Ambos dormiram bastante, a chuva continuava, mais fraca, mas persistente. Acordaram e não sentiam que haviam melhorado. Ficaram deitados por algumas horas, sem falar nada, sentindo a cabeça doer. Apenas perto da hora do almoço que falaram um com o outro apenas para oferecer e dividir a comida. Depois de comer sentiram-se um pouco melhor. Couser analisava o mapa, Valspat checava o tornozelo e nenhum deles interrompia a odisseia da chuva caindo la fora. Quando os relâmpagos voltaram, Couser lembrou-se da silhueta e ficava atento, olhando para todos os lados, esperando pela sua volta. Valspat o olhava mau humorado, sabia que seu colega era um pouco paranoico, mas isso era demais.
- Esperando sua coisa voltar? - provocou Valspat.
- Ele... Aquilo... - Couser hesita, tentando pensar em como chamar o que vira, como se referir a algo jamais visto antes - Aquilo vai voltar.
Ele estava confiante disso, dizia como se tivesse visto o futuro e visto a silhueta voltar. Pode ter sido um sonho, mas sentia que voltaria, que entraria na barraca, que seria problema.
- Não há ursos ou lobos na região. Ou você viu um animalzinho ou viu coisas que não estavam lá. - zombou Valspat - A escalada deixou-o cansado? Esta sem fôlego nesta altura?
- Você diz que faço isso para irritá-lo, mas quem está sendo irritante é você. Deite-se e durma até conseguir andar novamente. Continuaremos mesmo que a chuva não cesse.
- Por que quer tanto terminar logo a trilha? Quer se livrar de mim? Só veio comigo porque já havíamos preparado tudo? O que demônios fiz para você?
- Decidimos não falar sobre.
- Então é isso? É sobre isso? O que isso tem a ver com você? Você nem estava lá quando aconteceu, por que age como se fosse assunto seu?
- Porque é assunto meu! - Couser levanta a voz e só não se levanta junto pois a barraca não permitia - Ela também era importante para mim! Por que vocês estavam lá em cima àquela hora? - sua voz tremia e seus olhos lacrimejavam.
- Queríamos praticar. Sabíamos que você já tinha experiência. Disse a ela que tinha que melhorar para te acompanhar.
- Eu estava brincando com ela! Achei que era obvio. Por que levou ela para aquela encosta?
- Ela insistiu! - Valspat gritou com todo o ar de seu pulmão.
Ficaram se olhando por alguns minutos, extasiados. A cabeça de Couser voltou a latejar. Um trovão. Olhou para o lado e em um segundo relâmpago, lá estava a silhueta.
- Lá! A silhueta! Eu vi novamente, na entrada da caverna. Deve aparecer mais próximo. Observe com o próximo relâmpago.
Valspat estava sem paciência para surtos de seu amigo, solta um suspiro e vira para ajeitar suas coisas para voltar a deitar. Assim que virou-se, outro relâmpago e então a silhueta à sua frente. Ele congela. Olha fixamente para a lateral da barraca. Mais um relâmpago e nada de sombra. Vira-se para seu amigo, os olhos arregalados e aterrorizados. Couser percebe imediatamente que ele vira também a criatura, ou seja lá o que for o dono da silhueta.
- Não parece um animal. Não parece um homem. Não parece com nada que já vi ou que pudesse ter imaginado. - diz Valspat aterrorizado.
- Não havia nada sobre o que quer que aquilo seja nas pesquisas que fiz sobre esta trilha ou esta montanha. - Couser falava, agora sem a confiança e certeza em sua voz.
Passam-se os minutos e volta a escurecer, mais uma vez antes do esperado. Couser estava quase dormindo quando tudo escurecera de vez. Tateou pela lanterna, enquanto Valspat pegava o isqueiro. Acenderam a lanterna. A luz, tremendo, revela o interior da barraca com uma coloração amarela e rústica, mas ilumina também seus ocupantes, Couser, Valspat e algo no canto. Ambos percebem que não estão sós. Ficam paralisados, olhando um para o outro. Então, com um aceno de cabeça, viram-se rapidamente, mas não encontram nada. Procuram por toda a barraca, mas estavam sozinhos. Couser começa a achar que está de fato alucinando. Mas se estava, como Valspat também estaria? É possível um delírio compartilhado? Sua paranoia criou uma figura em sua mente e implantou uma imagem na mente febril de seu amigo? Havia algo realmente lá fora? Estava lá dentro? Sempre esteve dentro da barraca?
- Sama... Eu sinto a falta dela... - balbuciou Couser.
- Eu sei... Eu também sinto.
- Não queria dizer aquilo, não queria que fossem minhas últimas palavras, que fossem elas que a levaria ao fim.
- Não foi sua culpa, nunca passou por minha cabeça que fosse culpa sua.
- Mas eu o culpei! O culpei todos os dias por ter levado ela até lá. Não precisavam praticar, eu ia ajudá-los, não era um percurso difícil. - desabafou Couser, as lágrimas fluindo agora em controle.
- Eu disse a ela, mas ela insistiu. Não queria decepcionar você.
- Eu era apaixonado por ela, quando eramos jovens, você se lembra.
- Lembro muito bem.
- Ela se apaixonou por você. Eu fiquei irado de início, me senti derrotado. Porém encontrei nela algo diferente. Encontrava formas de ajudá-la de formas que você como namorado não poderia. - disse sorrindo em meio às lágrimas. Valspat riu junto, agora também deixando sua próprias lágrimas escaparem.
- Desenvolvi um amor diferente - continuou Couser - Eramos como irmãos. Amava-a como uma irmã que nunca tive. - ele olha para Valspat, olhos inchados e cansados - Me desculpe, amigo, por ter tratado-o tão mal.
Valspat sorri e coloca a mão no ombro do amigo e então trocam um breve abraço. Então, antes mesmo de soltarem-se, ouviram um guinchar tenebroso, agudo e longo que terminava em um chiado indescritível. Os sons que se seguiram pareciam alienígenas, nada conhecido pelo homem havia feito tais sons antes. Estalos e chiados, grunhidos agudos e então mais graves. A cabeça de ambos chiava e doía. Apenas pensar em serem provavelmente os primeiros a ouvirem aquele som sobrenatural fazia o sangue esquentar, o coração acelerar, a tontura se tornar insuportável. Valspat sentia-se mal, lembrou-se das palavras que dissera a seu amigo, do sentimento que usara, das emoções que sentia, raiva, desprezo, menosprezo, lembrava-se de como Couser o tratara e de como o culpara pela morte de Sama. Couser apoiava-se com uma mão no chão, a outra pressionava a cabeça que parecia em chamas ou que estava comprimindo-se, apertando seu cérebro, lembrou-se da Valspat ter levado Sama para escalar e o fim que teve, lembrou-se de como ele havia sido um fardo tendo de ser carregado, como gritara com ele no dia anterior. Eles se entreolharam, furiosos, ambos sabiam o que fazer. Valspat alcançou sua faca e Couser agarrou seu piolet. Os dois trovejaram para fora da barraca, rasgando-a, grintando do fundo de seus pulmões, de frente para a tempestade. O que encontraram foi o fim dos ruídos monstruosos e a chuva rala.
Olharam por toda a caverna. Somente os dois estavam ali. Olharam dentro da barraca, somente os dois estavam ali. Sentaram-se do lado de fora da barraca, alcançando a lanterna e trazendo-a para fora também. Olharam um para o outro por alguns momentos. E então riram. E então foram dormir. Tinham uma escalada para terminar.
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