Úmido e fresco, o vento soprava, ventilando os pulmões que trabalhavam como usinas para manter os dois amigos escalando aquele paredão na trilha da montanha. A frente ia Couser, amigo de infância de Valspat, que vinha logo atrás, usando a corda presa a seu colega. Eles planejavam fazer aquela trilha há anos, já esperavam a dificuldade, queria ela, queriam desafios, principalmente depois dos eventos recentes. Couser e Valspat não se falavam há duas semanas, o que era raro, não tiveram desavenças mesmo quando se apaixonaram pela mesma mulher, Sama, que se tornara namorada de Valspat. Foi decidido que não falariam sobre o porquê ou seu motivo. Escalavam com bastante esforço, principalmente Valspat, que tinha um físico mais fraco e já estava cansado da trilha íngreme que percorreram mais cedo. Eles precisavam terminar de escalar logo, uma chuva estava vindo. Eles não estavam contando com i, estudaram o tempo e o clima do lugar e não deveria cair água por pelo menos mais um mês. Aceleraram o ritmo e em mais alguns minutos estavam terminando a escalada. Nos últimos passos para terminar de subir, Valspat já estava exausto, suas mãos raladas e suas juntas doloridas, e isso fez com que não tivesse força para apoiar seu pé com segurança. Seu pé direito escorrega e ele tenta aparar a queda segurando na corda e nas rochas, machucando as mãos, apoiou o pé caído de mal jeito na primeira reentrância que pôde, ferindo o pé. Seu grito ecoou e logo após, a própria natureza gritou de volta, o primeiro trovão se manifestava. Pelo visto não eram bem vindos naquela montanha. Couser, que já havia terminado de subir a encosta, se apressa para puxar seu amigo. Assim que ambos estão no topo, notaram os ferimentos de Valspat e foram apoiados trilha acima para encontrar algum lugar para descansar e realizar o tratamento.
O caminho já estava quase tomado pela flora local, forçando-os a cortar por alguns trechos e lutar contra aranhas e insetos e mosquitos. E havia tantos mosquitos, Couser já estava ficando louco com a quantidade. Tentar espantá-los e apoiar seu amigo ferido ao mesmo tempo era difícil. Ele não esperava ter uma dificuldade como aquela quando foi se aventurar na trilha. Esperava escaladas, atravessar algum curso d'água, desviar de trilhas de animais, enfrentar caminhos íngremes. Carregar seu amigo não estava nos planos e não era um difícil emocionante. Quando começou a escurecer, ambos ficaram surpresos, deveria ter mais duas horas de luz. Eles perceberam que a chuva que vinha não era apenas uma simples chuva. Uma imensidão negra se formava à distância e consumia lentamente o céu, trazendo as nuvens e a terra à escuridão. Eles se apressaram e encontraram uma pequena caverna, onde Couser montou a barraca sozinho e com dificuldade, enquanto Valspat enfaixava as mãos e tratava o seu pé torcido. Assim que estavam dentro da barraca, a entrada fechada e selada, comeram e puderam descansar.
- Vamos precisar usar mais repelente - disse Valspat - Eram tantos insetos, acho que devo ter pelo menos vinte picadas diferentes no corpo.
- Pode dizer que está colecionando lesões. - responde Couser, mal humorado.
- Aquela escalada foi mais difícil que eu esperava, me desculpe ter sido um peso.
- Não se preocupe.
Couser não parecia querer conversa, não olhava para seu amigo, não estava sendo honesto com seu amigo, carregá-lo foi trabalhoso. Ficara desconfortável e sentia que algo estava pronto para atacá-los em um momento de fragilidade. Chegar naquela caverna o tranquilizara. Era uma pessoa que se preocupava bastante com as coisas, sempre achava que algo ruim aconteceria se não estivesse atento, se não estivesse pronto. E desde a discussão que tivera com Valspat, esteve distraído. Voltar a pensar naquilo também era distrativo, mas não conseguia evitar. Sentia-se tonto, a mente pesada, o corpo formigando, sempre que pensava naquilo, era como se estivesse em um lugar além, em um turbilhão escuro de pensamentos e sentimentos. Finalmente virou-se para seu colega ferido, querendo ou não, tinha que verificar se estava bem e como estava se recuperando para continuar a trilha sem mais problemas, assim que a tempestade passasse, o que pelo que parecia, seria apenas no dia seguinte. Poderiam descansar e se recuperar. Valspat estava deitado dentro de seu saco de dormir e parecia febril. "Talvez o ferimento seja mais grave do que parece" pensou Couser.
- Tem que deixar a perna levantada, ter espaço - disse ao amigo ferido - deixe-a fora do saco.
- Mas estou com tanto frio, se deixar ela para fora não vou conseguir me esquentar direito.
- Pare de reclamar, você tem que se recuperar para continuarmos a trilha.
- Você só pensa em terminar a trilha? Não quer aproveitar o ambiente da montanha?
- Aproveitar o que? Os mosquitos? A tempestade?
- Sim! E a mim. A jornada, a aventura, fazermos isso juntos, como...
- Como antes?
Eles ficaram se encarando por alguns minutos. A expressão amigável de Valspat desvaneceu em alguns segundos. Eles tocaram no assunto de novo. "É claro que não conseguiríamos deixar isso de lado estando juntos dentro de uma barraca" pensou Couser, soltando um suspiro.
- Queria que Sama estivesse aqui. - disse Couser - Ela teria toda a paciência do mundo para cuidar de você e faria piadas e todos iríamos rir.
- Não comece, Couser.
Mais uma vez se encararam por algum tempo. Valspat já não conseguia parecer irritado, com a febre só parecia cansado. Ele saiu do saco de dormir se arrastando e o ajeitou sobre o corpo. Couser colocou uma pequena bolsa debaixo do pé torcido. Não trocaram uma palavra. Ficaram ouvindo a chuva e o vento, que estava tão violento que soprava a chuva para dentro da caverna, som das gotas batendo na barraca em contraste com o estrondo que a água e os trovões faziam além da entrada da caverna. Couser ficou olhando para a entrada da barraca, que ficava de frente para a entrada da caverna. A cada relâmpago que iluminava o céu tentava ver a silhueta das árvores, em uma tentativa de se distrair dos pensamentos pesados. Em um rápido relâmpago viu uma silhueta diferente, por apenas um momento, mas sabia que havia visto algo e que não era uma árvore. "Talvez um animal?". Continuou olhando fixamente para o lugar que vira a silhueta, esperando o próximo relâmpago. Quado o clarão chegou, não viu nada além de silhuetas de árvores onde estava a outra sombra, mas no canto de sua visão, apenas como uma impressão, como quando alguém acha que vê algo ao lado e se vira para ver, mas não era nada. Mas dessa vez era algo. Viu por um ínfimo instante, o vulto, bem ao seu lado, do lado de fora da barraca.
Ele perde o equilíbrio e deixa a tontura e a cabeça pesada o derrubar. Olha para cima, na direção de seu amigo, ainda deitado, e em outro clarão viu novamente o vulto, dessa vez no lado de Valspat. Não era humanoide, não poderia, ninguém vivia na montanha e pessoas não costumavam visitá-la. Mas não parecia também um animal comum da região. Não era um lobo ou um urso, o que por um lado é bom, por outro, não saber o que era aquilo era preocupante. Ele procurou a lanterna, pegou o isqueiro e a acendeu. A luz bruxuleava, mostrando a barrava balançando com o vento. O silêncio só era preenchido pelo som da chuva, pontilhado pelas gotas que fraquejavam ao vento e encontravam a lona. Não havia sombra, silhueta ou vulto do lado de fora. Sua tontura o fez demorar para perceber sua respiração ofegante. Valspat lentamente levantava reclamando.
- O que foi agora?
- Vi algo lá fora. - respondeu Couser - Algo estranho.
- Eu que tenho febre e você que alucina? Ou só está querendo me irritar?
- Eu vi alguma coisa! Você só pensa que quero atormentar você? - Couser começava a se irritar. E junto com a irritação, sua cabeça girava. Ou o que girava era a barraca? Seu companheiro? Sentiu-se cansado, pesado, formigando.
- É o que pareceu o dia inteiro! - Valspat finalmente estoura - Não fala comigo, evita interagir comigo, me ajuda somente o suficiente. Age como se eu fosse um fardo. Preferia mais uma pessoa conosco para poder cuidar de mim em seu lugar! - sua voz começava a falhar, estava vermelho e fraco, os olhos lacrimejavam - Acha que sou uma criança que precisa de cuidados!
Ele solta um suspiro, sua cabeça gira, seus olhos reviram e seu corpo cede. Couser vê seu amigo caindo sem reação, sua cabeça latejava e ouvia um chiado agudo e contínuo, a dor amenizava qualquer reação que poderia ter. Finalmente sentiu-se tão cansado que apenas deitou e dormiu, sem se preocupar com seu amigo ou com a silhueta.
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