O kitsune sentou-se na frente da raposa prateada, fazendo uma pequena reverência com a cabeça para cumprimentá-la.
O lugar era uma sala ampla e branca, do chão até o teto. Kazuo não sabia ao certo quão grande era aquela sala, já que suas paredes eram espelhos. A raposa prateada se sentava em um trono dourado exageradamente alto para um ser tão pequeno.
― Tenko-sama. ― Ele disse, respeitoso. A forma da raposa tremeluziu, e logo uma forma humana estava à sua frente. Era uma mulher de pele pálida e olhos dourados. Seus cabelos com eram como fios de prata, longos e reluzentes.
― Okumura Kazuo. ― A kitsune disse,. retribuindo a breve reverência dele. ― Como foi sua visita ao Templo? Você demorou.
― Visitei Aeris antes de passar por aqui. ― Explicou. ― O Templo está nas mesmas condições da última vez. Por isso, eu continuo com a minha proposta.
― Sua proposta é tola, Okumura. ― Uma voz familiar se intrometeu. Watanabe Daisuke, um kitsune shouzaa, supervisor das raposas, parava ao lado de Tenko-sama. O cérebro de Kazuo provavelmente considerou-o tão insignificante que simplesmente ignorou sua presença. ― O Templo não pode ser destruído.
Watanabe Daisuke era um kitsune alguns anos mais velhos que Kazuo, e achava que ele entendia alguma coisa sobre o mundo. Ele tinha os cabelos um pouco mais claros que os do ruivo, a pele era tão pálida quanto uma folha de papel e seus olhos eram dourados. Sua expressão habitual era uma que Kazuo normalmente descreveria como “um pirralho metido a besta”.
― Por que não? ― Ele perguntou, se levantando. Não queria perder a calma na frente de Tenko-sama, mas Watanabe tinha o dom de tirá-lo do sério.
― Além do fato de que centenas de Reikos vivem naquele lugar? ― Watanabe retrucou. ― Ah, razão nenhuma.
― Reikos são malignas. Aquele Templo é um perigo para aqueles que moram em volta. ― Kazuo cruzou os braços. ― Não faz sentido colocar fantasmas numa posição de maior importância do que seres vivos.
― Okumura. ― Tenko disse, a voz baixa e doce, como se tentasse acalmar uma criança. ― Talvez sejam apenas reflexos das almas que um dia pertenceram à kitsunes, mas as Reikos ainda nos dizem respeito.
― Exatamente. ― Kazuo assentiu. ― E por isso deveríamos destruir aquele Templo e finalmente oferecer paz aos seres de lá.
― Não é assim que as coisas funcionam, Okumura. ― Watanabe suspirou, como se Kazuo fosse estúpido.
O ruivo teve de contar de um até dez para se acalmar. Watanabe era uma raposa mimada que não sabia como o mundo funcionava, mesmo sendo supervisor das Kitsunes. Ele não vira a morte, ele não vira desespero, e ele definitivamente não via nada além do próprio focinho.
Se Tenko-sama não os observasse, Kazuo certamente já estaria estrangulando Watanabe. Respirou fundo.
― Eu, mais do que ninguém, sei da importância daquele Templo. ― Ele disse, cruzando os braços. ― Caso você tenha esquecido, Watanabe, aquele é o Templo Lián. Pertence à minha família, foi construído por meu tataravô, Yángguaáng Jun. Baseando-se na minha posição dentro e fora da comunidade Kitsune, eu sou o único que tem poder para decidir o destino do Templo, além, é claro, de Tenko-sama.
Watanabe torceu o nariz diante das palavras de Kazuo. Era a mais pura verdade, e ele sabia. Era de conhecimento geral que aquela discussão sobre o Templo Lián só existia por causa de Kazuo, que fora firme em suas opiniões sobre a manutenção do lugar. Tenko-sama parecia pensar profundamente sobre o assunto, seus olhos fechados como se ela estivesse adormecida.
Watanabe deu um sorriso sarcástico. ― Então você prefere colocar lobisomens e seus protegidos acima dos nossos e de nossa cultura? ― Ele levantou uma sobrancelha para Kazuo. ― Talvez, afinal de contas, você não seja a melhor escolha para o Conselho, se vai colocar todos os outros acima daqueles que você deveria proteger.
Kazuo franziu as sobrancelhas e Tenko abriu os olhos, curiosa para ver a resposta do kitsune àquela afronta.
Kitsunes prezavam sua cultura e seu povo acima de tudo. Eram raras as situações em que uma decisão difícil deveria ser tomada, pois todas as soluções para todos os problemas eram sempre as opções que os beneficiavam ou não os afetavam de alguma maneira.
Derrubar o Templo Lián era uma ideia absurda. Era um poço de história para o povo, sem contar que várias Reiko, espíritos de Kitsune, viviam no lugar. A decisão só estava sendo considerada por causa de Kazuo, e todos sabiam do fato. A maioria era contra as ideias do kitsune, enquanto outros eram abertos a novos pontos de vista. Convencer um ser de mil anos, porém, era uma tarefa complicada.
A discussão estava aberta a meses. Começara com alguns ataques mínimos das Reikos aos arredores do Templo, que ficavam em território dos lobisomens e de seus protegidos. Realmente se tornou um problema com os desaparecimentos e as mortes, algumas semanas depois.
Lobisomens não eram criaturas frágeis. O mais novo dos lobisomens possuía uma força maior do que alguns kitsunes adultos. Era algo cravado em seu ser, seja por magia ou genética. Machucar aquelas criaturas era trabalho de algo ou alguém com força o suficiente para erguer um caminhão com apenas um braço, e só havia uma possibilidade.
Os lobisomens chegaram àquela conclusão rapidamente. Logo, a alcatéia principal estava pedindo por respostas. Seu representante no Conselho, Nikolai Volkov, não medira esforços quando decidira confrontar Kazuo, que não sabia do caso.
Ninguém nunca me diz nada nessa porra, ele pensara. Ouvir as notícias de um lobisomem era um novo baixo em sua vida.
― Quando eu ouvi as notícias, de um Volkov, imagine só, eu instantaneamente soube do que se tratava. ― Ele começou, depois de um longo suspiro. ― As únicas criaturas atualmente capazes de fazer com os lobisomens o que fizeram são os Dracae e Kitsunes de guerra. Sabemos que não foram os Dracae, eles não são do tipo.
― E nós somos? ― Watanabe questionou.
― Primeiramente, não se trata de “nós” e “eles”, Watanabe. Não mais. ― Disse Kazuo. ― Essa guerra fria entre lobisomens e Kitsunes já acabou, mas todos adoram trazê-la à tona, quando lhes convém, não é? Isso vai contra nossos ideais.
― Você dizendo que algo vai contra nossos ideais? ― Riu Watanabe, levantando sua voz. ― Logo você? Okumura, você é a última raposa que pode….
― Watanabe. ― A voz de Tenko-sama interrompeu o discurso do kitsune.
― Como eu dizia, antes desse escândalo, usar conflitos já passados para conseguir o que queremos vai contra nossos ideais. É desonroso. Usar os nomes de nossos antepassados, guerreiros que morreram para que a paz fosse alcançada, falar de seu sacrifício como se fosse um mero capricho, como se fosse uma simples razão para bajulação no futuro…. ― Kazuo disse. Olhou para Watanabe, sem expressão alguma em seu rosto, mas os dois sabiam quem havia ganhado aquela discussão. ― Não é preciso grande capacidade intelectual para ver o que há de errado nesse pensamento. Se prezamos pelo equilíbrio e pela paz, se prezamos pelo futuro… Por que trazer um passado sangrento à tona? Nosso povo merece mais.
― E esse “mais” é a destruição de nossa história? ― Tenko-sama questionou, entrelaçando seus dedos em seu colo.
― Nem sempre a escolha certa parece a melhor. ― Kazuo disse. ― Mas eu creio, de todo o meu coração, em nome de meus antepassados, que o Templo Lián é um peso desnecessário na balança. Não estou dizendo que destruí-lo será um processo simples ou livre de consequências, mas escolher o alívio e equilíbrio imediato nunca é o melhor caminho.
A sala mergulhou em silêncio. Kazuo questionou se suas palavras foram as adequadas naquela situação. As dúvidas desapareceram quando viu o pequeno sorriso no rosto de Tenko-sama.
― As chamas no seu olhar me lembram de velhos amigos, Okumura Kazuo. ― Ela disse. ― Saiba que eu ainda não aprovo a destruição do Templo, mas eu autorizo investigações a fundo por parte do Conselho, desde que você esteja envolvido.
Kazuo não percebeu que segurava sua respiração até soltá-la. Um leve sorriso de vitória formou-se em seus lábios, e ele não pode evitar erguer dois dedos do meio, com pura satisfação estampando seu rosto, e mostrá-los para Watanabe. Teria dito algo obsceno caso Tenko-sama não estivesse presente.
― Dispensado, Kazuo. ― Ela disse, um leve tom de risada em sua voz.
Ele deu uma reverência a ela e virou as costas, triunfante. Pena que uma desgraça lhe esperava na porta da sala.
Ele não percebeu a presença das três figuras até que uma delas o chamou. ― Eu nunca ouvi tanta merda saindo da sua boca. ― Uma voz familiar disse.
Kazuo se virou para ele, torcendo o nariz.
Um homem alto, de olhos cinzentos e cabelos pretos parava à sua frente, vestido em vermelho e preto como se fosse enfrentar o pior inverno da história.
― O que você está fazendo aqui, Nikolai? ― Ele franziu o cenho.
― Acredite ou não, foi uma coincidência.
― Você sabe que coincidências não existem.
― Não. Eu sei que você acha que coincidências não existem. Duas coisas diferentes, malen'kaya lisa. ― Nikolai riu.
― Por que você o trouxe aqui? ― Virou-se para outra das figuras. Uma mulher de pele negra, cabelos adornando sua face em dreadlocks e olhos dourados observava a cena em silêncio.
― Ele queria uma reunião com Tenko-sama. ― Ela deu de ombros. ― Mas vimos que você já resolveu maior parte do problema.
Aquela era Genevieve Allis, a representante dos magos. Ela era uma feiticeira sensacional, a razão de um Volkov e a ponte dos lobisomens estarem ali, em área Kitsune. ― Como sempre. ― Kazuo revirou os olhos. Virou-se para Nikolai. ― E você não reclame do que eu disse lá dentro.
Nikolai soltou uma risada. ― Não finja que não gostou. Deve ser incrível finalmente vencer uma discussão. ― Ele disse. Antes que Kazuo pudesse retrucar, o acompanhante dos dois representantes chamou-lhes a atenção.
― Agora que uma investigação foi autorizada, deveríamos entrar em ação o mais rápido o possível. ― Disse ele. ― São doze desaparecidos e seis mortos, entre lobisomens e protegidos. O Templo precisa ir.
Tristan Kabir era um homem de quase dois metros de altura, a Ponte mais velha atualmente, com vinte e três anos. Ele tinha a pele negra, olhos castanhos e físico assustadoramente forte, mesmo que fosse um humano. Ele era um homem sensato, e talvez ele fosse a razão pela qual Nikolai e Kazuo raramente saíam na mão.
― Não sabemos se é o Templo. ― Disse Genevieve. ― Por isso a investigação. Honestamente, eu não sei a probabilidade de realmente serem espíritos se Kitsune que estão causando toda essa carnificina.
― Você não conhece as Reiko. ― Kazuo suspirou. ― Pior ainda, você não conhece a guerra fria de Kitsunes e Lobisomens. São vários fatores empilhados um em cima do outro, um grande feixe de lenha esperando ser jogado na fogueira.
― Sem contar que não há outras opções. ― Nikolai cruzou os braços. ― Não são Dracae, e Lazuli sentiria alguma coisa.
O Kitsune franziu o cenho. ― Como assim, Lazuli sentiria alguma coisa? ― Se Nikolai tivesse levado o Dracae para o Templo, Kazuo certamente o estrangularia.
― Eu não levei Laz para o Templo, Okumura. ― Nikolai revirou os olhos. ― Ficamos do lado de fora. A memória dos seus antepassados não foi manchada por um Dracae e um Volkov, fique tranquilo.
― Adoraria ver vocês discutindo, mas eu não tenho o dia todo. ― Disse Genevieve. ― Então, vamos logo para o Conselho, que tal? Precisamos preparar o caso.
Kazuo detestava preparar casos. Ele era uma pessoa de ação, não de papelada.
O grupo estava sentado em Occurens Locus, a sala de reuniões do Conselho, acompanhados de mais uma pessoa.
Lazuli Bellator, um Dracae de estatura baixa, cabelos e olhos brancos e pele morena sentava-se à mesa sem expressão alguma. Esperava Nikolai terminar com os papéis para poder preenchê-los.
Kazuo honestamente não entendia porque Laz estava lá. Gostava muito do Dracae, de verdade, e eles eram próximos, mas não via qual era a relação.
Terminou com seus papéis e os jogou para Genevieve. Ela os acompanharia, pois mesmo que o Templo que visitaram pertencesse aos Kitsune, ele ainda estava em território lobisomem.
― Sabe qual seria uma boa resolução para essa intriga toda? ― Lazuli disse, chamando a atenção de todos. ― Culpar os ghouls. Poderíamos dizer que achamos fios de cabelo branco e os ligamos aos irmãos Raziel. Expulsaríamos Arkiel do Conselho e todos vivemos felizes para sempre.
O quarto mergulhou em silêncio.
― Você não pode fazer isso. ― Genevieve disse, enquanto Nikolai segurava uma risada.
― Eu poderia, sim. ― Disse Laz. ― Seria antiético? Sim. Eu provavelmente abusaria de minhas habilidades e deixaria todos vocês com danos mentais irreparáveis? Também. Mas eu poderia, e esse é o ponto.
Nikolai começou a rir. ― Poderíamos dizer que os vampiros também estavam envolvidos. ― Ele sugeriu.
― Sim. Eles são insuportáveis. ― O Dracae concordou. ― Por que não jogamos o clã Summerdale, também? Nunca vi elfos tão filhos da…
― Ok! A conversa acabou. Não vamos incriminar ninguém, Laz. ― Genevieve disse.
Kazuo revirou os olhos. ― Aposto que os Kitsune ficariam contentes se o fizéssemos.
― Ser orgulhoso está no DNA das raposas? ― Nikolai ergueu uma sobrancelha.
― Não sei. Ser casmurro é um traço genético da alcatéia?
― Energúmeno. ― Nikolai soltou.
― Javardo. ― Kazuo retrucou.
E assim começou o pingue pong de insultos. A cada rodada as palavras ficavam mais e mais absurdas (“devasso!”, “saloio!”) e chegou até a insultos nas línguas de cada um. Kazuo estava em vantagem, já que falava japonês e mandarim, mas Nikolai era bem criativo em russo.
― Eu não acredito que eu trabalho com duas crianças. ― Genevieve suspirou, massageando as têmporas, enquanto Laz aproveitava para pegar os papéis de Nikolai, preenchê-los e dar o fora dali. Já havia presenciado vitupérios o suficiente durante seus quase cinco mil anos, e acaba que faltava provocação ali.
― Eu vou embora, crianças. ― O Dracae disse, interrompendo a discussão dos dois representantes. Genevieve parecia traída, provavelmente nada feliz em ser deixada sozinha com os dois. Tristan também não parecia muito feliz. ― Tenho que inventar um treinamento para Eu…. ― Parou no meio da frase, como se tivesse uma ideia. ― Quais são as chances de Eugene participar dessa missão?
Tristan deu de ombros. ― Podemos encaixá-lo, mas é perigoso demais para alguém tão inexperiente. ― Ele disse. ― O garoto poderia morrer.
― Constrói caráter. ― Laz disse, dando de ombros. Deu as costas para os colegas e teleportou dali.
Comments (0)
See all