— Precisamos conversar — disse Luiza, uma mulher baixa, com cabelos curtos e negros, assim como seus olhos. Suas asas eram completamente cinzas, e menores que as de Ana.
Ana estava cozinhando e se sentiu aliviada ao perceber que havia uma razão para Fernanda e Laura terem parado de se mover. Por um momento, pensara que tinha perdido controle sob seus poderes.
— Nem um "olá", Luiza? Você mudou. Antes me cumprimentava — riu.
— Você tem um filho.
O sorriso de Ana desapareceu.
— Você estava bem perto de abrir mão da sua divindade. Mas você sabe que não podíamos permitir isso. Não podíamos. Mas você sabe que isso mudou agora, não sabe?
— Não! — Ana gritou.
— Não é isso que você sempre quis? Ser humana? Você pode agora. Mas sabe qual será o destino de Miguel se isso acontecer, né?
— Não! — gritou novamente. — Até poucos dias atrás, ele não sabia de nada. Não vou jogar esse fardo sobre ele!
— Então sua única opção é voltar.
— Não!
— Ana — Luiza respirou fundo e segurou suas mãos —, você sabe que eu nunca faria isso com você, né? Ordens são ordens... E por mim, você e seu filho continuariam aqui o quanto quisessem. Mas a decisão não é minha. E eles vão querer sangue divino para substituir sangue divino.
— Mas eu... Eu não posso! Eu tenho uma família aqui! Uma família que me ama e que eu amo também! Eu não posso... Simplesmente deixá-los pra trás!
— Eu sei, irmã, eu sei. Mas você sabe como eles são burocráticos... Mesmo você não fazendo falta... Pra mim, seu trabalho já está completo... Sinto muito, Ana. Eu tentei convencê-los a te deixar em paz, mas... Você sabe como alguns deles são... Mas eu estou sempre do seu lado. Não se esqueça disso.
— Eu sei. Obrigada.
— Vamos dar um jeito, ok? — disse ao massagear a mão de Ana com o polegar.
Ana assentiu, torcendo para que Luiza não visse as lágrimas se formando em seus olhos.
***
— Miguel, você tem certeza disso?
— Não, mas eu não tô vendo nenhuma outra opção.
— Tem seu pai e sua mãe...
— Não! — Miguel não gritou, mas a raiva estava perceptível em sua voz.
Marco suspirou e ergueu as mãos como se estivesse rendendo-se.
Estavam à beira do lago novamente, Miguel determinado a testar suas próprias habilidades.
Marco tentou calar-se, mas seu medo não permitiu que ele deixasse Miguel arriscar sua vida desse jeito.
— Miguel, por favor. Você... Você não faz ideia do que você pode fazer. Você... viu o que você fez nessa floresta — apontou para as árvores ao seu redor, marcadas por cortes, queimadas e algumas derrubadas devido aos ataques de raiva de Miguel e sua impossibilidade de controlar seus poderes. — Você não pode se arriscar assim... Eu não quero que você se arrisque assim.
Miguel franziu o cenho e aproximou-se de Marco. Acariciou sua bochecha com uma das mãos.
— Marco, você tava aqui naquele dia. Você viu que você age como... Como um... Um freio. É como se... você, sua presença... controlasse... seja o que for isso.
— Não, Miguel. Não. Não é sobre mim, é sobre suas emoções.
— Sim, mas... Mas você me acalma, você me faz sentir seguro, você... me deu um lar.
Miguel fechou os olhos e pensou em todos os sentimentos ruins das últimas semanas: sua mãe o chamar de aberração, descobrir que seu pai é — tecnicamente falando — um demônio, ter sido capaz de machucar Marco... Só de pensar nos acontecimentos que o transformaram numa bomba-relógio, foi capaz de sentir toda a raiva que sentira naqueles momentos. Como da última vez que Marco teve que resgatá-lo nessa mesma floresta, sua aparência começou a mudar, adquirindo características pertencentes a demônios na visão humana: garras, presas e chifres. Com as mãos trêmulas, acariciou o rosto de Marco levemente, o qual segurou uma de suas mãos e beijou-a. A aparência de Miguel logo voltou a ser humana.
— Viu? — Miguel perguntou sem tirar os olhos dos de Marco.
— Mas... E se eu não for suficiente? E se... Você perder o controle e eu não for o suficiente para te fazer ganhar o controle novamente?
— Eu não vou te machucar.
— Eu sei que não, anjo. Mas você pode se machucar.
Miguel sorriu com o apelido.
— Vamos fazer o seguinte — Marco continuou —, hoje você me leva pra um passeio bem romântico nas alturas e amanhã você treina.
Miguel bufou.
— Qual a diferença entre eu treinar hoje e amanhã? E o passeio tem que ser à noite.
— Até amanhã eu me acostumo com a ideia — riu.
Miguel revirou os olhos.
— Bom, já que já estamos aqui... — Miguel disse ao tirar a blusa e se jogar no lago. Fez questão de molhar Marco depois, o qual riu e também entrou no lago.
E lá ficaram por um bom tempo, trocando olhares e sorrisos bobos até que a fome chegou.
***
Por volta das sete horas da noite, Marco estava tão inquieto que já estava saltitando. Miguel estava se divertindo com a situação.
— Segura firme — Miguel disse por fim ao pegar Marco no colo. Sorriu e deu um beijo na testa dele
Marco estava embasbacado com a vista. Miguel também, mas seu campo de visão era um rapaz de cabelos pretos e olhos verdes maravilhado com o mundo. Para Miguel, parecia que ele se apaixonava mais ainda por Marco com cada segundo que passava.
***
Miguel acordou com Simba pulando na cama. O gato miou e se esfregou em suas mãos, pedindo carinho.
— Simba, não! — Ouviu Marco dizer.
—Tudo bem — Miguel falou em tom preguiçoso.
— Vim ver se tava tudo bem.
Simba estava na cama e Miguel, ainda deitado, acariciou-o.
— Melhor agora — disse por fim.
Marco sorriu, se aproximou e beijou Miguel.
— Doeu quando você caiu do céu, anjo? — Marco perguntou com um sorriso maroto.
— Não sei. Doeu? — sorriu. Marco corou.
— Você tem que me prometer uma coisa — Marco falou após beijar Miguel mais uma vez.
— Pra você, qualquer coisa.
— Fica calmo. Por favor.
Marco viu a interrogação surgir no rosto de Miguel, mas não falou mais nada. Pegou sua mão e o guiou até a sala, onda Ana lhe esperava.
Ana ergueu-se assim que viu o filho.
— O que ela tá fazendo aqui? — Miguel gritou.
— Miguel — Marco segurou seu rosto com as mãos —, olha pra mim. Ela só quer conversar. E você precisa da ajuda dela.
Miguel exalou, as mãos fechadas em punho.
— Por favor, conversa com ela — Marco pediu.
Miguel suspirou e fechou os olhos.
— Você tem uma chance — disse por fim —, não estrague tudo... De novo.
Apesar das duras palavras, Ana estava feliz por ter uma chance de consertar as coisas com o filho.
Marco fez menção de sair da sala para deixá-los conversar a sós, mas Miguel segurou sua mão e lhe pediu com o olhar que ficasse. Marco o fez e Ana ergueu uma sobrancelha, nada satisfeita com a situação, mas decidiu ficar quieta pois já tinha estragado muitas coisas com seu filho.
— Bom, vamos começar pelo começo — Ana disse. Respirou fundo e continuou. — Eu não posso dizer que criei esse mundo ou esse Universo, mas posso dizer que fui o primeiro ser nesse planeta. Eu simplesmente... Apareci na Terra e tudo que existia era terra e água. Demorou alguns anos, mas descobri que tinha a habilidade de... criar vida. E foi o que fiz. As plantas foram minha paixão por anos, tão lindas e delicadas... E então... Vocês, humanos, evoluíram e... Me cativaram. Cada um... especial a sua maneira. A mente humana é tão... Maravilhosa. Com ela vocês criaram tantas coisas: música, histórias, poemas... Arte! E suas emoções... O amor... Como vocês são capazes de se apaixonar e amar alguém mais do que amam a si próprios... É tão... É tudo que eu sempre quis... Bom, nós podemos visitar o mundo humano às vezes, pra modificar o que for necessário...
— O que quer dizer com isso? — Marco indagou furioso. — Vocês controlam a gente?
— Não é como se pudéssemos mudar vocês, mas podemos influenciá-los a fazer o que julgamos certo. É como se... implantássemos uma ideia em sua cabeça: no fim das contas, a decisão final ainda é de vocês.
Marco não ficou muito satisfeito com a resposta, mas calou-se. Ana continuou:
— A regra é clara: não podemos passar mais que algumas horas no mundo humano, mas ninguém havia tentado ficar aqui mais do que isso... E estou aqui até hoje... — Ana fechou os olhos, parecendo lembrar-se de uma memória muito dolorosa. — Na época, eu e Daniel, seu pai, estávamos juntos. Mas minha curiosidade foi maior que eu. Consegui convencê-lo a se juntar a mim e construímos uma vida juntos. Eu estava vivendo meu sonho. Me lembrava cada vez menos da minha vida anterior... E então seu pai nos deixou... Você já sabe que ele é um “demônio”, certo? — Miguel assentiu. — Bom, não é como se fôssemos inimigos, mas existe certo antagonismo entre anjos e demônios: nós representamos o bem dos humanos, eles, o mal. Eu e Daniel... Apenas nos apaixonamos, não sabíamos do “propósito” alheio. Mas foi inevitável e eventualmente descobrimos: eu crio vidas, ele tira.
— Quê? — Miguel estava de olhos arregalados, o cenho franzido. — Como assim?
Ana suspirou e fechou os olhos novamente. — Não é como se ele saísse por aí de roupas pretas com uma foice na mão matando pessoas — apressou-se em falar. — Ele representa a morte. É uma questão de equilíbrio: alguns morrem, alguns nascem... E acho que é justamente isso que torna suas vidas tão especiais: a certeza da morte. Sem isso, não dariam tanto valor à vida.
Marco tentou debater, mas chegou à conclusão de que talvez Ana estivesse certa.
— Conseguimos deixar esse “detalhe” de lado, visto que não podíamos fazer nada sobre isso. Ele também passou a esquecer da “divindade” de nossas vidas... Até que... Suas asas começaram a nascer. Eu não sei se ele não se lembrou de alguma memória importante, mas ele acreditava que éramos inimigos, apesar de tudo, e pensou que seria mais seguro se afastar de mim. Eu não entendi o porquê e sei que você se culpou por isso, mas nunca foi sua culpa filho. Foi só... Nossas vidas antigas nos alcançando. Sinto muito que tenha ficado no meio dessa bagunça.
Miguel não foi capaz de proferir nada. Ainda estava tentando fazer sentido de tudo aquilo em sua cabeça. Chegou à conclusão de que sua família deveria ser a mais complicada do mundo.
— E por que... — ainda estava confuso, tentando transformar seus pensamentos em palavras. — Por que não me contou tudo isso antes?
— Porque eu não lembrava, Miguel. Depois de tentar falar com você, seu pai me procurou. Ele me fez lembrar de tudo. Desculpe por esconder parte da sua história, mas eu mesma não me lembrava dela... Miguel — Ana tocou a mão do filho e para sua própria surpresa não foi afastada —, acho que o que eu quero dizer com tudo isso é: me desculpe. Por tudo: a superproteção, as vezes nas quais não pude te ajudar, por te impedir de viver sua vida por medo de te machucarem... Entendo que não será tão fácil assim consertar nossa relação, mas você é bem vindo para voltar pra casa quando quiser e estou me dispondo a te ajudar com... Tudo que eu puder.
Miguel não disse nada, mas embalou as mãos da mãe com as suas e deu um leve sorriso.
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