — Indagou com esforço, virando o rosto com dificuldade na direção do camponês.
— Melisende… — Ele conteve um soluço, antes de forçar o agora tão distante e pouco usado tom formal: — Aprecio o que podem ser meus últimos momentos com o amor da minha vida.
O sorriso oscilante iluminou por um breve segundo o rosto de Melisende, mas logo deu lugar à mais uma crise de tosse. O camponês prontamente se levantou e sentou-se na cama, amparando a moça, tentando em vão amenizar a situação.
A camponesa deixou-se recostar no peito do homem, concentrando-se no som das batidas de seu coração, como se aquilo pudesse acalmá-la.
— Você não tem medo? — Questionou a voz falhada da mulher.
— Não. — Respondeu prontamente, sabendo exatamente ao que ela se referia. Entender o que o outro pensava sem precisar de palavras era uma habilidade que o casal havia desenvolvido com o passar dos anos. — Na verdade, eu quero ir com você. — Admitiu.
Melisende sentiu os olhos queimarem, e soube na hora que não se tratava da praga. Ver alguém como o camponês desistindo de sua própria vida era algo que ela jamais teria esperado presenciar. Ele pareceu perceber o choque da esposa, porque abraçou-a com força antes de prosseguir:
— Você é tudo que me restou, Melisende. Não existe mais nada. Gidie se foi e eu sequer pude me despedir. — Ele fungou, tentando conter as lágrimas. — Roul também não está mais entre nós. Sua irmã também partiu. A aldeia inteira está fadada à destruição, fomos amaldiçoados. Tudo que eu quero agora é permanecer ao seu lado até o último segundo. E então — suspirou pesadamente —, ela pode me levar. A morte.
— Se você… — começou, fazendo uma pequena pausa para recuperar o ar que lhe faltava. — Se conseguir sobreviver…
— Ninguém vai. — Interrompeu ele. — Mas se eu pudesse sobreviver, na certa lembraria de vocês pelo resto de minha vida. Talvez começasse a contar histórias, como ele. — Disse, pensativo. — Contaria à todos sobre a história do bardo solitário, sem vínculos, que conhecia pessoas demais, lugares demais. Que encontrou suas raízes em um rapaz numa pequena aldeia.
— Tenho certeza que gostariam dessa história. — Comentou baixinho.
— Decerto. — Ele forçou um sorriso de canto. — E então contaria sobre o ferreiro que esquecia o próprio nome toda vez que bebia. Que cuidou de uma criança desconhecida quase que como seu próprio filho. Que aguentou o fardo de um segredo aterrorizante sozinho, na esperança de ajudar uma amiga que tanto lhe era importante.
— Essa seria uma daquelas com final devastador. — Disse com dificuldade, forçando um sorriso, mais uma vez cortado pela tosse.
— Pode apostar que sim. — Ele respirou fundo, sentindo o coração bater mais forte. — E tão logo contaria sobre a curandeira, que ficara conhecida como bruxa. Que havia se sacrificado de forma heróica para mudar a vida de um casal de velhos conhecidos. Sua valentia na certa inspiraria muitas e muitas pessoas por vários povoados.
— O desfecho desta também seria devastador. — Ela riu de leve.
— Eu diria inspirador. — Ele se endireitou na cama, e pôs-se a acariciar os cabelos soltos a esposa. — E então, contaria da bela donzela do sorriso radiante, que irradiava bondade por onde passava. Que havia dedicado a vida à ajudar a família, trabalhando intensamente no campo. Que nas horas vagas apreciava o gosto amargo da cerveja. De muitas e muitas cervejas. Que descobrira um obstáculo insuperável e mesmo assim fora capaz de se erguer e enfrentá-lo. Que era uma mulher tão forte, tão decidida, e ao mesmo tempo tão doce e encantadora.
— Não se esqueça de contar… — Ela conteve mais uma crise de tosse. — Do rapaz sonhador, que almejava conhecer o mundo, descobrir o que há além. — A camponesa respirou fundo. — Aquele que era capaz de entender os mais diversos lados de uma mesma situação. Aquele que conhecia tantas e tantas palavras, e ainda tinha sede por conhecimento. Aquele que era…
A moça suspirou e se calou ao perceber o rosto do camponês à centímetros do seu. Fechou os olhos devagar, sentindo os lábios tão familiares tocarem os seus. Ela não foi capaz de recuar e alertá-lo de que aquela podia ser uma péssima ideia. Naquele momento, já não era importante.
O beijo foi rápido, pois logo o ar faltou nos pulmões da camponesa e o homem se afastou. Seus olhos estavam marejados mais uma vez, mas ele sorria. Um sorriso melancólico, carregado de angústia e sonhos esquartejados.
— Jehan — ela tossiu pelo que parecia ser a milésima vez naquele dia —, não se esqueça de quem você é.
O pedido surpreendeu o camponês, e ele deixou escapar um suspiro discreto, mas não respondeu, apenas tornou a afagar os fios castanhos da esposa.
— É este Jehan que o mundo precisa conhecer. — Ela sorriu serenamente. — Ele ainda está aqui. — Afirmou, apoiando a mão trêmula no peito do homem. — Toda aquela esperança, todos aqueles sonhos, eles ainda vivem dentro de você. Eu tenho certeza que…
Mas a frase jamais foi concluída. Naquele instante, Melisende teve mais uma crise de tosse, acompanhada de sangue. As mãos e vestes de Jehan foram manchadas de carmim enquanto ele tentava ajudar a esposa.
O camponês sentiu seu coração sendo arrancado à força do próprio peito no momento em que a moça parou de se mover. Ele gritou o mais alto que pode. Gritou até sua garganta arder e a voz faltar. As lágrimas incessantes embaçavam sua visão, e sua mente parecia estar no meio de uma tempestade das mais devastadoras. Daquelas que destroem plantações, derrubam casas, provocam incêndios com seus raios.
A dor era insuportável. Em algum momento em meio aos berros intensos, alguém adentrou a casa. A voz do padre soava como um ruído distante, que Jehan não foi capaz de compreender. O corpo de Melisende foi tirado de seus braços com violência, e ele sentiu uma mão segurá-lo firme na cama.
O semblante de um pássaro passou como um borrão em meio às lágrimas, e o camponês pela primeira vez sentiu ódio daquela máscara.
Aqueles homens, que deveriam trazer consigo a cura e a esperança, estavam sempre ligados às piores memórias de Jehan. Então ele odiou, com todas as suas forças, aquelas feições artificiais em forma de pássaro. Ele tornou a gritar à plenos pulmões palavras ininteligíveis. Sequer era capaz de compor uma frase.
A dor lancinante perdurou por dias. O camponês permaneceu deitado naquele colchão de palha, completamente devastado. Por vezes um homem de máscara adentrava a casa.
Não demorou muito até Jehan começar a sentir o corpo arder. Os calafrios vieram pouco depois. Suas pernas doíam, e seus pés necrosaram rapidamente, bem como os dedos das mãos. Em vários pontos, sua pele parecia inchada e prestes a estourar.
Desolado, ele constatou o óbvio. Aqueles seriam seus últimos dias.
Ele tentou se importar. Tentou com toda sua pouca força lembrar-se da última conversa com Melisende. Mas qualquer motivação agora lhe parecia infrutífera. Não havia mais razão para tentar resgatar qualquer pequena chama de esperança que já havia tido.
Não haveriam histórias contadas. O mundo não conheceria as pessoas incríveis que foram importantes na vida do camponês. Ninguém saberia quem foi o bardo, o ferreiro, a curandeira, o casal de camponeses.
E foi com desgosto que Jehan percebeu que, se a sua história estivesse em uma das músicas de Gidie, na certa seria uma sobre infortúnio. A melodia melancólica de uma memória distante tocou em sua mente, e ele se permitiu mais uma vez chorar.
Não tinha mais forças para gritar, os soluços faziam seu corpo estremecer da cabeça aos pés, e a dor física cada vez mais parecia tão forte quanto a emocional. Aos poucos, o camponês sentiu sua consciência se esvair, dando lugar à um vasto breu.
O homem sentiu a luz invadir o local e abriu os olhos devagar. Uma parte da palha do telhado havia caído, e o sol brilhava alto no céu. Mas era a mesma casa de sempre.
Jehan tentou se levantar, mas seu corpo não se movia, e ainda estava dolorido. Ao baixar o olhar, o horror tomou conta de seu rosto.
As manchas escuras agora tomavam toda a extensão de seus braços e pernas. Feridas abertas espalhavam-se por sua pele, algumas com pequenos pontos brancos. O camponês sentiu o estômago embrulhar ao ver os ditos pontos brancos se moverem.
Ele podia sentir os pequenos seres rastejando pela carne exposta. A náusea aumentou instantaneamente e sua visão ficou turva.
Imóvel e apavorado, Jehan permaneceu ali, deitado naquela cama, vagamente consciente do que estava acontecendo. Ele não estava morto. Aquele não era o paraíso prometido, tampouco parecia com as descrições do inferno.
Aquela era a mesma casa. A sua casa. E a julgar pela breve imagem que havia conseguido registrar mentalmente, alguns dias pareciam ter se passado. Talvez algumas semanas.
O camponês sentiu o vômito subir-lhe a garganta, e conseguiu virar-se de lado bem à tempo de impedir um possível sufocamento.
O cheiro pútrido invadiu suas narinas, mas ele não teve certeza de onde vinha. Podia vir do líquido derramado no colchão de palha, da casa imunda, ou mesmo de seu próprio corpo.
A fome insuportável que sentia, o telhado caído, os braços e pernas gangrenados, o silêncio absoluto do lado de fora. Não havia dúvidas de que havia se passado alguns dias.
Onde estaria o padre? E o homem de máscara? E os sobreviventes — se é que havia algum.
Sobrevivente. Jehan havia sobrevivido. Ainda não conseguira digerir essa ideia, mas ele estava vivo. Seu corpo parecia apodrecer cada vez mais, e ele continuava respirando.
Várias vezes o buraco no telhado escureceu e clareou, variando entre tons de azul, dourado, rosa, e índigo. Ele desistiu de contar na quarta noite. O tempo continuava avançando, assim como a praga no camponês. Sua noção do entorno era instável, por vezes turva, ofuscada pela fome, dor, ou desespero.
E o fim parecia cada vez mais distante, tal como as memórias de uma vida feliz.
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