Como se conversa com um monstro que sempre te odiou?
Esse era o tipo de pergunta que passeava pela minha mente naquele momento. Não me agradava em nada o alter ego de Voluptia falando e dominando o corpo dela. Sentia um arrepio na coluna e minha boca secou só de pensar em um encontro cara a cara com Grotheske.
E a situação era pior porque o médico estava dentro da sala do hospital comigo.
Ele estava muito confuso.
Era hora de obter alguma privacidade entre mim e minha "garota".
Pedi ao médico que saísse da sala. Ele protestou, mas fez o que eu pedi. Pedi que fechasse a porta assim que saísse e não permitisse que ninguém chegasse perto do quarto por um tempo.
Seriamos só nós dois agora, ou três se Vol pudesse ver o que estava acontecendo.
Eu não conseguia alcançar a mente dela. Como se ela estivesse me bloqueando de propósito para não atraplhar a minha conversa com seu outro eu.
Nunca entendi o motivo do aparente ódio de Grotheske por mim.
Mas era assim que eu me sentia em relação a ela.
Não que eu tivesse dado a ela a oportunidade de conhecer muitas outras pessoas. Nos poucos momentos em que ela se libertou, nunca durou por tempo suficiente para que ele pudesse conhecer e interagir com outras pessoas. Exceto pra sugar a energia delas...
Ainda assim, eu podia sentir que ela guardava rancor contra mim.
Talvez por causa dos sentimentos que Vol nutria por mim: um desejo de fazer com que sua contraparte sofresse me machucando. Ou porque ela detestava ser controlada por mim o tempo todo com o amuleto.
Até aquela manhã no hospital, Grotheske foi para mim nada mais do que um monstro. Desde a primeira vez, que ela tomou o corpo de Voluptia, ela agiu de forma vil, egoísta e violenta.
Eu pensava que ela era uma criação do amuleto. Antes de sua personalidade se dividir, Voluptia sempre foi calma e muito gentil... Jamais quis fazer mal a ninguém.
Com esse pensamento na cabeça, eu acabei sendo arrastado pela ladeira da memória. Me lembrei do dia em que Voluptia e eu nos conhecemos.
Foi no meu último ano de ensino médio. Alguns dias antes da minha formatura.
Semanas antes desse dia, eu completei quinze anos. Estava sentindo aquela sensação de liberdade tão desejada de quando se está terminando um ciclo de sua vida. Eu era um menino rico de quinze anos, com poucos amigos. A maioria das pessoas da minha idade achava que eu era um pouco fora do comum. E eles não estavam errados. Se você pode ver coisas que ninguém mais consegue, você é visto assim. Eles me consideravam tão estranho que ninguém me incomodava. Nem mesmo os valentões. Esses, de fato, me evitavam com medo de mim.
Na época, a única coisa que me preocupava, em vez de garotas, era continuar meus estudos e ingressar na Academia de Polícia.
Eu tinha um amigo que era técnico em Criminalística e professor de Física na minha escola, e eu adorava o trabalho dele.
Sempre tive a capacidade de ver detalhes, que a maioria das pessoas ignora. Foi por isso que me juntei a ele em algumas investigações. Aquelas que não eram muito perturbadoras, segundo as regras da Academia de Polícia, para a minha idade.
O meu pai era contra. No entanto, ele me amava como se eu fosse do seu próprio sangue e queria que eu fosse feliz. Assim, ele ofereceu uma doação valiosa para a Academia, a qual me concedeu um status de técnico júnior. Como eu adorava participar das análises das cenas de crime. Utilizar o equipamento do seu laboratório. Poder ajudar meu professor a encontrar os pequenos detalhes, e até mesmo reconstruir uma cena baseada apenas nas evidências encontradas.
Minha última aula tinha terminado.
Já passava das seis da tarde. Apesar de ser tarde, como era final da primavera, e no meu país estávamos usando o horário de verão. Nossos relógios tinham sido adiantados em uma hora. Então, ainda haveria muita luz no céu por algumas horas.
Passei por algumas pessoas na mesma calçada que eu. Uma estava sozinha, enquanto outras duas conversavam uma com a outra caminhando lado a lado.
Depois de dois quarteirões descendo a rua, cheguei ao ponto de ônibus onde eu costumava esperar pelo meu.
O ponto de ônibus estava lotado de gente naquela tarde. Não havia mais lugar para sentar no pequeno banco de madeira e metal. Haviam muitas pessoas em pé ou descansando o peso de seus corpos nos pilares que sustentavam o abrigo. De vez em quando, uma dessas pessoas dava uma olhada na rua, para ver se o seu ônibus estava chegando.
Tudo muito normal.
Meu reflexo apareceu em um dos painéis de vidro. Uma placa de vidro instalada dos lados do abrigo, normalmente coberta por publicidade.
Meu cabelo estava começando a crescer, como eu queria. Eu tinha decidido mudar a minha aparência e deixar o cabelo crescer no comprimento dos ombros. Tenho um cabelo liso, preto azulado bem escuro e liso. Quando eu era jovem, a escola não me permitiu que eu o deixasse crescer. Tive manter ele sempre curto e bem arrumado como o código de etiqueta obrigava. Mas, eu me cansei do código de vestuário que a igreja católica, que mandava na escola que eu frequentava, impunha a todos os seus alunos. Eu queria ter um visual mais rebelde, já que não era mais uma criança. E pelos meus próprios padrões, isso era um direito meu.
Eu estava usando o uniforme da escola. As tiras que seguravam minha mochila estavam deixando o tecido da minha camisa todo enrugado.
No entanto, eu não parei no ponto e passei direto por aquelas pessoas que estavam ali. Eu não queria ir para casa ainda. Decidi caminhar até o Parque do Ibirapuera. E eram quase doze quarteirões, naquela mesma rua, longe de onde minha escola estava localizada. Mas, como eu estava prestes a fazer algumas voltas em uma das trilhas internas do parque: essa caminhada seria um exercício muito bom. Eu não precisari de fazer os exercícios para aquecer os músculos.
Quando eu estava passando na frente de uma casa azul muito grande e velha, ouvi um grito alto. Era a voz de uma menina e soava aterrorizada. O som vinha de dentro da velha casa. Para minha surpresa o portão e a porta da frente estavam abertos. Olhei em volta e vi que todos continuavam se comportando normalmente. Ninguém, além de mim, estava ouvindo.
Isso só podia significar que se tratava de uma criatura sobrenatural.
Mas eu não consegui ignorar. Sobrenatural ou não, aquele choro me fez querer ajudar.
O som era de uma criatura assustada. Um lamento de desespero. Corri pela porta aberta. Sem pensar claramente, deixei cair a mochila no chão. Subi os degraus que levam ao segundo andar da casa a toda velocidade. Meu coração estava acelerado, mas não parei, nem por um minuto.
Os gritos ficaram mais altos, quando me aproximei de um dos quartos. Eu podia ver uma luz fraca saindo de uma porta semi-aberta.
Aproximei-me daquela porta e entrei.
Era um quarto enorme.
Havia uma cama grande com um homem deitado em cima dela com uma expressão vazia no rosto. O homem estava completamente vestido.
Percebi que ele não se movia nem dava nenhum sinal de vida.
Estava morto.
Um homem grande, usando um casaco vermelho estava em pé na frente da menina que chorava. O homem segurava um punhal de metal em sua mão direita. A menina se encontrava encurralada entre ele e a parade do quarto. Estava agachada de encontro a parede como se tentasse atravessar . E tentava proteger seu rosto com seus braços. Percebi que estava totalmente nua quando usou suas asas preta e vermelha numa tentativa inútil de proteger o seu corpo.
Percebi que o homem estava prestes a apunhalar a garota. Não se importando pelo fato dela estar aterrorizada.
Ele levantou a mão, prestes a desferir um golpe certeiro.
Sem hesitar, eu me movi e agarrei o braço que segurava a faca, com as duas mãos. Então, usei o peso do meu corpo para romper o seu equilíbrio e fazê-lo cair para trás.
Quando ele bateu no chão, a dor deve ter feito com que ele perdesse o controle da adaga, e ela caiu da mão dele. Eu a chutei rapidamente para baixo da cama. E pisei na mão do homem, fazendo pressão sobre ela.
O homem olhou para mim, com dor, surpreso e muito zangado. Enquanto eu pressionava meu pé em seus dedos, com mais força, ele gritou e disse:
"O que você está fazendo, moleque?
Olhei para o seu rosto contorcido de dor e respondi:
"Vou soltar meu pé, mas quero que me escute. E sim", eu disse adivinhando qual seria a próxima pergunta dele," eu posso ver e ouvir a garota. Mas, ouça com atenção. Você está errado. Não foi ela que o matou. A pobre garota é inocente".
Eu disse isso com toda a convicção de que o homem não era mau, e que a menina estava apenas no lugar errado e na hora errada.
Eu tirei meu pé da mão dele.
Ele o esfregou com a outra mão, enquanto olhava diretamente para mim. Se ele tentasse fazer alguma coisa desagradável, eu chutaria seu rosto com meu outro pé.
"Assim está melhor. Então você tem o OLHO, fedelho?" ele sentou-se no chão. Pensando nas suas possibilidades.
Ele era muito maior do que eu, mas eu era mais jovem e mais rápido, e ele sabia disso.
"Eu não sei é Olho. Vejo coisas como ela, desde que era criança. Ela é uma súcubo, não é?
"É. E por isso que ela precisa ser destruída. Um demônio: uma criatura maligna".
A garota gemeu de medo.
"Não se preocupe, menina. Não vou deixar que ele faça nenhum mal a você. Sei que você é inocente",
Eu disse isso em uma voz calma e suave enquanto me movia entre ela e o homem, que tinha levantado seu enorme corpo do chão.
"Vocês dois estão juntos nisso? Como você sabe de tudo isso?
"Eu nunca vi você ou ela até agora. Suponho que você deva ser algum tipo de sacerdote ou exorcista. Eu não tenho certeza sobre isso. Repito, ela não matou o homem na cama. Tenho certeza disso".
"É bom que você tenha razão, rapazinho. Se você nunca nos viu antes, como pode ter tanta certeza?
Essa era a deixa que eu esperava:
"Vamos começar pela primeira coisa que vi, quando entrei nesta sala. Aquele homem está bem vestido. Veja. Até a gravata dele não está afrouxada. Você convocaria um súcubo para ter prazer com ela, vestido assim? Sua expressão não é de prazer. Um súcubo drenaria sua energia sexual e o faria morrer em um orgasmo. É isso que você vê, quando você olha para essa expressão patética em seu rosto? Além disso, você se deitaria para convocar um parceiro sexual sobrenatural, usando sapatos e meias na cama? Com os cadarços ainda amarrados?"
Isso foi o suficiente para chamar sua atenção. Então, continuei a explicar minhas deduções:
"Bem, você pode ver por cinzeiro que ela é uma súcubo e foi convocada. Um dos papéis não queimou completamente, e está marcado com um T e um H, juntos. A vela vermelha, ao lado do cinzeiro, me faz dizer com absoluta certeza que estava escrito: "Filha de Lilith". Então, todos aqueles papéis foram feitos para atrair um súcubo para esta sala. Isso explicaria como essa garota chegou aqui. Mas ela não foi convocada pela vítima. Alguém queria que você pensasse que um súcubo matou o homem".
Ele examinou o cinzeiro sobre a pequena mesa do lado esquerdo da cama.
O homem sentou-se na cama ao lado do cadáver e pegou um cachimbo de um de seus bolsos. Enquanto acendia, ele olhou para mim e para ela.
"Você sabe muito sobre essas criaturas e rituais para chamá-las, rapazinho. Como posso acreditar que não foi você quem a chamou e o matou?
"Minha mochila está na entrada principal, acabei de sair da escola. Eu estava passando, quando o choro de medo. Você pode verificar facilmente. Com meus amigos, meu professor, até com meu pai, se você quiser. Estou dizendo a verdade".
O cachimbo teve um efeito calmante:
"Você me impressionou, garoto. E isso não é uma coisa fácil de fazer ao velho Ambrosius. Ainda assim, você está muito calmo para estar em um quarto com um cadáver e um demônio."
"Eu trabalho no necrotério com um amigo meu. Estou aprendendo a ser um investigador Criminalista. Esse não é o primeiro corpo que eu vi. Estou bastante acostumado a isso. Muitos deles em um estado de decomposição ou mutilação muito pior que este".
Isso pareceu ter atingido o alvo, porque ele baixou a guarda contra mim.
Aproveitei isso e me aproximei da garota e a segurei em um abraço apertado e caloroso.
"Ei, garota, está tudo bem agora," eu disse em voz baixa e suave, "Você pode voltar para sua mãe. Aquele que te chamou não está mais aqui, meu bem."
"Você vai me deixar ir?", ela levantou o rosto com um olhar suspeito, não acreditando nas minhas palavras.
Rapaz, ela era linda.
Sim, querida, você foi pega no meio de uma grande confusão. Mas, isso não foi culpa sua. Você pode voltar para o seu lugar agora. Tudo vai ficar bem".
"Eu... não posso...", ela disse quase gemendo, "Eu estou presa neste quarto."
"O que você quer dizer com isso?", olhei para Ambrosius em busca de uma resposta:
Ele varreu a sala com os olhos:
"Ela quer dizer que ela está presa aqui por um selo. Ela não pode sair até que encontremos a coisa e a removamos. Isso explicaria por que ela não voou para longe, quando eu a ataquei com o Athame".
"Então, ela está presa aqui. É claro que o assassino queria que você a encontrasse dentro do quarto com o corpo. Então, ela não pôde sair. Isso faz todo o sentido".
Ele se moveu para a porta e sorriu:
"Aqui, dê uma olhada nessa parte da madeira.
Havia um símbolo estranho, que eu nunca tinha visto antes. Estava escrito em giz branco na madeira. Não pudemos vê-lo antes, porque a porta se abria para dentro do quarto.
Ele limpou o selo, com a manga do casaco.
A menina sorriu, e antes que pudéssemos dizer alguma coisa, desapareceu no ar. No lugar onde ela estave, deixou um cheiro horrível de ovos podres e uma fumaça escura.
"Enxofre, é o resíduo de um teletransporte. Cheira muito mal, hehehe", disse o homem, "Isso cuida da nossa pequena amiga. Agora, e nós? Veja, garoto, eu preciso chamar a polícia e prefiro que você não esteja aqui, quando chegarem. Odiaria responder as perguntas deles. Então, divirta-se com os seus estudos. E dê o fora. Para ser honesto, eu acho que você vai ser um ótimo CSI. Mas, isso é uma pena, você poderia usar seu OLHO para fazer algo muito bom. Disso, eu tenho certeza".
Ele pegou um cartão no bolso e me ofereceu:
" E se você encontrar algum problema, como este, basta ligar. Aqui, pegue meu cartão. Você certamente vai precisar dele algum dia, por causa do seu OLHO".
Eu peguei o cartão. Eu tinha um monte de perguntas para fazer a esse homem. Mas, ele estava certo. Eu precisava sair daquela cena de crime, antes que atraísse atenção.
Eu li o cartão:
Ambrosius D. Goldenberg
"Artigos e Antiguidades"
Desde 1941
Rua Curuzu, 432
Telefone: 445-2442
Era um belo cartão bege. Tinha um brasão esculpido no papel. Tudo bem artístico. Tive a sensação de que não seria a última vez que nos veríamos.
"Visite minha loja algum dia", ele disse, "agora vá embora. Seus pais devem estar preocupados."
Dei-lhe um aperto de mão e fui até à entrada, onde tinha deixado a mochila.
Eu não iria mais correr no parque. Minha cabeça estava cheia de possibilidades e perguntas. Era difícil domar meus pensamentos. Tudo se movendo muito rápido para processar. Então, voltei ao ponto de ônibus e fiquei esperando.
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