― Quanto mais tempo passa, mais burro o Dallon fica. ― Disse Leilani, sentando-se em uma das cadeiras dos salão de dança. Ela sempre se impressionava em como magia era incrível.
Cada uma das pontes possuía uma sala especial no Templo Espiritual, e essa sala se adequava aos gostos pessoais de cada um. No caso de Aeris, era uma sala de piso laminado, barras metálicas afixadas no chão e um grande espelho em uma das paredes. Havia uma área de lazer mais a fundo da sala, mas ela era pouco utilizada, já que nas raras ocasiões em que Aeris aparecia no Templo Espiritual era para treinar ou para dançar, no meio da madrugada. Ela tinha alguns problemas? Sim, com certeza, mas ninguém precisava saber disso.
Desde que se entendia por gente, Aeris era apaixonada por dança, principalmente balé. Leilani não se impressionava pelo fato. Ninguém teria aquela graciosidade naturalmente.
― Você é tão princesinha, Aeris. ― A garota disse, observando a outra, que simplesmente mostrou a língua para Leilani. ― Infantil.
― Você quer chá? ― Aeris perguntou, ignorando o comentário. Ela já tirava um bule sabe-se lá de onde e derramava o líquido quente em uma xícara.
― Você sabe que eu detesto chá. ― Leilani respondeu, revirando os olhos. ― E eu sei que você também não é muito chegada nisso.
Aeris deu de ombros, levando a xícara aos lábios.
― Eu já disse que o Kazuo não está interessado em ser “retribuído por tudo que ele fez por você” ou sei lá. Você tem um complexo, Aeris.
A mulher franziu o cenho. ― Eu não tenho um complexo. Qual o problema de querer retribuir a gentileza dele?
― As pessoas não são gentis porque querem algo em troca, cara. ― Leilani revirou os olhos. ― E você sabe que ele ficaria super ofendido se achasse que você o vê dessa maneira.
― Realmente. ― Uma voz chamou a atenção das duas. Falando no diabo….
O kitsune ruivo se encontrava no batente da porta, a bata de seus trajes vermelhos poucos centímetros acima do chão. Tinha os braços cruzados e o semblante sério.
Leilani conseguia levá-lo a sério naquela forma. Não haviam orelhinhas e caudas fofinhas para passar a impressão de que ele era um kitsune adorável, e aquele cenho franzido definitivamente mostrava seu verdadeiro eu.
― Kazuo! ― Leilani exclamou, exibindo um sorriso exagerado para o homem. ― Diga para a Aeris que ela está sendo insensata.
― Você está sendo insensata, Aeris. ― Ele balançou a cabeça, aproximando-se das duas e sentando-se graciosamente em uma cadeira. Leilani detestava quando ele fingia ser sofisticado e elegante daquela maneira.
― Está vendo? ― Ela se virou para a outra. ― Todos concordamos.
Aeris fez uma careta, desviando o olhar dos dois. Kazuo alcançou o bule, colocando chá em uma das xícaras. Leilani reprimiu um riso.
― Eu não tomaria isso se fosse você. ― Disse ela. ― Não é segredo que a Aeris é um desastre na cozinha.
Kazuo deu de ombros. Tomou o chá, mesmo assim. ― E como vai a nova Ponte Dracae? ― Perguntou, sem fazer uma careta ao engolir aquele líquido horrendo.
― Ele é um bom garoto. ― Disse Aeris, sorrindo. ― Muito fofo. Eu senti um pouco de dó enquanto eu o assistia treinar com Laz.
Kazuo franziu o cenho, como se algo não estivesse certo. Leilani pensou que seria o chá, mas Aeris o conhecia melhor.
― Eu sei que você não confiava no tio dele, Kazuo, mas não é a mesma coisa. ― Ela diz, cruzando os braços.
― Não é só o tio dele. Eu não confiava na avó, nem em nenhuma das pontes antes dela. A família Foster é suspeita.
― Você sabe bem que não se deve julgar alguém por sua família.
Agora, haviam poucos momentos em que Aeris ficava com raiva. Ela era uma pessoa que acreditava, de todo o coração, que nada se resolve quando se perde a paciência. Talvez por isso ela e Kazuo se davam tão bem.
O kitsune era o contrário. Por mais que sua raça inteira seguisse o preceito de equilíbrio espiritual e psicológico, ele era um homem de pavio curto que detestava levar desaforo pra casa. A fachada calma e ponderada dele caía aos pedaços diante da menor afronta, e todos do Conselho sabiam daquele fato. Alguns usavam aquilo para se divertir, como era o caso de Leilani e Nikolai, enquanto outros preferiam não provocá-lo.
Aeris era o meio termo. Ela não tinha medo de começar ou terminar uma discussão com ninguém, e ele não era exceção.
Kazuo realmente apreciava aquilo, o fato de que ela conseguia ser sincera com ele. Estava cansado de sicofantas.
― Sem contar que ele não é como as Pontes anteriores. ― Disse Aeris. ― Ele não cresceu nesse mundo, como os outros. Ele não é como Tristan, Dallon ou Leilani.
― Mais motivos para duvidar dele. ― Kazuo cruzou os braços.
― Só porque ele é de fora? Só porque ele não tem conexão nenhuma com Terra Pax? ― Aeris levantou a voz. ― Quer dizer que você não confia em mim, também?
― Eu não disse isso, Aeris. ― Kazuo suspirou. ― Você sabe que eu confio em você.
― Então por que não confiar nele? Por que não dar a chance para um garoto que teve seu mundo revirado por um assunto que nem lhe diz respeito?
― O assunto lhe diz respeito, sim.
― Ninguém escolhe a família que ascensão, Kazuo. Ninguém pede por assuntos de família. Uma criança não deveria ter que carregar o fardo de seus antepassados. ― Aeris disse, com raiva. Ela se levantou rapidamente, derrubando algumas xícaras e assustando Leilani. Dirigiu-se até a porta com passos pesados.
Kazuo soltou um suspiro, pegando os cacos de porcelana do chão. ― Me surpreende que você não tenha perdido a paciência. ― Disse Leilani.
― Aeris já passou por muita coisa. ― Ele respondeu. ― Ela tem razão, de qualquer maneira.
Leilani não mencionou o fato de que ele admitira estar errado. Imaginava se ele o fazia quando seu adversário não era a mulher.
― Eugene é um cara legal. Não faria mal a uma mosca, tenho certeza. ― Tentou assegurar o kitsune.
― Esse tipo de inocência não vai fazer bem para ele. ― Kazuo bufou, revirando os olhos.
Leilani suspirou. Sabia que era verdade, sabia que gentileza não valia muita coisa quando se tinha que lutar por sua própria vida e a vida de várias outras pessoas. O peso era grande demais, e nenhuma simpatia ou delicadeza sobrevive à pressão constante.
― Ele vai aprender isso, cedo ou tarde. ― Kazuo disse. ― E se vocês continuarem passando a mão na cabeça do garoto, vocês podem ter certeza de que a queda vai ser violenta.
Kazuo se levantou, deixando a xícara de chá na mesa. ― Aeris devia parar de fazer chá. ― Ele murmurou, arrancando uma risada de Leilani.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios do kitsune, e ele bagunçou os cabelos de Leilani. ― Se vocês estão dizendo que ele é confiável, eu vou parar com as dúvidas, por enquanto. ― Ele disse. ― Obrigado por se aproximarem dele.
― Quando você diz assim, faz com que eu me sinta mal pelo garoto. ― Ela suspirou. ― A gente não fez isso só por você, espero que você saiba disso. Na verdade, Aeris queria muito tranquilizá-lo sobre essa história toda, ajudá-lo a se acostumar com isso tudo. O encontro de hoje foi só uma maneira de nos aproximarmos dele. Aliás, como você sabia que os dois estariam no Arsenal hoje?
Kazuo deu de ombros, dando as costas para Leilani. ― Um passarinho me contou. ― Ele disse, saindo do cômodo, voltando para seus afazeres de praxe.
Aeris caminhava pelos corredores quase infinitos com o coração acelerado, o rosto ainda quente devido à raiva que borbulhava em suas veias. Gostava muito de Kazuo, mas ele era capaz de dizer coisas sem senso algum que, honestamente, eram impossíveis de se ignorar.
Ela chegou em uma bifurcação, uma que ainda não acontecia. Não passava tanto tempo perambulando pelo lugar, não era surpresa que não conhecesse aquele lugar. Imaginava se conseguiria realmente chegar a algum lugar. Bem, quando não se sabe aonde vai, qualquer caminho é o certo. Pelo menos era isso que diziam.
Virou a esquerda, sem se preocupar muito se seria capaz de voltar ou não. Era horrível com direções, provavelmente não conseguiria voltar à sua sala, de qualquer maneira. As paredes gradualmente tornavam-se vermelhas, ao invés do laranja habitual.
Provavelmente entrava na ala designada para Arkiel e Dallon, se não estava enganada. Cada raça principal possuía uma cor, se lembrava de uma aula aleatória de história. Cada uma possuía um significado, mas Aeris nunca se importou o suficiente para tentar gravá-los.
Virou mais alguns corredores, notando a súbita falta de janelas e a maior presença de luzes nas paredes. Revirou os olhos. Aquilo provavelmente era coisa de Arkiel, que era mais preocupado com a estética das coisas do que com funcionalidade.
O ambiente cada vez mais escuro e fechado fazia com que Aeris se sentisse cada vez mais presa, ansiosa e irritada. O objetivo daquela caminhada era se acalmar, e aquelas paredes vermelhas e corredores demais para portas de menos causava o efeito contrário na mulher.
Quase virando mais um corredor, percebeu um quadro na parede, mais iluminado do que o resto do lugar. Três pessoas de vestes negras olhavam para ela, todos com a mesma expressão entediada. Duas delas eram familiares, mas Aeris não conseguia lembrar-se de jamais ter visto a terceira.
Todos eles eram assustadoramente parecidos. Aeris tinha um certo medo irracional de gêmeos, e os irmãos na pintura certamente provavam que ela estava certíssima em ter o receio.
Uma das pessoas sentava-se em uma poltrona, e as outras duas estavam de pé à sua direita e esquerda, um de braços cruzados e o outro com os dedos entrelaçados na frente do corpo, respectivamente. Aeris sabia quem eram os dois irmãos de pé, já tivera o desprazer de falar com eles.
Arkiel era o homem parado à direita, com sua pele fantasmagoricamente pálida e os olhos azuis. Ele olhava para ela como se não possuísse uma alma, e Aeris, honestamente, não se surpreenderia se aquele fosse o caso. O homem à esquerda era seu irmão gêmeo, Sael. Ele parecia um pouco menos morto que o outro, mas a insatisfação em estar ali era quase palpável.
Agora, a pessoa sentada era a que levantava dúvidas. Era uma mulher, muito parecida aos dois irmãos. Tinha os cabelos negros e longos, e era a única que tinha um sorriso em seus lábios. Quase imperceptível? Sim. Meio assustador? Claro. Ela era, provavelmente, um ghoul, afinal.
Seria sua mãe? Parecia muito jovem, mas Aeris sabia que ghouls envelhecem até certo ponto, e muito lentamente. Talvez uma prima? Isso não explicaria a semelhança, porém. Uma irmã?
Outras perguntas importantes: por que aquele quadro estava ali, no meio de um corredor escuro, no meio do nada? Não havia porta alguma por perto, e Aeris estava andando já a algum tempo. Quem penduraria um quadro em um lugar deserto? Principalmente um quadro de família?
Aeris não queria se envolver nos conflitos da família Raziel. Certamente havia um motivo para a situação, mas quanto menos tempo ela gastasse pensando em Arkiel, melhor.
Deu de ombros, virando o corredor, deixando aquele quadro estranho para trás.
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